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terça-feira, 11 de maio de 2021

Filosofia e outros conhecimentos: a cientista 'detetive' que acendeu alerta sobre hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19

Medicamento hidroxicloroquina, em foto de 2020

CRÉDITO,REUTERS

Legenda da foto,

Frasco de hidroxicloroquina; medicamento entrou no radar contra covid a partir de estudo francês que foi, desde o princípio, alvo de diversos questionamentos

A holandesa Elisabeth Bik tem se dedicado a uma tarefa peculiar no meio científico: ela passa horas diante de seu computador, analisando centenas de estudos, atenta a falhas (intencionais ou acidentais) como duplicações ou adulterações de imagens, plágio, conflitos de interesse nos dados apresentados ou incongruências nas evidências científicas.

A microbiologista virou uma especialista em "integridade científica": na prática, isso consiste na análise (não remunerada) de milhares de estudos biomédicos, em busca de erros que possam comprometer seus resultados. Bik também tem um trabalho pago, de consultoria e palestras para universidades e centros de pesquisa, sobre como melhorar seus processos.

Faz pouco mais de um ano que Bik foi uma das cientistas a levantar preocupações sobre um estudo que ganharia proporções não previstas na época: trata-se da pesquisa do instituto médico francês IHU-Méditerranée Infection, em Marselha, publicada inicialmente em março de 2020 com a afirmação de que "a cloroquina e a hidroxicloroquina eram eficientes contra o SARS-CoV-2", o vírus da covid-19.

Foi a partir desse estudo que esses remédios passaram a ser exaltados pelo então presidente americano Donald Trump, publicamente promovidos pelo presidente brasileiro Jair Bolsonaro, incorporados no criticado "tratamento precoce" contra a doença no Brasil, receitados preventivamente por alguns médicos daqui e até usados, em alguns casos, em nebulizadores - apesar de advertências de que ainda não foram encontrados benefícios concretos da cloroquina e, ao contrário, terem sido identificados significativos riscos colaterais dessa medicação. Hoje, o uso amplo do medicamento é um dos alvos da investigação da CPI da Covid, em curso no Senado.

Para Bik, foi a a politização do estudo inicial que fez com que ele ganhasse tanto alcance, apesar de seus resultados clínicos serem considerados insuficientes pela comunidade científica.


"Eu não estava contra o uso da hidroxicloroquina, apenas achei que o estudo do laboratório de Didier Raoult (um renomado epidemiologista francês e um dos principais autores da pesquisa) não havia sido bem executado, e era muito cedo para basear uma grande decisão apenas naquela pesquisa - era necessário haver mais evidências, e essas evidências nunca vieram", diz Bik à BBC News Brasil.

"Mas rapidamente isso foi politizado, porque Trump endossou o estudo ao tuitar a respeito. Daí aconteceu que se você fosse republicano, basicamente tinha de ser a favor do estudo e se fosse democrata tinha de ser contra. O que é muito estranho - discussões sobre ciência não costumam pular para a política, mas nesse caso aconteceu. Virou algo grande: muitas pessoas passaram a defender o estudo. Mas os cientistas estavam em sua maioria vendo que o medicamento não era útil."

Em setembro, Didier Raoult foi denunciado pela Sociedade de Patologia Infecciosa de Língua Francesa (SPILF) por "promoção indevida de medicamento". Em janeiro deste ano, o médico admitiu numa carta ter excluído alguns voluntários do resultado da pesquisa (veja mais detalhes abaixo). Mas ele mantém a defesa de seu estudo original e da eficácia da hidroxicloroquina em parcela dos casos de covid-19.

Quanto a Elisabeth Bik, no dia em que conversou com a BBC News Brasil, a pesquisadora havia acabado de receber a notificação de que está sendo processada por difamação por Raoult, que em declarações públicas prévias a chamou de "maluca" e "caçadora de bruxas" por suas críticas.

Elisabeth Bik, em entrevista à BBC News Brasil

CRÉDITO,REPRODUÇÃO

Legenda da foto,

'Discussões sobre ciência não costumam pular para a política, mas nesse caso aconteceu', diz Elisabeth Bik

Na conversa com a reportagem, Bik (que fez seu PhD na Holanda e foi pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford, nos EUA e também de empresas privadas) detalha as críticas feitas ao estudo francês e também explica o trabalho de desmascarar problemas em pesquisas científicas - os quais, segundo ela, prejudicam toda a comunidade de pesquisas global e ajudam a erodir a confiança do público na ciência.

