segunda-feira, 24 de junho de 2024

Quem foi São João, o profeta que teria batizado Jesus



João Batista, em pintura de Bartolomé Gonzalez

CRÉDITO,DOMÍNIO PÚBLICO

  • Author,Edison Veiga
  • Role,De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

É um caso peculiar dentro do cristianismo: um santo festejado tanto por seu nascimento, em 24 de junho, quanto por sua morte, 29 de agosto. Normalmente, os católicos celebram a morte do santo como aquele dia em que eles "nascem" para a Deus.

João Batista foi o homem que, de certa forma, abriu as portas para a missão de Jesus. Pregador itinerante nascido na Judeia, ele se tornou líder religioso de um grupo de judeus da época, exaltando a importância de valores como retidão e da prática da virtude. No intuito de purificar as almas, lançava mão do batismo — realizado em cursos d'água, em cerimônias epifânicas.

O batismo não foi uma invenção de João, pois já era praticado na época. A novidade trazida por ele foi o fato de que ele não restringia a participação aos judeus, permitindo também que o ritual servisse para a conversão dos considerados pagãos — e isso motivou polêmicas em seu meio


De acordo com os textos bíblicos, João era parente de Jesus. Ele era filho de Zacarias, um sacerdote, e de Isabel, uma prima de Maria, a mãe de Jesus. Segundo a literatura sagrada, Jesus iniciou sua missão evangelizadora somente após ter sido ele próprio batizado pelo primo nas águas do Rio Jordão

Para muitos, João é exaltado como o maior dos profetas.

Como costumava acontecer em grupos religiosos daquela época — a exemplo do próprio Jesus —, as pregações de João passaram a incomodar o poder estabelecido. Preso por dez meses, provavelmente em algum momento entre o ano 26 e o ano 28 da era cristã, João acabou condenado à morte pelo governante Herodes Antipas (20 a.C - cerca de 39 d.C). Não se sabe exatamente a idade que João tinha quando foi morto, mas é certo que era mais velho do que seu primo Jesus


Por muito tempo, pairavam controvérsias sobre a historicidade de João Batista. O principal documento, contudo, que atesta a sua existência é o livro Antiguidades Judaicas, escrito pelo historiador romano Flávio Josefo (37-100) provavelmente no ano de 94.

"João Batista é um personagem bíblico, mas para além dessa referência também há um historiador muito importante, Flávio Josefo, que se refere a ele em suas obras. É um historiador que tem uma visão muito isenta, porque não é ligado à tradição cristã", pondera o estudioso de hagiografias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.

"Por muito tempo houve a controvérsia se João Batista existiu de fato ou se seria uma construção lendária, literária. Tudo indica que existiu de fato, por conta de testemunhos externos à Igreja. E talvez este [o livro de Josefo] seja o mais importante", acrescenta Maerki.

O pesquisador ressalta que Josefo "se refere a João Batista" como alguém "que costumava reunir uma multidão em torno dele para ouvir sua pregação". "Havia, portanto, muitos seguidores. E isso teria incomodado Herodes", narra Maerki. "Temia-se que João pudesse iniciar uma rebelião. Suas pregações incomodavam o poder. Por isso acaba sendo preso e morto em seguida."

De acordo com as narrativas antigas, foi morto por decapitação. E teve sua cabeça apresentada em uma bandeja.

"Ele viveu na Galileia no reinado de Herodes e possuiu muitos seguidores, pregava aos judeus e fazia do batismo símbolo de purificação da alma. Ele era filho de Zacarias, sacerdote, e de Isabel, prima de Maria Santíssima. Além de primo de Jesus. Sua mãe, Isabel, era prima de Maria, João ainda no ventre da mãe celebrou Jesus também no ventre de Maria como vemos em Lucas. Foi também ele o precursor de Jesus e sua mensagem salvífica", acrescenta o hagiólogo José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará.

