Manifestações populares pacíficas e outras violentas tomam as ruas de dezenas de cidades nos Estados Unidos e, poucos meses antes da eleição presidencial, o candidato republicano diz falar em nome "da lei e da ordem" e representar a "maioria silenciosa" que condena os distúrbios. Parece 2020, mas é 1968.
Até 25 de maio desse ano, quando o policial branco Derek Chauvin ajoelhou-se por mais de oito minutos sobre o pescoço de George Floyd, um homem negro de 46 anos, desarmado, algemado e com o rosto no chão, matando-o por asfixia, as manifestações de 1968 eram o maior levante popular na memória recente dos americanos.
Na última semana, no entanto, conforme as cenas da morte de Floyd viralizavam na internet, em meio ao luto por mais de 105 mil vidas perdidas na pandemia de coronavírus e o desespero pelos mais de 30 milhões de postos de trabalho fechados em uma recessão comparável à Grande Depressão de 1929, a indignação e a revolta levaram às ruas milhões de pessoas, em mais de 140 cidades, em quase todos os 50 Estados americanos.
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"Toda vez que há uma morte por violência policial, há protestos. Agora, a percepção de que os negros morrem mais na pandemia, que perdem mais seus empregos na crise, somado ao assassinato de George Floyd, tocou um nervo. A escala da frustração coletiva que vemos hoje só é comparável ao que vimos na década de 1960", afirmou à BBC News Brasil a historiadora da Universidade de Michigan Heather Thompson, especialista em movimento negro e violência policial.
Durante os anos 1950 e 1960, o movimento negro se articulou sob lideranças como Martin Luther King Jr. e Malcom X para lutar por bandeiras como os direitos civis e o fim da segregação racial nos Estados Unidos, oficial pelo menos desde o fim da escravidão, em 1865. Em 1964, uma lei passou a proibir que brancos e negros fossem separados em escolas ou no transporte públicos. E, em 1965, os Estados Unidos aboliram restrições ao direito ao voto, como contribuição fiscal ou nível de escolaridade, que na prática impediam a participação política da população negra.
Em 1968, Luther King expandiu o escopo do movimento e engrossou fileiras contra a Guerra do Vietnã, que naquele momento matava mais de mil soldados americanos por mês. Mas, em abril de 1968, o próprio Luther King foi assassinado com um tiro de fuzil no rosto pelo supremacista branco James Earl Rey, mais tarde condenado pelo crime. O assassinato foi o estopim para manifestações em mais de cem cidades. O movimento popular chegaria a seu auge em agosto daquele ano, com cenas de batalha campal entre manifestantes e a polícia em Chicago, que resultou em mais de 600 civis e 130 policiais feridos.
Thompson enumera algumas das semelhanças entre 1968 e 2020. "Assim como agora, os protestos de 1968 foram motivados pela desigualdade racial, mas também pela injustiça econômica e incompetência das autoridades, como na guerra do Vietnã. Em 1968, as pessoas sentiram que era hora de dar um basta, como vemos agora. O movimento era muito energizado por jovens, como agora. E, como em 1968, os protestos de 2020 vão aumentando de cidade em cidade e parece que não há fim", afirmou.
Há ainda uma série de paralelos possíveis entre 1968 e 2020: os questionamentos sobre os métodos de manifestação, as divisões dentro do movimento negro, o ambiente pré-eleitoral e a disseminação de informações pelos meios de comunicação - no primeiro caso a televisão, no segundo, as redes sociais.
"O ano mais traumático na história moderna dos Estados Unidos foi 1968. O segundo mais traumático é 2020, mas ainda faltam sete meses para ele terminar", resume James Fallows, correspondente de assuntos nacionais da revista americana The Atlantic.
Protesto pacífico ou violência e saques?
As manifestações da última semana se apresentaram de muitas formas. Em Denver, capital do Estado do Colorado, milhares de pessoas se deitaram na rua com o rosto colado ao chão, como Floyd foi morto, e gritaram em coro suas últimas palavras "eu não consigo respirar". Cena semelhante se repetiu em cidades de Michigan e da Califórnia.
Em Baltimore, um protesto comandado pelo pastor Wetley West reuniu pessoas para se ajoelharem no chão e repetirem o nome de dezenas de negros mortos por policiais, sob o olhar da polícia. West desafiou um agente a também repetir os nomes das vítimas, o que ele fez. Ambos se cumprimentaram.
"Obrigado. Estou agradecido. Não viemos aqui para destruir nossa cidade. Só queremos que nossa voz seja ouvida", disse West ao policial, segundo reportagem do jornal Baltimore Sun. As palavras do pastor ecoam o desagrado de parte dos manifestantes com cenas de violência, depredação e saques para os quais têm degringolado protestos inicialmente pacíficos.
