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quarta-feira, 27 de março de 2024

Lula e Macron: o que une e o que afasta o presidente francês do brasileiro



Lula e Macro

CRÉDITO,RICARDO STUCKERT/PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

Legenda da foto,

Lula e Macron durante visita do presidente brasileiro a Paris. Macron chega nesta terça-feira (26/03) ao Brasil para uma viagem de três dias

  • Author,Leandro Prazeres
  • Role,Da BBC News Brasil em Brasília

presidente da França, Emmanuel Macron, chega ao Brasil na terça-feira (26/3) para sua primeira visita bilateral a um país da América Latina desde que assumiu o poder, em 2017.

O país será o único da região a ser visitado desta vez pelo presidente francês. Ele vai ficar três dias e passar por cinco cidades: Belém, Rio de Janeiro, Itaguaí (RJ), São Paulo e Brasília.

Macron terá encontros com o presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) no início e no final da viagem.

Sua visita tem um caráter simbólico importante, avalia Carolina Pavese, a doutora em Relações Internacionais pela London School of Economics (LSE) e especialista em Europa


"Essa visita é simbólica para romper um período de tensão nas relações entre o Brasil e a França vivido durante o governo Bolsonaro", diz Pavese à BBC News Brasil.

Durante os quatro anos em que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) governou, ele e o presidente francês chegaram a trocar farpas públicas. A visita marca, portanto, uma reaproximação.

"É uma aproximação tardia, uma vez que Macron ainda não havia vindo ao Brasil ou à América Latina, mas que finalmente está ocorrendo."

O presidente francês será recebido em Belém por Lula, com quem mantém um relacionamento aparentemente mais amistoso do que o que teve com Bolsonaro.

Segundo o Itamaraty, o comércio, o combate às mudanças climáticas e a cooperação militar serão alguns dos principais eixos da visita de Macron ao Brasil.

Lula e Macron já deram demonstrações de convergências em temas que vão do combate ao avanço da extrema-direita no mundo, defesa do meio ambiente e a necessidade de um cessar-fogo no conflito na Faixa de Gaza.

Apesar disso, diplomatas e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a viagem de Macron também deverá deixar evidentes as principais divergências entre os dois presidentes.

Entre elas estão a oposição de Macron ao acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul e o tratamento dado pelo Brasil durante as reuniões do G20, presidido pelo Brasil, à guerra na Ucrânia.

Submarinos, combate à direita radical e Gaza

Submarino brasileiro

CRÉDITO,ALAN SANTOS/PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

Legenda da foto,

Submarino Riachuelo foi lançado ao mar em 2018 e é da leva de embarcações de programa firmado entre Brasil e a França. Macron participará do lançamento do terceiro submarino de um total de cinco previstos


Um dos principais pontos de convergência entre Lula e Macron é a cooperação militar entre os dois países. Há expectativa de que os dois países assinem memorandos de entendimento nesta área durante a passagem de Macron pelo Brasil. De um lado, a França é um importante fornecedor de produtos de defesa no mercado internacional. Do outro, o Brasil é um importante consumidor de tecnologia militar francesa.

"Para além dos ganhos diplomáticos dessa visita, há uma agenda objetiva e pragmática de cooperação em áreas importantes da agenda brasileira e francesa. Entre elas, uma das principais é a cooperação em assuntos de defesa", disse Carolina Pavese.

Um dos principais eventos da viagem de Macron ao país será sua participação na cerimônia de lançamento ao mar do submarino "Toneleiro", o terceiro produzido pelo Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub), fruto de um acordo firmado pelo Brasil e a França em 2008, quando Lula estava em seu segundo mandato.

No total, o programa prevê a construção de quatro submarinos convencionais e um movido a propulsão nuclear. O custo estimado das embarcações é de R$ 31 bilhões. O projeto é considerado estratégico pelo Brasil pois apenas seis países no mundo têm submarinos nucleares: Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França, China e Índia.

Esse tipo de embarcação utiliza um reator nuclear para gerar a energia que vai impulsioná-lo. Esse tipo de propulsão dá mais autonomia ao submarino. Isso não significa, porém, que ele carregará armas nucleares.