"Não bastasse tudo isso, ele batizou Jesus. Então, não só o cristianismo, mas, diversas religiões o celebram. De um modo geral, João Batista é mártir. Morreu em defesa da fé. E já os discípulos de Jesus o tratavam com reverência. No martirológio romano encontramos duas celebrações a ele, no nascimento e no martírio", diz ainda o hagiólogo.

Simbolismos de João

Embora existisse essa reverência ao personagem desde os primeiros cristãos, Maerki lembra que oficialmente o cristianismo só oficializou uma solenidade à natividade de São João no século 4, "conforme indícios". "Depois essa celebração foi se difundindo nos séculos seguintes e, já no século 6, houve um aprimoramento da festividade, precedida de um jejum solene, com missa de vigília e tal. Na Idade Média, há o histórico de celebrações com três missas para a data", contextualiza.

"Era uma festa das mais importantes, das mais cultivadas e das mais populares da época. E isso é importante porque ainda hoje a gente sabe que João Batista é dos santos mais populares, mais venerados, de tradição muito forte que remonta ao período medieval."

Claro que há simbolismos, e a escolha de datas assim, provavelmente definidas a posteriori, não foi à toa. "João Batista teria sido concebido no equinócio de outono e teria nascido no solstício do verão europeu. Isso é importante. Santo Agostinho, depois, vê nisso uma espécie de confirmação cósmica do versículo bíblico que diz que é necessário 'que ele cresça e eu diminua'. Agostinho interpretou esse versículo como uma referência indireta ao nascimento de João Batista", afirma Maerki.

João Bastista, em obra de Anton Raphael Mengs

CRÉDITO,DOMÍNIO PUBLICO

Legenda da foto,João Bastista, em obra de Anton Raphael Mengs

"Alguns teólogos ainda apontam para um certo paralelismo com o Natal de Jesus, que acontece no inverno europeu, quando analisam o natal de João, verão europeu", complementa o pesquisador.

"Isso teria dado origem a manifestações folclóricas, inclusive os fogos de São João que representam e simbolizam o nascimento do santo. É o nascimento mas também é em referência ao início do verão. São relações curiosas que, certamente surgiram por meios populares e foram se enraizando. Depois acabaram aceitas e cultivadas inclusive pela Igreja", diz o pesquisador.

De qualquer forma, os próprios textos bíblicos concedem a João uma posição especial. "João é apresentado como o precursor do messias e essa imagem é muito forte, é daquele que prepara o caminho da salvação", pontua Maerki.

"Há todo um caráter messiânico. Ele vai ser apontado como o profeta que indicou em Cristo o 'cordeiro enviado para expiar os pecados do mundo', aquele que primeiramente teria visto em Jesus o caráter daquele que teria sido enviado por Deus. E a partir daí teria iniciado um novo momento na pregação de João, não só de anunciar que o messias estava próximo mas que esse messias seria o próprio Jesus, uma tradição bíblica que depois a igreja aprofunda, desenvolve e festeja."

O Evangelho de Mateus, por exemplo, apresenta João Batista como alguém muito maior do que um profeta, como o profeta dos profetas.

"Porque, diferentemente dos profetas que falavam do futuro, ele indicou o messias no presente. Isso é muito forte na tradição religiosa. Ele é alguém que não anuncia um futuro distante, ele anuncia um messias que está presente, que se faz presente no momento em que ele fala", comenta o hagiólogo. Essa primazia é uma interpretação comum a muitos teólogos e estudiosos de textos sagrados.

Rivalidade fraterna

Por outro lado, enquanto a Igreja consolidou essa visão de João Batista como precursor de Jesus, pesquisas contemporâneas identificam, sobretudo em evangelhos apócrifos — aqueles que não são considerados no cânon oficial do cristianismo — mas também em análise dos textos que constam da Bíblia, uma certa rivalidade entre os dois líderes da mesma época e da mesma região.

"Havia uma grande polêmica entre os discípulos de João Batista e de Jesus, e essa polêmica emerge dos próprios evangelhos. Parece que o próprio Batista não estava muito convencido do carisma profético de Jesus, da messianidade de Jesus", aponta Maerki. "Tanto que quando ele estava preso, ele enviou alguns de seus seguidores, os que mais confiava, para perguntarem em seu nome se Jesus era aquele que havia de vir de fato ou se ele devia esperar outro."