Nos últimos cinco dias, os arredores da Casa Branca, sede do Executivo americano, tiveram centenas de lojas e restaurantes parcialmente destruídos e saqueados. Ainda em Washington D.C., o monumento memorial ao ex-presidente Abraham Lincoln foi vandalizado - e na noite de ontem fortemente protegido pelo Exército - e o porão da Igreja St. John foi incendiado.
Em Los Angeles e Nova York, manifestantes pulavam sobre viaturas policiais que acabavam completamente destruídas.
Na tentativa de se adiantar aos ataques, comerciantes têm coberto a fachada dos estabelecimentos com tapumes de madeira em que eventualmente deixam recados aos manifestantes: "não sobrou nada para roubar".
Ao jornal The New York Times, o iraquiano Hussein Aloshani, dono de uma doceria em Minneapolis, onde Floyd foi morto, passou a ficar na porta da loja implorando para que o local não fosse destruído. "Por favor, eu não tenho seguro", ele gritava.
Martin Luther King Jr., cujos métodos de reivindicação previam desobediência civil e marchas não violentas, passou a ser lembrado para criticar os contornos violentos das marchas atuais, em uma leitura que especialistas afirmam ser errada do papel histórico do líder e divisiva para o movimento negro.
Em sua conta no Twitter, um dos filhos de Luther King Jr., Martin Luther King III tentou refutar aqueles que se apropriaram das palavras de seu pai para direcionar críticas a quem está nas ruas em 2020: "Como meu pai sempre falou ao longo da vida, o motim é a voz de quem não é escutado", escreveu King III.
Malcom X foi um dos principais defensores de que a violência em protestos não representava barbárie, mas sim autodefesa e uma forma legítima de comunicação.
Para a historiadora Thompson, no entanto, há um exagero na diferenciação entre Martin Luther King e Malcom X. "As pessoas diziam que Malcolm X queria violência e Martin Luther King queria não-violência. Simplesmente não é verdade. Malcolm X disse muito claramente que acreditava em autodefesa, o que é muito diferente de pregar a violência. Ele está dizendo que vai proteger sua comunidade em vez de dar a outra face. Ambos estão debatendo como responder à violência. E, neste caso, violência estatal. Portanto, a ideia de que a violência é parte de uma ala específica do movimento negro faz parte do modo como escrevemos essa história e não é necessariamente a verdade", afirma Thompson.
Malcolm X, no entanto, não chegou a ver os levantes de 1968, já que foi assassinado em 1965. Curiosamente, a morte de Luther King ajuda a determinar o surgimento ou fortalecimento de movimentos negros que usam da violência como instrumento. Os Panteras Negras, por exemplo, adotaram esse caminho e passaram a instituir uma patrulha de cidadãos negros armados para supervisionar a abordagem policial a negros nas ruas das cidades americanas e reagir caso julgassem necessário.
Em 1968, as manifestações foram pacíficas - com festivais de música - mas também violentas - além de quebra-quebra nas ruas, saques, eventuais tiroteios, houve até mesmo o sequestro de pessoas "para transmitir uma mensagem": foi o que fizeram estudantes da Universidade Columbia que, para denunciar práticas racistas, fizeram cárcere privado de três funcionários da instituição por 24 horas.
Nos atuais protestos, existe uma carência de liderança clara, mas além de movimento antirracismo, há ainda atuação de segmentos adeptos a violência como grupos anarquistas e antifascistas, declarados terroristas nos últimos dias pelo presidente americano Donald Trump via Twitter.
"As pessoas estão cansadas de serem intimidadas e assassinadas pela polícia, especialmente os negros. É isso o que você obtém quando trata as pessoas assim. Anarquia", afirmou ao The New York Times o manifestante Don Hubbard, de 44 anos, que vive em Minneapolis.
Há ainda, tanto em 1968 quanto em 2020, a acusação recorrente de que brancos de organizações fascistas e de ultra-direita poderiam estar por trás de parte dos atos de vandalismo vistos nos protestos.
Cartas trocadas pelos diretores da CIA e do FBI em 1967 e divulgadas apenas três anos atrás mostram que as forças de segurança já diziam que distúrbios violentos em movimentos negros por direitos civis costumavam ser ação de alguma das quatro principais organizações de supremacistas brancos que atuavam nos Estados Unidos naquele momento.
Agora, há novas evidências a indicar interferência desses grupos nas manifestações. Nesta segunda, o Twitter tirou do ar uma conta de um suposto grupo antifascista americano que incitava as pessoas a saquearem áreas de maioria branca no país. De acordo com a plataforma, o perfil era falso e pertencia a um grupo de supremacistas brancos.