A hidroxicloroquina, um ano depois

Em 24 de março do ano passado, Bik fez uma longa resenha em seu blog (em inglês) sobre o estudo de Didier Raoult e colegas, os quais apresentavam resultados da hidroxicloroquina em 26 pacientes de covid-19, em comparação com um grupo de controle de 16 pacientes.

Após serem tratados com a droga (e também com o antibiótico azitromicina, no caso de seis dos 26 pacientes), todos eles tiveram testes RT-PCR negativos para o novo coronavírus, o que levou-os a concluir que a droga contra a malária funcionaria contra a covid-19.

Mas Bik levantou questionamentos sobre a metodologia usada pelo estudo, que segundo ela prejudicam as conclusões, como:

- Lapsos no cronograma: os dados apresentados no estudo não deixam claro qual foi o resultado do teste PCR dos pacientes na metade do estudo, como havia sido originalmente planejado. Isso despertou preocupações quanto a se dados potencialmente negativos poderiam ter sido omitidos.

- Havia muitas diferenças entre os grupos de controle (ou seja, pessoas que não foram tratadas com hidroxicloroquina) e o grupo de pacientes do estudo, o que dificulta a comparação entre ambos e, portanto, os resultados da pesquisa.

- Embora o estudo tenha começado com 26 pacientes, termina apresentando dados de apenas 20 deles. Dos seis faltantes, três haviam sido transferidos para a UTI, um morreu e dois abandonaram a medicação. "É como dizer 'meus resultados são incríveis se eu tiro as pessoas em que eles se saíram muito mal'. É claro que (o estudo) parece ótimo (se você tira os pacientes que morreram), mas não é honesto fazer isso", diz Bik à BBC News Brasil.

- Um dos autores é também editor-chefe do periódico onde o estudo foi publicado, o International Journal of Antimicrobial Agents. "Isso pode ser percebido como um enorme conflito de interesses, em particular ao lado de um processo de revisão de pares (quando cientistas revisam o estudo de seus colegas) que durou menos de 24 horas", escreveu Bik na época. "É o equivalente a permitir que um estudante dê a nota de seu próprio trabalho escolar."

Bolsonaro com caixa de cloroquina, em foto de setembro de 2020

CRÉDITO,CAROLINA ANTUNES/PR

Legenda da foto,

Bolsonaro com caixa de cloroquina, em foto de setembro de 2020; o chamado 'kit covid' tem sido apontado como prejudicial ao tratamento da covid-19

'Era necessário pesquisar mais'

A pesquisadora concorda que, em meio a uma pandemia, processos científicos tradicionalmente lentos precisam mesmo ser apressados.

"Isso (os questionamentos) não necessariamente indica que a hidroxicloroquina não funciona, mas sim que o estudo não era bem feito. O que é compreensível: em março do ano passado, tudo era tão incerto e todos buscavam uma droga maravilhosa que pudesse ajudar", prossegue a pesquisadora.

"Mas não acho que com base nesse estudo em particular era possível tomar grandes decisões sobre como tratar milhões de pessoas. Era necessário pesquisar muito mais."

A BBC News Brasil consultou Didier Raoult por e-mail a respeito das críticas a suas pesquisas e sobre o processo legal contra Bik, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.

Em entrevista recente ao jornal francês Le Figaro, Raoult diz que não tem arrependimentos. "Nunca disse que (a droga) curaria 100% dos pacientes. Mas sustento que essa molécula melhora as condições de pacientes precoces ou avançados, mas não na fase final (da doença)", declarou.