"Isso revela, indiretamente, uma dúvida de João Batista, ou seja, a Igreja sempre aceitou João Batista como esse grande profeta mas talvez nem o próprio João Batista acreditasse nisso", analisa o pesquisador.

Para Maerki, outro fato que corrobora essa tese é que mesmo que o relato bíblico aponte que, no episódio do batismo de Jesus, João e os demais presentes souberam, por uma voz, que estavam diante do filho de Deus, "o eleito", ele não decidiu dissolver seu grupo, sua escola de pregação, tampouco se unir aos seguidores de Jesus. "Ele continuava sua caminhada, paralelamente à caminhada de Jesus. Isso é muito significativo", comenta.

Ilustração do século 18 que representa o historiador Flavio Josefo

CRÉDITO,DOMÍNIO PÚBLICO

Legenda da foto,Ilustração do século 18 que representa o historiador Flavio Josefo

Nesse sentido, há o entendimento de que os seguidores de João Batista poderiam respeitar e considerar Jesus um grande mestre, mas não um messias. E que, em última análise, essa posição poderia ser a mesma de João, uma vez que ele manteve suas pregações.

"Depois que Batista foi executado, formou-se um grupo de seguidores que inclusive passaram a defendê-lo como o verdadeiro messias", conta Maerki. "Ele se transformou em uma espécie de rival de Jesus. Isso não é comentado na bíblia canônica, mas aparece em texto apócrifos."

No texto apócrifo conhecido como Evangelho de Tomé, Jesus teria dito que "ninguém é tão maior do que João Batista". "Isso é parecido com o Evangelho de Lucas, em que aparece algo assim, de que 'entre os nascidos de mulher, não há profeta maior do que João Batista, mas o menor no Reino de Deus é maior do que ele'", diz o pesquisador.

"Isso talvez seja o pano de fundo, e essa fala de Jesus seja justamente em torno dessa polêmica, dessa rivalidade existente entre os dois", explica.

Festas juninas

Polêmicas à parte, fato é que João Batista se tornou das figuras mais importantes para o cristianismo, e um santo muito popular. Como personagem, transcende o catolicismo — tornou-se figura folclórica, celebrada, ao lado de Santo Antônio e São Pedro, nas famosas festas juninas tão tradicionais nesta época do ano no Brasil.

Algumas lendas ajudam a explicar os elementos típicos da comemoração. "Uma antiga tradição diz que João nasceu no alto de uma montanha e que uma fogueira foi acesa quando sua mãe, Isabel, entrou em trabalho de parto para avisar aos parentes que moravam na planície. Pode ser daí o início das festas de junho, juninas", diz Lira.

"Primeiro se celebra Santo Antonio, jovem na história do cristianismo, depois João e Pedro contemporâneos de Jesus. As festas brasileiras vieram com o colonizador português e aqui no Nordeste brasileiro têm características bem próprias e animam as noites do sertão e da cidade, incluindo a tradição de se tomar afilhados, padrinhos, compadres de fogueira, com a intercessão do santo."

"Nos locais nos quais João é padroeiro o novenário é de nove dias, sendo o dia 24 o principal da festa. Catolicamente é esse o rito, mas, o folclore o celebra com fogueira na véspera e outras tradições. A Igreja celebra do seu modo a festa, mas, não há qualquer tipo de proibição formal aos outros festejos aos santos. E viva São João", enaltece o hagiólogo.

Arcebispo do Rio de Janeiro, o cardeal Orani João Tempesta — que tem João como segundo nome justamente porque nasceu na véspera da festa de João Batista, em 1950 — também vê com bons olhos as festividades populares.

"O mês de junho traz para nós, brasileiros, a oportunidade de confraternização, participação e, ao mesmo tempo, alegria", comenta ele. "É tempo de comemorar os santos Antônio, João e Pedro e, também, confraternizar com as pessoas juntos, sentir essa proximidade, celebrar a presença na região, na cidade."