O Brasil é signatário de tratados internacionais contra a utilização de armas desse tipo.

A vinda de Macron acontece em um momento em que França e Brasil vem aumentando o diálogo em torno da parte mais sensível do Prosub, que é a parte nuclear. Até agora, o acordo com a França previa cooperação e troca de tecnologia na parte naval dos submarinos e não na parte nuclear.

O Brasil vem encontrando dificuldade em obter auxílio tecnológico para a parte nuclear do projeto, que inclui o acondicionamento do reator no casco e sua conexão com o sistema que vai gerar a sua propulsão.

Nos últimos meses, o governo francês enviou emissários ao Brasil para tratar do assunto e, na sexta-feira (22/03), a secretária para Europa e América do Norte do Ministério das Relações Exteriores, afirmou que os dois países vêm conversando sobre a possibilidade de os franceses ajudarem o Brasil na fase nuclear do projeto.

"É uma área em que talvez houvesse uma resistência no passado, mas hoje já há conversas sobre essa possibilidade: de que a França coopere conosco inclusive nesse aspecto à luz da energia nuclear, do combustível nuclear", disse a embaixadora Maria Luisa Escorel de Moraes, Secretária de Europa e América do Norte do Itamaraty durante uma entrevista coletiva à qual a BBC News Brasil participou.

"[A participação de Macron no lançamento do submarino] talvez será será um dos momentos mais importantes da visita à luz da importância do setor da defesa (para os dois países), não só para defesa, mas porque o desenvolvimento de equipamentos de defesa de um, modo geral, costumam transbordar para outros setores da nossa economia", disse diplomata.

Além da cooperação militar, Macron e Lula também convergem quando o assunto é combate ao crescimento da direita radical.

Na França, a principal adversária política de Macron durante as eleições de 2022 foi Marine Le Pen, maior liderança do partido de direita Reagrupamento Nacional. No Brasil, o principal adversário político também é um político de direita: Jair Bolsonaro.

Lula e Macron já fizeram discursos críticos à ampliação da direita radical.

“Muitos dos nossos compatriotas votaram em mim não pelas minhas ideias, mas para barrar as ideias da extrema direita”, disse Macron logo após ser reeleito em 2022.

Em setembro do ano passado, foi a vez de Lula se manifestar sobre o assunto.

"O neoliberalismo agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias. Seu legado é uma massa de deserdados e excluídos. Em meio aos seus escombros surgem aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem soluções tão fáceis quanto equivocadas", disse Lula em discurso na Assembleia Geral da ONU.

Ainda no âmbito político, os governos do Brasil e da França vêm convergindo em relação às tentativas de pôr um fim ao conflito na Faixa de Gaza.

Em outubro do ano passado, pouco depois do início da ofensiva israelense sobre o território palestino, a França apoiou uma proposta que o Brasil havia feito ao Conselho de Segurança da ONU propondo pausas humanitárias em meio ao conflito.

A França é membro permanente do conselho e tem direito a veto e, na época, o Brasil exercia a presidência rotativa do colegiado.

A proposta, no entanto, acabou sendo rejeitada pelo veto dos Estados Unidos.

Publicamente, Macron e Lula condenaram as ações terroristas praticadas pelo Hamas contra Israel, mas vêm criticando o governo israelense pela escala da reação militar na Faixa de Gaza, embora o tom adotado pelo brasileiro tenha causado reação por parte de Israel.

"De fato, hoje, civis estão sendo bombardeados. Esses bebês, essas senhoras, esses idosos são bombardeados e mortos. Então, não há razão para isso e não há legitimidade. Por isso, nós instamos Israel a parar", disse Macron em entrevista à BBC News em novembro do ano passado.

Lula, por sua vez, classificou a ação de Israel na Faixa de Gaza como um "genocídio" e fez uma menção ao extermínio de judeus pelo regime nazista.

"O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu: quando o Hitler resolveu matar os judeus."

Após a fala, o governo de Israel reagiu e declarou que o presidente brasileiro é persona non grata no país.

Na linguagem diplomática, a expressão se aplica a um representante estrangeiro que não é mais bem-vindo em missões oficiais em determinado país.