Desde esse estudo inicial, diz Bik à BBC News Brasil, "eu esperava que haveria outro estudo para sustentar (as conclusões), mas ainda não vi nenhum outro estudo mostrando que esse primeiro estava correto. Houve estudos mostrando que estava errado e houve muitos estudos em uma zona cinza, (dizendo que) em algumas situações (a cloroquina) pode ter ajudado um pouquinho, mas na maioria dos casos não parece ter ajudado e, na verdade, parece ter deixado os pacientes em pior estado, principalmente se eles já estivessem muito doentes. O que, por sinal, era o que o estudo inicial alegava - não dizia que (a hidroxicloroquina) era para ser profilático ou preventivo, e sim que era para melhorar pessoas muito doentes. É o que o estudo tentou provar inicialmente, mas não provou, não apresentou dados."

É bom destacar que foram encontrados erros também na outra ponta do espectro: em junho de 2020, o prestigioso periódico The Lancet anunciou a retratação de um artigo científico publicado no mês anterior que refutava os benefícios da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. Retratações ocorrem quando quando algum tipo de má-conduta, como fraude ou erro, é detectada no estudo.

O saldo desse debate neste momento é de que a cloroquina, junto ao conjunto de remédios do chamado "kit covid-19", não são reconhecidos - ou são ativamente contraindicados - pela Organização Mundial da Saúde (OMS), os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos e da Europa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) no tratamento do coronavírus.

Dr Didier Raoult

CRÉDITO,GETTY IMAGES

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Didier Raoult, conhecido médico francês, é o autor do estudo inicial e mantém a defesa dele

"Quando esse estudo na The Lancet foi retratado, fez com que muita gente dissesse: 'nenhuma pesquisa é confiável'. O que, na minha opinião, não está correto", afirma Elisabeth Bik.

"Houve tanta informação em 2020, e acho que algumas pessoas estão prontas para acreditar no que quer que escutem (...), mais do que nos cientistas. O que é uma pena, porque a ciência é a resposta para resolver problemas. Mas as pessoas não conseguem mais distinguir a verdade da mentira", lamenta.

Trabalho de 'detetive científico' encontrou 'usinas de estudos' fraudados

O trabalho de Bik em integridade científica às vezes é comparado com o de um detetive: "recebo muitas dicas, gente pedindo: 'você pode olhar estas imagens, ver estes estudos?'", conta.

"Também tenho uma grande planilha de estudos em que já identifiquei (incongruências) no passado e dos quais ainda não tive tempo de investigar os estudos dos mesmos autores. Às vezes 'photoshopam' (ou seja, copiam imagens de outros estudos) e você pensa: se fizeram uma vez, podem ter feito outras. Mas nunca sobra tempo para checar todos os pedidos, recebo muito mais dicas do que consigo investigar."

O foco principal de Bik é na duplicação de imagens, ou seja, no uso irregular de imagens antigas para ilustrar estudos novos, como se elas apresentassem uma nova descoberta. A cientista também esmiúça eventuais conflitos de interesse nas pesquisas.

"Por exemplo, casos em que o autor é fundador de uma startup e promove determinada descoberta, da qual ele também tem a patente, mas sem revelar isso. É preciso explicitar essa informação. Você pode publicar, claro, mas precisa explicitar que 'sou fundador dessa startup e posso enriquecer com o que é promovido por esta pesquisa'."

Além das críticas ao estudo francês da cloroquina, o trabalho de Bik também teve repercussão no ano passado ao ajudar a desmascarar o que ela chama de "usinas de estudos" fraudulentos: junto com outros pesquisadores, ela identificou, particularmente na China, mais de 500 estudos que parecem ter sido copiados entre si, e depois vendidos a "clientes" - médicos de hospitais chineses que dependem de ter estudos publicados em seu nome para avançar na carreira, diz ela.

"Às vezes as pessoas são forçadas a escrever estudos sob condições irreais. Temos esse exemplo da China: se você é um médico que concluiu a universidade, precisa publicar um estudo mesmo que não queira ser pesquisador, queira apenas trabalhar em um hospital. Mas você sequer tem tempo sobrando para fazer pesquisa, ou seu hospital sequer tem infraestrutura de espaço ou equipamentos para pesquisa. Essas pessoas se veem sem saída, então acabam comprando um estudo. E há empresas dedicadas a fazer estudos falsos. São 'usinas de estudos' (paper mills, em inglês). Acreditamos que sejam grupos de crime organizado, dedicados a vender e publicar estudos falsos."

Em agosto do ano passado, autoridades chinesas iniciaram uma investigação sobre o caso.