"Vemos São João sendo celebrado em todo lugar, com tradições, alimentos, bebidas, fogueira, fogos, bandeirinhas… Enfim, cada lugar tem um pouco suas características. Como nasci na véspera de São João, nunca faltou, em minha infância a comemoração folclórica da festa de São João, com os doces próprios e as comidas típicas", ressalta o cardeal. "Isso faz bem para o povo. Nosso povo necessita desses momentos de folguedo, de podermos estar um pouco mais tranquilos e celebrando uns com os outros em meio a tantas dificuldades."

Tempesta acredita que tais eventos servem para que todos possam "festejar a nossa esperança e a confiança de poder ver dias melhores de paz e fraternidade"




Professor Edgar Bom Jardim - PE

sábado, 22 de junho de 2024

Estudantes de Pernambuco terão novas oportunidades no Programa Ganhe o Mundo






Ganhe o Mundo: Governo de Pernambuco abre licitação para contratar empresa que enviará estudantes a outros países

Ao todo, 900 vagas serão ofertadas para os Estados Unidos, Canadá e Chile

O Governo de Pernambuco divulgou, no Diário Oficial do Estado desta sexta-feira (21), a abertura de licitação para contratação de uma empresa especializada na oferta de pacotes de intercâmbio para o Programa Ganhe o Mundo (PGM). Neste primeiro momento, através do Juntos pela Educação, serão disponibilizadas 900 vagas para que os alunos possam ir ao exterior. O edital da licitação está disponível no site www.peintegrado.pe.gov.br. O projeto, que tem por objetivo ofertar programas de intercâmbio internacional aos alunos do Ensino Médio da rede pública estadual, irá enviar estudantes a outras nações já a partir do segundo semestre de 2024.

“Eu acredito firmemente que a educação tem o poder de transformar a vida dos jovens, por isso me alegro tanto em anunciar que os estudantes da rede estadual terão a oportunidade de fazer um intercâmbio, conhecer outras culturas e aprimorar o conhecimento de uma segunda língua. Não vamos descansar um minuto sequer até que todos os alunos pernambucanos tenham acesso à melhor estrutura educacional possível, esse é o nosso maior objetivo”, afirmou a governadora Raquel Lyra.

Ao todo, serão 900 vagas ofertadas — sendo 300 para os Estados Unidos, 400 para o Canadá e 200 para o Chile. Os alunos serão encaminhados para entidades educacionais que são parceiras do Governo do Estado nos países.

Interessados ainda podem participar das aulas preparatórias que já estão sendo oferecidas pela SEE, basta acessar o link do programa no e-mail escolar. Atualmente os alunos conseguem ter acesso à modalidade de aula online de línguas inglesa e espanhola. Os materiais são disponibilizados todas as segundas, quartas e sextas através do Google Classroom. Todo o conteúdo foi elaborado pelos professores da rede para que os estudantes aprendam a lidar com situações do dia a dia, como expressões, saudações, como utilizar meios de transporte, entre outros.

Para acessar o material, é necessário que o estudante se conecte através do e-mail escolar. Feito isso, ele pode escolher uma das salas que estão disponíveis no ambiente virtual. No mês de maio, também foram realizados aulões presenciais em 141 polos de todas as Gerências Regionais de Educação (GRE).

Para participar do Ganhe o Mundo, os estudantes precisam ter o mínimo de 14 anos no dia do embarque e o máximo de 17 anos no retorno; ser aluno do 1º ou 2º anos do Ensino Médio; ter nível mínimo do idioma (inglês ou espanhol); frequência de, pelo menos, 85%; autorização dos pais ou responsáveis e obter a aprovação no visto. Após isso, todas as modalidades participantes terão que realizar uma prova para ingresso no PGM.