Autoridades francesas afirmaram, na semana passada, que a crise no Oriente Médio estará na agenda de discussões entre Lula e Macron.

combatente na guerra da ucrânia

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Lula e Emmanuel Macron têm divergido sobre a guerra na Ucrânia

Acordo com União Europeia e guerra na Ucrânia

A relação entre Lula e Macron também é marcada por divergências. A principal delas, apontam especialistas, é a oposição de Macron à conclusão do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, negociado desde 1999.

Em 2019, durante o governo de Bolsonaro, Mercosul e União Europeia assinaram o acordo. Para entrar em vigor, no entanto, o acordo precisava passar por uma revisão técnica e pela ratificação dos parlamentos de todos os países envolvidos.

Após quatro anos paralisado, o acordo voltou a ser negociado após a mudança de governo no Brasil, com a chegada de Lula ao Palácio do Planalto, em 2023.

As negociações, no entanto, foram travadas após os europeus fazerem novas exigências ambientais que foram consideradas descabidas pelos negociadores do Mercosul.

Nos últimos meses, Macron deu diversas declarações contrárias ao acordo. Segundo ele, as regras poderiam acabar permitindo a entrada de produtos oriundos do Mercosul produzidos sem o respeito às normas ambientais europeias.

"O que é incompreensível e que e eu mesmo não sei explicar é que, enquanto nós mesmos colocamos regras de produção, importamos produtos que não respeitam essas regras", afirmou Macron em fevereiro.

Lula, por sua vez, rechaçou a oposição ao acordo em dezembro de 2023, após Macron fazer novas críticas ao tratado.

"Se não tiver acordo, paciência. Não foi por falta de vontade. A única coisa que tem que ficar claro é que não digam mais que é por conta do Brasil e que não digam mais que é por conta da América do Sul. Assumam a responsabilidade de que os países ricos não querem fazer um acordo na perspectiva de fazer qualquer concessão. É sempre ganhar mais", disse Lula.

Para o professor de Relações Internacionais da ESPM, Demetrius Pereira, a oposição de Macron é uma resposta à pressão contra o acordo feita por agricultores franceses.

"É um lobby muito forte e que, historicamente, realiza protestos muito ruidosos contra a possibilidade de maior entrada de produtos agrícolas estrangeiros", disse o professor à BBC News Brasil.

Para a professora Carolina Pavese, apesar do tom amistoso entre Lula e Macron, os dois deverão agir de forma pragmática em relação ao acordo.

"Amigos, amigos, negócios à parte. Essa relação pode ser amistosa, mas os presidentes continuarão a demonstrar suas insatisfações em torno desse tema em que há uma divergência tão clara. É óbvio que o fato de serem próximos facilita as conversas, mas não é suficiente para resolver esse impasse", disse a professora.

A embaixadora Maria Luísa Escorel de Moraes afirmou que o acordo comercial entre os dois blocos deverá ser discutido por Lula e Macron nesta semana, mas disse que, por se tratar de uma visita bilateral, o tema não será central ao longo da viagem.

"Esse assunto poderá ser tocado [...] mas essa negociação é entre o Mercosul e a Comissão Europeia. Não é uma negociação com os países da União Europeia individualmente. A Comissão Europeia fala por todos os países. E a grande maioria é a favor (do acordo)", disse a diplomata.

A segunda divergência que poderá ficar evidente durante a passagem de Macron pelo Brasil é com relação à guerra na Ucrânia.

Especialistas avaliam que Macron tentará influenciar o governo brasileiro a dar mais espaço para o conflito ucraniano durante as reuniões do G20, grupo das 20 maiores economias do mundo que, neste ano, é presidido pelo Brasil.

O tema vem causando entraves nas reuniões de líderes já realizadas até o momento. Em março, por exemplo, houve um impasse durante a reunião de ministros de finanças do grupo sobre como o conflito seria tratado no comunicado final do encontro.

Segundo o jornal "O Estado de S.Paulo", o impasse se deu porque um grupo de países defendia que o tema fosse tratado como "War on Ukraine", ou seja: Guerra contra a Ucrânia. Outro grupo, defendia que o tema fosse tratado como "War in Ukraine", ou seja: Guerra na Ucrânia.