Laboratório científico

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

'Em uma emergência (como a pandemia), você quebra as regras, porque todos estão esperando por respostas. Mas aprendemos que a ciência rápida não é necessariamente a melhor ciência', diz Bik

Pressão para publicar

Para Bik, para além dessas usinas, erros e problemas em pesquisas podem ser acidentais ou de boa-fé, relacionados à pressão enorme sobre pesquisadores para que tenham trabalhos publicados com rapidez - particularmente em momentos de crise, como a pandemia atual. Idas e vindas são também parte normal do trabalho científico, que muitas vezes exige anos até que se tenha clareza sobre o impacto de um determinado tratamento ou medicamento, por exemplo.

Em outros casos, porém, erros parecem ser fruto de problemas mais graves.

"Há cientistas trabalhando em universidades que têm grandes expectativas. Podem ter publicado estudos bem-sucedidos, mas pode ser que as pesquisas (atuais) não estejam indo muito bem, então podem cometer fraude para continuar a ter bons resultados. Há também pesquisadores que trabalham em laboratórios sob o comando de professores assediadores: 'se você não me trouxer esses resultados, será demitido e contratarei alguém que os consiga'. Alguns são ameaçados verbalmente ou, por exemplo, ameaçados de perder seu visto e ter de voltar para seu país de origem", explica.

Essa ciência malfeita, opina Bik, tem consequências de longo prazo: torna mais difícil que cientistas consigam reproduzir os experimentos ou tirar conclusões a partir deles. E assim uma grande cadeia de pesquisas científicas pode ser prejudicada.

A principal lição tirada por Bik de 2020, ano em que tanta pesquisa foi feita, é de que "normalmente, estudos médicos levam muito tempo. Um bom projeto costuma levar ao menos um ano ou vários anos para ser concluído, então qualquer coisa pesquisada em poucas semanas em uma pandemia não vai ter a melhor qualidade, embora seja necessária - em uma emergência, você quebra as regras, porque todos estão esperando por respostas. Mas aprendemos que a ciência rápida não é necessariamente a melhor ciência".

  • Paula Adamo Idoeta
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE

quinta-feira, 23 de julho de 2020

A maior barata do mundo


Bathynomus raksasaDireito de imagemLIPI
Image captionA Bathynomus raksasa (termo que significa 'gigante' em língua indonésia) foi encontrada no Estreito de Sunda.

As notícias científicas neste ano, dominado pela pandemia global e por invasões de nuvens de gafanhotos, tem sido pouco comuns.

Agora, cientistas da Indonésia anunciaram que encontraram um dos maiores crustáceos já vistos no fundo do mar, que descreveram como uma gigante barata do mar.

A nova criatura pertence ao gênero Bathynomus, que são isópodes gigantes (grandes criaturas com corpos achatados e duros, da família dos tatuzinhos-de-jardim) e vivem em águas profundas.

Bathynomus raksasa (raksasa significa "gigante" em língua indonésia) foi encontrada no Estreito de Sunda, entre as ilhas indonésias de Java e Sumatra, bem como no Oceano Índico, em profundidades de 957 m e 1.259 m abaixo do nível do mar.

Quando adultas, as criaturas medem em média 33 cm e são consideradas "supergigantes" em tamanho. Outras espécies de Bathynomus podem atingir 50 cm da cabeça à cauda.

BathynomusDireito de imagemLIPI
Image captionO Bathynomus raksasa mede, em média, 33cm da cabeça à cauda.

"Seu tamanho é realmente muito grande e ocupa a segunda maior posição no gênero Bathynomus", disse a pesquisadora Conni Margaretha Sidabalok, do Instituto de Ciências da Indonésia (LIPI).

Existem apenas sete espécies conhecidas de isópodes supergigantes no mundo.

É a primeira vez que uma Bathynomus foi encontrada no fundo do mar na Indonésia — uma área em que pesquisas semelhantes são escassas, segundo informou a equipe na revista ZooKeys.

Cahyo Rahmadi, chefe de zoologia da LIPI, disse que a descoberta é uma indicação de "como o grande potencial de biodiversidade da Indonésia ainda não foi revelado".