"É muito importante que os interessados intensifiquem os estudos, porque, muito em breve, as avaliações estarão disponíveis para todos. Estamos ansiosos para que tudo isso ocorra da melhor forma possível e que eles usufruam desta oportunidade", enfatiza a secretária executiva de Desenvolvimento da Educação, Tárcia Silva.

Fonte: imprensa.pe

Professor Edgar Bom Jardim - PE

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Incêndios recorde no Pantanal


Imagem feita a partir de um drone. Do lado esquerdo, o verde da vegetação, no meio, as chamas do fogo e, do lado direito, as cinzas por onde o fogo já passou

CRÉDITO,UESLEI MARCELINO/REUTERS

Legenda da foto,Corumbá (MS) é o município brasileiro que mais queimou entre 1985 e 2023, de acordo com um levantamento realizado pelo MAPBiomas

Imagem da carcaça de um jacaré queimado em um chão com vestígios de mato queimado. Ao fundo, brigadistas combatem o resto do fogo

CRÉDITO,UESLEI MARCELINO/REUTERS

Legenda da foto,O primeiro semestre deste ano já registra um aumento de mais de 1.000% dos focos de incêndio em relação ao mesmo período do ano passado

No segundo semestre de 2020, um quarto do Pantanal brasileiro queimou em uma série de incêndios sem precedentes, de acordo com nota técnica elaborada pelo Instituto SOS Pantanal e divulgada recentemente.

Cenas de animais carbonizados espalharam-se pela internet enquanto o fogo se alastrava ao longo dos 4 milhões de hectares que foram consumidos no total.

Agora, enquanto os gaúchos ainda somam os prejuízos após as enchentes que marcaram a história recente do estado, um novo evento climático está acontecendo no Centro-Oeste.

Mas essa tragédia já estava anunciada, diz Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), órgão nas Nações Unidas


O primeiro foi a seca: segundo dados da Marinha do Brasil, os valores mensais medidos neste ano em Ladário (MS), onde fica a principal régua do rio Paraguai — o mais importante da hidrografia pantaneira — foram os menores da série histórica.

Por isso, em maio, a Agência Nacional de Águas (ANA) já havia declarado situação crítica de escassez hídrica na região


Com a seca, veio o fogo. Os focos de incêndio registrados somente na primeira quinzena de junho, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foram os mais numerosos para o mês, batendo o recorde de toda a série histórica, iniciada em 1998.

O Ministério do Meio Ambiente (MMA) afirmou à BBC News Brasil que “historicamente, o período de seca no Pantanal ocorre no segundo semestre, mas a mudança do clima e os efeitos do El Niño anteciparam e agravaram a estiagem”.

Mas para o climatologista Paulo Artaxo, essa antecipação já era prevista.

“A gente já sabia que isso ia acontecer quando vimos aquele evento no Rio Grande do Sul”, afirma o especialista.

Segundo Artaxo, uma consequência possível do fenômeno climático que provocou o excesso de chuvas no Sul era justamente uma antecipação da seca no Pantanal. "É como se as chuvas tivessem ficado presas no Rio Grande do Sul", diz.

“O problema não é prever, mas agir para que não aconteça. E faltou ação.”

Imagem feita a partir de um drone. Do lado esquerdo, o verde da vegetação, no meio, as chamas do fogo e, do lado direito, as cinzas por onde o fogo já passou

CRÉDITO,UESLEI MARCELINO/REUTERS

Legenda da foto,Corumbá (MS) é o município brasileiro que mais queimou entre 1985 e 2023, de acordo com um levantamento realizado pelo MAPBiomas

Foi só os incêndios baterem recorde para o mês de junho que o governo anunciou, na sexta-feira (14/6) a criação de uma “sala de situação para ações de prevenção e controle de incêndios e secas em todos os biomas, com foco inicial no Pantanal”.

A primeira reunião do grupo ocorreu na segunda-feira (17/6) sob coordenação da Casa Civil e com representantes de diversas pastas, dentre elas, a do Meio Ambiente, da Justiça, da Defesa e de representantes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

O governo federal manteve de 2018 a 2023 um plano anual de ação para manejo do fogo no Pantanal para reduzir os incêndios no bioma.