"A expectativa é de que Macron tente influenciar a agenda do G20 para que o Brasil dê mais importância ao conflito na Ucrânia. Apesar de o Brasil condenar a invasão russa, o país vem tratando esse assunto com muita cautela e Macron gostaria de uma posição mais enfática", disse Carolina Pavese.

Na semana passada, autoridades do governo francês disseram a jornalistas que Macron tentará encontrar "convergências" sobre o tema com Lula para definir uma possível agenda de suporte à Ucrânia.

O presidente francês têm sido um dos principais aliados do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, desde que a Rússia iniciou sua ofensiva militar sobre o país em 2022.

Lula, por sua vez, vem sendo criticado por parte da comunidade internacional em razão da sua postura em relação ao conflito.

Ele deu declarações apontando que tanto Zelensky quanto o presidente russo, Vladimir Putin, seriam responsáveis pela guerra.

Em fevereiro do ano passado, por exemplo, Lula disse em entrevista que o Brasil não forneceria armas para a Ucrânia, contrariando diversos aliados europeus e os Estados Unidos.

Em abril do ano passado, Lula chegou a criticar os Estados Unidos e a Europa por fornecerem armamentos para a Ucrânia, o que, para os europeus, é considerado fundamental para evitar o avanço russo sobre o país.

O governo aliás, não atendeu a pedidos para fornecer armamentos ao país.

A diplomata Maria Luísa Escorel de Moraes disse, na semana passada, que a guerra na Ucrânia, assim como o conflito em Gaza, deverá fazer parte das conversas entre os dois presidentes.

A expectativa é de que Lula e Macron se dirijam à imprensa na quinta-feira (28/03), último dia da viagem do presidente francês


Professor Edgar Bom Jardim - PE

domingo, 17 de março de 2024

Haiti: 5 fatores que explicam as raízes históricas da crise permanente



Homem em meio a pneus em chamas no Haiti

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O noticiário vem mostrando o caos que assola o Haiti nos últimos dias, mas crise do país tem raízes históricas



Assolado pela pobreza, periodicamente sacudido por desastres naturais, submerso em uma dívida histórica e com a instabilidade endêmica dos seus governos, o Haiti parece viver em uma crise permanente.

O assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse (1968-2021) e o recrudescimento da violência pelas gangues criminosas já causaram milhares de mortes e levaram o país ao seu limite.

Mas os males do Haiti têm raízes m

1. Instabilidade política

O Haiti sofre com a instabilidade política desde a sua independência, em 1804.



Seu primeiro governante, Jean-Jacques Dessalines (1758-1806), proibiu a escravidão, mas concentrou todo o poder em si próprio, ao se declarar governador-geral vitalício do país. E, poucos meses depois, ele se autonomeou imperador Jacques 1º.

Ele foi assassinado – um destino que foi seguido por diversos líderes haitianos – e sua sucessão levou a uma guerra civil.

O século 19 presenciou uma sucessão de governantes, muitos deles vitalícios. Mas seu poder durava poucos anos e eles acabavam derrubados por revoltas, assassinados ou exilados.

A influência alemã no país crescia cada vez mais, causando preocupação nos Estados Unidos. Por isso e para proteger seus interesses na região, os americanos invadiram o Haiti em 1915.

Eles só saíram em 1943, depois que conseguiram alterar a legislação haitiana. Passou a ser permitida, por exemplo, a compra de terrenos por estrangeiros, o que intensificou a influência das empresas norte-americanas na economia e na política do Haiti.

François e Jean Claude Duvalier

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O regime ditatorial de François 'Papa Doc' Duvalier e seu filho Jean Claude 'Baby Doc' aterrorizou o país e levou à criação de grupos criminosos, como os paramilitares chamados 'tontons macoutes



A segunda metade do século 20 foi marcada pelos violentos governos de François "Papa Doc" Duvalier (1907-1971) e seu filho, Jean-Claude "Baby Doc" (1951-2014).