Trump tenta repetir efeito Nixon
Para a historiadora Thompson, os protestos de 1968 foram entendidos naquele momento como quebra da ordem social. "As pessoas não viram os atos como estratégicos para defender direitos. Olhamos para Chicago, 68, e dissemos: 'Oh meu Deus, os manifestantes antiguerra são tão violentos, os estudantes são muito violentos, ou os manifestantes negros dos direitos civis são tão violentos'."
Uma pesquisa de opinião pública do Instituto Gallup feita pouco depois do protesto de agosto de 1968 em Chicago mostrou que 56% da população aprovou a dura repressão policial ao ato e apenas 14% dos respondentes concordavam que os manifestantes tiveram cerceado seu direito a se posicionar.
A campanha do republicano Richard Nixon entendeu o sentimento dos eleitores e ele passou a se apresentar como o candidato da "lei e da ordem" e o representante da "maioria silenciosa" que na pesquisa admitia incômodo com os levantes. A bandeira contra a desordem foi um fator decisivo para a vitória de Nixon na corrida pela Casa Branca naquele ano.
A cinco meses de enfrentar as urnas para tentar a reeleição, Trump está afinado com a estratégia Nixon. Nos últimos três dias, ele foi várias vezes ao Twitter repetir o slogan "lei e ordem" e, em pronunciamento à nação, se colocou como o braço forte contra o caos social, inclusive mencionando que lançaria mão do Exército se prefeitos e governadores falhassem em conter manifestações violentas. Nesta terça-feira, Trump tuitou a expressão de Nixon, "maioria silenciosa".
"Ele percebeu uma janela de oportunidade política, de abraçar essa bandeira que pode ser popular com muita gente. Trump está atravessando duas crises históricas: a econômica e a sanitária. Se depender desse cenário, ele perde. Então se ele puder ficar até novembro falando em "lei e ordem" e condenando protestos, ele tem uma chance. Esse é o ambiente em que ele prospera", avalia o professor de relações internacionais da Faap Carlos Gustavo Poggio, especialista em história política americana.
Trump também já chamou os manifestantes de "bandidos" e afirmou via Twitter: "quando os saques começam, os disparos começam". A frase não é original do atual presidente. Ela foi dita em 1967 pelo chefe da polícia de Miami Walter Hedley, durante um depoimento a autoridades que o questionaram sobre suas ações diante de protestos pelos direitos civis dos negros. Na mesma ocasião ele ainda afirmou: "eu não me importo de ser acusado de brutalidade policial".
Especialistas afirmam que, em vez de acalmar os ânimos nas ruas, as ações de Trump tem levado à escalada no tamanho dos protestos e na violência. "As pessoas estão na rua pedindo Justiça e até agora nenhuma autoridade anunciou qualquer mudança em como os casos de violência policial são investigados e julgados. Não temos uma liderança capaz de acalmar as ruas. Na verdade, Trump inflama as pessoas", diz Thompson. A impunidade para policiais acusados de matar negros foi a tônica nos últimos anos, mesmo em casos rumorosos, como o de Eric Garner, estrangulado e morto em uma abordagem policial em 2014 em Nova York por vender cigarros não certificados.
Segundo Thompson, outra vez se coloca a questão da narrativa. "Se esses protestos forem entendidos como caóticos, violentos e sem propósito, então fica mais fácil para o eleitor dizer:'sou a favor dos direitos civis, mas esse povo na rua é só um bando de louco queimando tudo, então vou votar no Trump'", diz a historiadora.
Há, no entanto, diferenças importantes entre Nixon e Trump. A começar pelo fato de que Trump já é o presidente. Já Nixon era o candidato de oposição ao presidente democrata Lyndon Johnson, tão impopular que àquela altura havia desistido do concorrer à reeleição. "Trump pode vir a ser responsabilizado pela má condução da crise e pelas políticas que levaram à revolta social", diz Thompson.
Uma pesquisa feita pelo Instituto Ipsos e pela Agência Reuters nas últimas segunda e terça mostrou a ambivalência da situação. Se por um lado, 64% dos americanos se disseram simpáticos aos manifestantes e 55% desaprovavam a resposta de Trump, 75% disseram que a violência nos protestos enfraquecia o pleito das manifestações e que apoiavam atos pacíficos.
Outro aspecto relevante é o tempo. Os protestos em 1968 aconteceram pouco mais de dois meses antes da eleição, enquanto que agora há quase um semestre até que os americanos compareçam às urnas. "É muito tempo pra segurar com esse discurso, mas pode ser que os protestos ajudem a tirar o foco dos outros problemas agora e, se em agosto a economia começar a reagir, pode ser que a estratégia funcione. De qualquer maneira, nada é certo e o movimento é arriscado. Mas a história nos serve como um guia", diz Poggio.