O plano foi coordenado pelo MMA, implementado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, a um custo de R$ 22,9 milhões.

O plano de 2023 foi lançado em abril do ano passado com o objetivo de impedir que os incêndios de 2020 se repetissem.

As ações foram planejadas com base em estudos de cenários climáticos e de análises sobre o acúmulo de material que poderiam intensificar o fogo para identificar as áreas sob maior risco de incêndio.

Também envolvia medidas de preparação e combate ao fogo.

Porém, o período de duração do programa se encerrou no ano passado.

A BBC News Brasil questionou o MMA se outro plano específico foi elaborado para evitar ou mitigar os efeitos dos incêndios no Pantanal, mas não houve resposta da pasta a respeito deste ponto específico.

Segundo o MMA, foram realizadas parcerias com os governos estaduais do Mato Grosso Sul, onde está situado 65% do Pantanal brasileiro, e do Mato Grosso, que abriga 35% do bioma.

"Com o agravamento da seca na região, intensificada pela mudança do clima e por um dos El Niños mais fortes da história, o governo federal ampliou as ações e a cooperação com os Estados", disse a pasta.

Questionado se era possível prever tantos incêndios no mês de junho, o governo do Mato Grosso disse em nota à BBC News Brasil que a região passa por "um período atípico desde o final de 2023, com pouca incidência de chuvas e baixa umidade".

"Com isso, o material orgânico seco, como a turfa, se acumula, o que tem facilitado a combustão."

O governo do Mato Grosso do Sul disse em nota que ao longo dos anos tem atuado "na prevenção e proteção do bioma ao longo dos últimos anos."

Segundo o governo, desde abril deste ano um centro integrado com diversas secretarias estaduais atuam no combate aos incêndios no Pantanal. "Já foram empregados um efetivo de 254 bombeiros e bombeiras militares nas ações de prevenção, preparação e combate aos incêndios florestais", afirmou trecho da nota.

Foco de incêndio perto de Corumbá, no Mato Grosso do Sul

CRÉDITO,REUTERS

'Fogo não cai do céu'

O pacto firmado entre o governo federal e os Estados prevê, dentre outras medidas, a suspensão de autorização de queimas até o fim do período seco.

As queimas controladas são permitidas, contanto que autorizadas previamente pelos órgãos estaduais competentes, ou pelo ICMBio, que é vinculado ao MMA, no caso de propriedades dentro de áreas de conservação.

Também é preciso obedecer algumas regras, como manter uma equipe treinada acompanhando e não realizar as queimas em florestas e demais áreas de vegetação.

O Pantanal foi o bioma que mais queimou proporcionalmente, tendo 59% do seu território em chamas entre 1985 e 2023.

Corumbá, no Mato Grosso do Sul, foi o município brasileiro mais afetado no período, de acordo com um levantamento realizado pelo instituto MapBiomas.

Assim como no resto do país, a abertura de pastagens é a principal razão do ateamento de fogo.

“Fogo não cai do céu”, diz Rodrigo Agostinho, presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), à BBC News Brasil.

“No ano passado, tivemos dois incêndios provocados por raios. O resto foi tudo alguém que colocou fogo.”

De acordo com Agostinho, todos os focos de incêndio registrados neste ano são criminosos.

O presidente da Associação de Criadores de Mato Grosso do Sul (Acrisul), Guilherme Bumlai, rechaçou a possibilidade de que os incêndios que atingem o Pantanal possam ter sido resultado da ação criminosa de produtores rurais. A Acrisul é a principal representante dos pecuaristas do Estado.

"De forma nenhuma esses incêndios podem ser imputados aos produtores rurais porque eles são os maiores interessados em proteger suas fazendas. Estamos num período muito seco e há muito capim seco nas propriedades. Isso é um barril de pólvora", afirma Bumlai.

Sem apresentar evidências, Bumlai atribuiu os incêndios no Pantanal sul-matogrossense a acidentes causados pela suposta ação descuidada de pescadores e motoristas.