A ditadura dos Duvalier durou 29 anos. Nesse período, a corrupção esvaziou os cofres do país e a repressão policial resultou em cerca de 30 mil mortos ou desaparecidos.

Depois de um golpe militar fracassado em 1958, François Duvalier tentou enganar as forças armadas criando uma milícia pessoal, os tontons macoutes (expressão equivalente ao "homem do saco", no idioma crioulo falado no Haiti). Sua função era aterrorizar a população, proteger o governante e perseguir seus opositores


Seu filho Jean-Claude Duvalier se manteve no poder até que uma rebelião o obrigou a se exilar na França, em 1986.

Em 1990, depois de vários golpes de Estado, o Haiti escolheu seu primeiro presidente democraticamente eleito: o ex-sacerdote Jean-Bertrand Aristide.

Alçado ao poder pelos menos favorecidos, Aristide cumpriu apenas sete meses de mandato. Ele foi derrubado por outro golpe militar e precisou seguir para o exílio.

Aristide conseguiu voltar ao Haiti em 1994, graças a uma intervenção militar norte-americana. Ao chegar, ele dissolveu o exército.

Dois anos depois, René Préval ganhou as eleições e sucedeu Aristide na presidência. O ex-sacerdote seria eleito presidente mais uma vez em novembro de 2000.

Gráfico mostra líderes que estiveram no poder no Haiti entre 1957 e 2024

Mas, depois de contínuas crises políticas e econômicas, Aristide foi obrigado a se retirar em 2004, quando a oposição se tornou cada vez mais violenta.

Houve acusações de fraude eleitoral, mortes extrajudiciais, tortura e brutalidade. No mesmo ano, as Nações Unidas enviaram uma missão de paz para o Haiti, que passou 13 anos no país.

Préval voltou a ganhar as eleições em 2006 e conseguiu terminar seu mandato de cinco anos. Mas o terrível terremoto de 2010 devastou grande parte do país, exacerbando os problemas políticos, econômicos e sociais do Haiti.

Depois do governo do presidente Michel Martelly, o empresário Jovenel Moïse ganhou as eleições de 2016. Seu mandato foi marcado por protestos contra o governo, frequentemente violentos, e pelas acusações de corrupção.

No dia 7 de julho de 2021, Moïse foi assassinado a tiros por um grupo de mercenários colombianos, na sua casa, perto da capital haitiana, Porto Príncipe. Até hoje, não se conseguiu descobrir quem ordenou o assassinato do presidente.

Sua morte deixou um vazio de poder e grupos armados tomaram o controle de grande parte do país.

Seu ex-primeiro-ministro, Ariel Henry, assumiu o poder de forma interina, mas o recrudescimento dos protestos o obrigou a renunciar na segunda-feira (11/3).

Com isso, o Haiti não tem governante no momento.

Jovenel Moïse

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O Haiti não tem um governante eleito desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021




2. Violência extrema

O Haiti está mergulhado na violência, em grande parte, devido às cerca de 200 gangues que controlam grandes regiões do país, especialmente em Porto Príncipe.

Dados das Nações Unidas indicam que a violência já deslocou internamente quase 314 mil pessoas.

Desde os brutais tontons macoutes criados por "Papa Doc" em 1958, as facções criminosas só aumentaram sua presença, especialmente nos momentos de vazio de poder.

Quando Aristide eliminou o exército, que era marcado pela corrupção, o Estado perdeu sua capacidade de lutar contra o crime organizado.

Os narcotraficantes haitianos trabalhavam então estreitamente com o cartel de Medellín, na Colômbia, segundo um dos diretores do Centro de Estudos Latino-Americanos e Caribenhos da Universidade de Essex, no Reino Unido, Nicolas Forsans.

O Haiti funcionava como intermediário do tráfico de drogas da Colômbia para os Estados Unidos. Isso corrompeu muitos funcionários e policiais "e se tornou uma fonte de renda pouco conhecida, mas considerável, para as elites políticas e empresariais do Haiti, que ofereciam proteção e apoio logístico aos narcotraficantes", explica Forsans no site de notícias acadêmicas The Conversation.