Gigante

BathynomusDireito de imagemLIPI
Image captionIsópodes supergigantes podem crescer até 50 cm

De acordo com o Museu de História Natural de Londres, existem diferentes teorias para explicar por que os isópodes do fundo do mar são tão grandes.

Uma teoria sustenta que os animais que vivem nessas profundezas precisam carregar mais oxigênio, então seus corpos são maiores, com pernas mais longas.

Outro fator é que não existem muitos predadores no fundo do mar, o que permite crescer com segurança até tamanhos maiores.

Além disso, a Bathynomus tem menos carne do que outros crustáceos, como os caranguejos, tornando-as menos apetitosas para predadores.

Bathynomus também possui antenas longas e olhos grandes (ambos recursos para ajudá-la a navegar na escuridão de seu habitat).

Mas elas não são tão ameaçadoras quanto sua aparência sugere. Essas criaturas vagam pelo fundo do oceano, procurando por pedaços de animais mortos para se alimentar.

Segundo o Museu de História Natural de Londres, seu metabolismo é incrivelmente lento. Há relatos de que um isópode gigante mantido em cativeiro no Japão teria sobrevivido por cinco anos sem comer.

BathynomusDireito de imagemLIPI
Image captionBathynomus se alimentam de carne de animais mortos que caem no fundo do mar.

A pesquisa conjunta foi uma colaboração entre o LIPI, a Universidade Nacional de Cingapura e o Museu de História Natural Lee Kong Chian.

Durante uma expedição de duas semanas em 2018, a equipe descobriu e coletou milhares de criaturas de 63 áreas diferentes e identificou uma dúzia de novas espécies.

A equipe descreveu dois espécimes de Bathynomus: um macho e uma fêmea, medindo 36,3 cm e 29,8 cm, respectivamente.

Quatro espécimes de jovens Bathynomus também foram coletadas das águas do Estreito de Sunda e do sul de Java, mas Sidabalok disse que as espécies não podiam ser identificadas porque algumas das características definidoras ainda não haviam sido desenvolvidas.


BBC

Professor Edgar Bom Jardim - PE

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Bioética:Essenciais para o planeta, manguezais no Nordeste são 'sufocados' por petróleo