"Muitas vezes, o pescador faz uma fogueira na beira do rio e não apaga direito [...] também temos aquelas pessoas que não têm noção (do perigo) e jogam uma bituca de cigarro pela janela e o fogo sai de controle", afirmou.

Combate aos incêndios

O primeiro semestre deste ano já registra um aumento de mais de 1.000% nos focos de incêndio em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com a plataforma BDQueimadas, do Inpe.

Diante dos números, o MMA informou que o Ibama contratou 2 mil brigadistas para atuar em todo o país, com foco inicial no Pantanal e na Amazônia.

Por sua vez, o governo do Mato Grosso lançou na segunda-feira a Operação Pantanal, que combate incêndios na região, para impedir que o fogo destrua o bioma como em anos anteriores.

A operação foi adiantada em dois meses pelas atuais condições climáticas locais, junto com o início da proibição do uso de fogo para manejo de áreas de cultivo.

"Somente serão autorizados focos preventivos, ou seja, o uso do fogo para prevenir eventos maiores”, disse a secretária de Meio Ambiente, Mauren Lazzaretti, ao anunciar as medidas.

O governo do Mato Grosso também informou que R$ 74,5 milhões foram investidos na execução de um plano de combate ao desmatamento ilegal e incêndios florestais.

O governo do Mato Grosso do Sul afirma já ter empregado R$ 50 milhões em equipamentos e ações de prevenção e combate aos incêndios e instalou 13 bases avançadas em pontos remotos da região a fim de agilizar a ação contra focos.

"Discutimos desde fevereiro com bastante intensidade essa situação no governo", disse o secretário-executivo de Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul, Artur Falcete, em reunião na terça-feira (18/6) com o governo federal para tratar da crise.

"Tanto que o decreto de emergência saiu bastante cedo, no início de abril, pois já sabíamos das condições climáticas muito próximas das de 2020. Alocamos recursos adicionais para esse combate."

Em abril, os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul assinaram um Acordo de Cooperação Técnica no qual se comprometeram a fazer ações conjuntas para a preservação do Pantanal. Entre as medidas previstas estão uma legislação semelhante sobre o uso dos recursos naturais do bioma, elaboração de um plano para prevenção e resposta aos incêndios florestais no bioma, além de monitoramento da fauna silvestre.

Brigadistas voluntários combatem foco de incêndio no Pantanal

CRÉDITO,REUTERS

Mudança do clima

Agostinho lembra que o primeiro semestre é uma época que, historicamente, não há tantos incêndios.

“Nessa época no ano passado, o Pantanal estava debaixo d’água”, diz.

De fato, segundo explica Artaxo, o Pantanal nunca foi um ecossistema sensível à seca. “Mas, há três anos, isso tem mudado”, afirma.

Apesar das mudanças estarem em curso, o cenário de hoje é diferente do que havia em 2020.

Naquele ano, de acordo com o presidente do Ibama, havia muita matéria orgânica acumulada, que serviu de combustível para que o fogo se alastrasse.

"Havia um estoque de mais de uma década de matéria orgânica ali", diz ele.

Apesar dessa diferença, as previsões agora são pouco otimistas.

“Estamos vivenciando e vamos vivenciar a maior seca do Pantanal já conhecida, sem sombra de dúvidas", diz Agostinho.

"Mas vamos trabalhar para que os efeitos do incêndio sejam menores”.

As mudanças do clima, que refletem no calendário e intensidade das chuvas e secas não só no Brasil, mas em todo o mundo, são cada vez mais uma realidade, segundo afirma Artaxo.

E os governos precisam se planejar para isso, defende o especialista.

"O Brasil não pode enfrentar o próximo evento climático extremo com o mesmo amadorismo que enfrentou no Rio Grande do Sul.”

  • Marina Rossi, Leandro Prazeres e Vinícius Lemos
  • Role,Da BBC News Brasil em São Paulo e em Brasília
Professor Edgar Bom Jardim - PE