Praia de TamandaréDireito de imagemCLEMENTE COELHO JÚNIOR
Image captionManguezais no nordeste são atingidos por petróleo que assola costa brasileira há quase dois meses
O petróleo que há quase dois meses atinge a costa brasileira no maior acidente ambiental do país em extensão e duração chegou aos manguezais —e isso é grave.
Primeiro, porque os manguezais são "ecossistemas essenciais" para o planeta, como são unânimes em descrever os especialistas. Segundo, porque é praticamente impossível retirar o petróleo dessas regiões.
O óleo chegou a manguezais em pelo menos três Estados. Em Pernambuco, atingiu pelo menos sete rios. Também chegou a áreas de mangue em estuários de Sergipe e da Bahia.
Manguezais são ecossistemas costeiros, de transição entre a terra e o mar, que ficam em regiões tropicais e subtropicais do planeta. É ali onde ficam aquelas plantas retorcidas por cima da lama escura que, de acordo com a maré, ora ficam cobertas pela água salgada do mar, ora ficam expostas com as raízes fincadas na água que se mistura à dos rios.
Peixes, camarões, moluscos, caranguejos e outros organismos habitam esses ecossistemas.
O Brasil tem quase 14 mil quilômetros quadrados de áreas de manguezais, segundo o Atlas dos Manguezais do Brasil, um documento produzido pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) publicado em 2018.
Além disso, o país tem a maior extensão contínua de manguezais do mundo, e fica em segundo ou terceiro lugar entre os países com maior área de manguezal — a classificação muda de acordo com a metodologia aplicada.
Rio Massangana, PEDireito de imagemCLEMENTE COELHO JÚNIOR/DIVULGAÇÃO
Image captionManguezal é considerado um ecossistema essencial para o planeta: é berçário da vida marinha e contribui para o combate do aquecimento global
"Meu medo é que a gente dê muita atenção para a praia e se esqueça de olhar para o manguezal, onde tem o berçário das espécies. Isso vai ter impacto a médio e longo prazo muito grande", diz à BBC News Brasil Marcio Alves-Ferreira, professor do Departamento de Genética da UFRJ que pesquisou o impacto de petróleo em plantas de mangue.
E por que os manguezais são tão importantes para a natureza?
Eles prestam uma série de "serviços", de acordo com a professora do Instituto Oceonográfico da USP, Yara Schaeffer Novelli, e o biólogo e oceanógrafo Clemente Coelho Júnior, professor da Universidade de Pernambuco que está participando do trabalho de retirada de petróleo das praias. Ambos são fundadores do BiomaBrasil, instituto que dá capacitações formal e informal sobre conservação da biodiversidade.
Eles citam algumas dessas funções dos manguezais:
1. Berçário natural: de 70% a 80% das espécies de importância econômica passam pelo menos uma fase da vida nos sistemas de manguezal, o que faz com que os mangues sejam conhecidos como os "berçários naturais" da vida marinha.
Ali, os filhotes ficam em seus primeiros estágios de desenvolvimento, aproveitando o ambiente mais calmo, onde as raízes das árvores dão proteção e eles. Como é um ambiente cheio de nutrientes, os filhotes também têm alimentação ali. Depois, migram para o mar aberto.
2. Protege de processo natural de erosão: o mangue atenua o processo de erosão costeiro, protegendo todo litoral. A pressão e energia do mar que atingiriam a costa são dissipadas no mangue.
"O manguezal protege as costas das ações de ressacas, de tsunamis. Isso foi bem provado no tsunami de 2004, no dia 26 de dezembro em Sumatra [Indonésia]. Onde ainda havia manguezal, as comunidades que estavam por trás dessa barreira natural foram menos prejudicadas que aquelas comunidades que já haviam substituído os manguezais por resorts, plantações de arroz e outros", lembra Schaeffer Novelli.
Plantas no mangue em Rio Massangana, Suape (Pernambuco)Direito de imagemCLEMENTE COELHO JÚNIOR/DIVULGAÇÃO
Image captionOs manguezais também promovem um filtro biológico e retêm sedimentos de rios antes de seu desague no mar; na foto, rio Massangana, em Pernambuco
3. Filtro biológico: a floresta tem capacidade de "digerir" matéria orgânica e absorver muitos nutrientes. Se esgoto é lançado no rio, por exemplo, os mangues filtram isso, retendo as substâncias, absorvendo nutrientes e acumulando em sua biomassa.
4. Retenção de sedimentos: os rios correm arrastando solo e sedimentos, e quando chegam no estuário as partículas se acumulam nas raízes do mangue. Isso significa que o mangue cuida do leito do rio, assoreando, retendo os sedimentos antes de chegarem ao mar, garantindo uma água mais limpa na zona costeira.
5. Combate ao aquecimento global: dentro dos ecossistemas, as florestas de mangue são as que mais sequestram carbono da atmosfera. Isso significa que o mangue ajuda a combater o aquecimento global. "O manguezal tem importância nesse contexto moderno das mudanças climáticas por ser muito eficiente fixador e acumulador de carbono", diz Schaeffer Novelli.
6. Importância cultural e cênica: em muitas regiões as áreas de manguezal são tidas como sagradas. Além disso, sua beleza cênica é importante para o turismo.

'Como é que vai ficar a situação para quem vive só da pesca?'

A chegada do petróleo tem um impacto não apenas no ecossistema como também na renda de quem depende dele para sobreviver.
"Aqui no nosso estuário de Rio Formoso nós infelizmente já demos de cara com esse óleo. Tivemos sorte porque foi uma maré pequena. Mesmo assim, chegou a afetar os manguezais. Pouco, mas afetou", diz Francisco Assis, de 65 anos, pescador e secretário da colônia de pescadores de Rio Formoso, a 88km do Recife (PE).
Ele faz parte de um grupo de pescadores e voluntários que têm se empenhado para limpar os manguezais.
petróleo na Praia de TamandaréDireito de imagemCLEMENTE COELHO JÚNIOR/DIVULGAÇÃO
Image captionPetróleo visto na praia de Tamandaré, em Pernambuco; pescadores serão afetados pela redução de pescado e organismos contaminados
Ali, ele diz, há famílias inteiras que vivem da pesca. A colônia que representa tem cerca de 300 pescadores, mas ele estima que no município todo cerca de 2 mil pessoas trabalhem com a pesca, ganhando cerca de um salário mínimo (R$ 998) por mês, às vezes trabalhando com o corte de cana-de-açúcar de dia e a pesca à noite.
"Lá dentro é onde estão os moluscos, onde as marisqueiras... O sururu, o marisco, a ostra, aratu, caranguejo. Com a penetração desse óleo, vai comprometer todos esses seres vivos. Tudo isso é complicado para nós, pescadores. Sem contar a grande contaminação no peixe. Já encontramos peixe mortos no estuário. Isso dificulta para muito pescadores", lamenta. "Como é que vai ficar a situação para quem vive só da pesca?"
Ele faz uma pausa na entrevista à BBC News Brasil para conversar com outros pescadores que o procuravam. Ele conta o que disseram: "Uma pescadora comeu um peixe e depois passou mal. E depois outro pescador foi para a cidade vender os peixes. Chegando lá, eles estavam todos podres, sem condições de venda".
Esse impacto do petróleo nos manguezais é o mais próximo dos humanos. Mas por trás dele há todo um processo que afeta as plantas e os organismos, de forma imediata e depois de forma crônica.

Manguezal 'sufocado'

Ao chegar ao manguezal, o petróleo primeiro provoca um impacto agudo, diz Coelho Júnior à BBC News Brasil. Dependendo da maré, pode recobrir as raízes das plantas de mangue, o caule das árvores e os organismos que vivem ali.
Quando plantas de manguezais são atingidas por petróleo, elas sofrem o que se chama de "estresse". "As plantas são acostumadas a ficar sem água ou a ficar na água com sal. Mas elas não estão adaptadas a lidar com esse tipo de estresse do petróleo. Elas sofrem", diz Ferreira, o professor do Departamento de Genética da UFRJ. Ele é autor de um estudo publicado em 2018 que avaliou o que acontece geneticamente com as plantas expostas a petróleo.
Petróleo no rio Massangana, SuapeDireito de imagemCLEMENTE COELHO JÚNIOR/DIVULGAÇÃO
Image captionEspecialistas dizem que é praticamente 'impossível' retirar o petróleo do mangue
Ele diz que a reação das plantas observadas em sua pesquisa foi a seguinte: hipóxia, que é a falta de oxigênio e que impede que a planta respire, e estresse por calor, já que o petróleo impede a transpiração da planta para diminuir sua temperatura. Cobertas, as árvores também podem deixar de executar a fotossíntese e morrer.
Com a planta sob estresse, "o bioma passa a sofrer por conta de seu estado". Isso porque as plantas vão cessar sua atividade de crescimento e deixar de se reproduzir, sem produzir flores e sementes. Também não produzem novas raízes ou folhas, de onde animais se nutrem e se alimentam.
Segundo Ferreira, com a ausência dessa produção, os animais vão deixar a região, e em curto prazo será possível notar uma redução do pescado. Isso atrapalha toda a cadeia alimentar. Além disso, não haverá plantas novas para substituir as que morreram.
Depois, há um impacto crônico. Quando o petróleo começar a se decompor, vai liberar moléculas que podem ser nocivas. Os animais que entrarem em contato com as moléculas dissolvidas podem ter respostas de deformação de tecidos e órgãos, levando até à morte.
E, se não morrerem, isso pode ser transferido na cadeia alimentar para aves que os consomem, por exemplo, e inclusive para humanos, que também consomem esses animais.
Mapa dos Manguezais do Brasil produzido pelo IbamaDireito de imagemIBAMA
Image captionMapa dos Manguezais do Brasil produzido pelo Ibama mostra quantidade de ecossistema na costa brasileira
"Participei como perita judicial no caso de derramamento de óleo de 1983 no canal da Bertioga, que atingiu área muito grande de manguezal. Esse óleo impregnou no manguezal. As árvores perderam suas folhas, galhos, troncos", relata Schaeffer Novelli, da USP. "Matou todo o bosque, e esse óleo até hoje continua aprisionado no substrato daquele manguezal."
Todos os pesquisadores concordam que é muito difícil tirar o petróleo dos manguezais. Não existe protocolo no mundo sobre como fazer isso. É muito difícil tirar o petróleo incrustado nas raízes e troncos, e não dá para salvar os animais expostos, como os caranguejos, por exemplo, como é possível com tartarugas.
"Na praia é relativamente fácil para limpar, até. Quando chega no mangue, o petróleo cobre as raízes das plantas, e as plantas são especiais. Sufoca o manguezal. Não tem como tirar isso de maneira simples como se faz na praia. É dramático", diz Alexandre Soares Rosado, professor titular da UFRJ, do Instituto de Microbiologia. "Eu diria que é impossível", afirma Schaeffer Novelli, da USP.

E agora?

Por isso, a palavra que todos os especialistas repetem é "prevenir".
O Estado de Pernambuco colocou barreiras na desembocadura de oito rios. Em Sergipe, o governo federal só colocou barreiras depois de uma decisão da Justiça provocada por um pedido do Ministério Público. O governo argumentou que as barreiras não funcionariam.
"Nos casos em que o óleo derramado é de origem conhecida e sua dispersão é prevista, a instalação de barreiras em águas calmas é tecnicamente recomendável para proteger pontos sensíveis, como manguezais. Contudo, se os manguezais já estiverem oleados, a medida poderá provocar o efeito inverso e impedir a depuração natural do ambiente", disse o Ibama, em nota.
Clemente diz que não funcionam necessariamente 100%, mas já ajudam — ele viu o petróleo sendo retido em um barreira. "A questão agora não é se vai funcionar ou não. Temos que testar tudo o que pudermos. Não sabemos ainda quanto de petróleo vai chegar, então temos que recorrer a todas as coisas possíveis e imagináveis", diz ele, que também ressalta ser importante conter "as grandes manchas ainda em alto-mar".
Para Schaeffer Novelli, depois da contaminação será preciso fazer um monitoramento para entender o quão grave foi a contaminação. E também "um rescaldo, como depois de um grande incêndio: ver quanto custou, qual foi o prejuízo que os pescadores e marisqueiros tiveram, que os que têm jangadas e fazem passeios na zona costeira tiveram", entre outros.
Praia de TamandaréDireito de imagemCLEMENTE COELHO JÚNIOR
Image captionUma possibilidade para a retirada de petróleo dos manguezais a longo prazo é a biorremediação, mas não há garantia de que funcionará
Rosado, do Instituto de Microbiologia da UFRJ, já testou uma solução que normalmente fica restrita a laboratórios.
Em 2010, ele e outros pesquisadores fizeram um teste na Baía de Todos-os-Santos, que estava contaminada com petróleo. O que fizeram se chama biorremediação. O mangue tem bactérias já adaptadas para degradar hidrocarbonetos — e o petróleo é formado por hidrocarbonetos. Então, os cientistas usaram um coquetel de bactérias do próprio manguezal para degradar diferentes partes do óleo.
Como os manguezais não estão preparados para degradar tantos hidrocarbonetos, cientistas entram como médicos, fazem um diagnóstico e balanceiam a "dieta" do manguezal.
O experimento deu certo, mas Rosado diz que não existe fórmula mágica e será preciso avaliar cada contaminação em cada manguezal, já que há diferentes tipos de contaminação e diferentes tipos de manguezais. Não há garantias de que dê certo. Ele também usou a biorremediação na estação brasileira da Antártida, que pegou fogo em 2012 e deixou o solo contaminado com diesel.
Schaeffer Novelli diz esperar que os efeitos dessa contaminação de petróleo nos manguezais no nordeste do Brasil não sejam "tão dramáticos". "O óleo que está chegando é muito denso. Já perdeu grande parte de seus subprodutos químicos", diz ela. Então, o maior efeito desse petróleo pode ser "físico, de recobrir as estruturas".
"Esse óleo não deve penetrar tanto quanto um óleo mais novo, mais recente, mais fino, com componentes mais aromáticos como o de 1983 [do canal de Bertioga, onde ela trabalhou como perita]. Eu quero demais acreditar que o efeito seja mais físico, de recobrimento, ficando mais nas franjas, e que seus efeitos não sejam tão dramáticos."
Professor Edgar Bom Jardim - PE