Gráfico mostra proporção de policiais por habitantes no Haiti e no mundo

O terremoto de 2010 permitiu que muitos chefes de facções criminosas fugissem da prisão. Isso incentivou as gangues, que realizaram sequestros, ataques à polícia, aos meios de comunicação e a políticos. Elas transformaram o dia a dia de muitos haitianos em um inferno.

Atualmente, a maioria das gangues é afiliada a duas facções predominantes: a G-9 e Família, chefiada por Jimmy Chérizier, conhecido como "Barbecue", e a G-Pep, liderada por Gabriel Jean-Pierre.

Fundada em 2020, a G-9 é vinculada ao Partido Haitiano Tèt Kale (PHTK), de Moïse e Henry. A organização supostamente angariou votos para o partido, segundo o portal especializado Insight Crime.

A gangue controla atividades econômicas fundamentais, como o porto da capital, terminais petrolíferos e os pontos de entrada e saída de Porto Príncipe.

A G-Pep está sediada em Cité Soleil, o bairro mais pobre e mais povoado da capital. Ela é principalmente apoiada pelos opositores do PHTK, "embora não esteja claro até que ponto ela recebe apoio material ou financeiro desses opositores atualmente", destacava Insight Crime em um relatório de dois anos atrás.

Estimativas da ONU indicam que o número de mortos pela violência das gangues duplicou no ano passado, superando a marca de 5 mil assassinatos.

A polícia conta com poucos recursos para enfrentá-las e muitos agentes abandonaram a força policial no último ano, segundo um relatório das Nações Unidas.

Atualmente, existe no Haiti 1,3 policial para cada 1 mil habitantes. O padrão internacional é de 2,2.

Além disso, a violência se estendeu das cidades para a zona rural. E, para o secretário-geral da ONU, António Guterres, este é "mais um motivo sério de alarme".

3. Dívida e intervenção estrangeira

O Haiti foi o primeiro país latino-americano a declarar independência. É a república negra mais antiga do mundo e a segunda república mais antiga do hemisfério ocidental, atrás apenas dos Estados Unidos.

A rebelião iniciada pelas pessoas escravizadas em 1791 contra os colonizadores franceses culminou com a declaração de independência do Haiti, em 1804.

Mas a liberdade teve um preço. A luta pela libertação do domínio francês destruiu a maior parte das plantações e da infraestrutura do país, deixando o Haiti em graves dificuldades econômicas.

Nenhum país quis reconhecer diplomaticamente o Haiti, até que a França concordou com o reconhecimento da independência em 1825. Mas não sem condições: o novo país deveria pagar reparações pelas fazendas perdidas e pelas pessoas escravizadas que foram libertadas. Caso contrário, iria enfrentar uma guerra.

Foi assim que o Haiti se comprometeu a pagar uma indenização de 150 milhões de francos (cerca de US$ 21 bilhões em valores de hoje, ou R$ 104,6 bilhões), em cinco parcelas.

Ilustração mostra um marinheiro francês branco jogando homens negros ao mar

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Após a violenta revolta que originou a independência do Haiti, a França exigiu ressarcimento pelas terras e pessoas escravizadas perdidas pelos colonizadores

Mas a receita anual do governo haitiano representava apenas 10% do valor exigido pela França, de forma que o país não contava com os fundos necessários para fazer os pagamentos. Para isso, o Haiti precisava pedir um empréstimo.

A antiga metrópole concordou, desde que fosse contratado junto a um banco francês. E assim começou formalmente o que é conhecido como a dívida da Independência.

As comissões draconianas impostas pelo banco Crédit Industriel et Commercial (hoje, CIC) fizeram com que o novo país passasse a ter duas dívidas: a já contratada com a França e outra, com o banco francês.

O Haiti precisou pedir enormes empréstimos a bancos norte-americanos, franceses e alemães, com taxas de juros exorbitantes. O país foi obrigado a destinar a maior parte do orçamento nacional ao pagamento da dívida.

O Haiti só terminou de compensar os donos das plantações da colônia francesa em 1947. Mas a França não foi o único país que ocupou e esvaziou os cofres daquela que, um dia, foi a pérola das Antilhas.

Em 1915, 330 fuzileiros navais dos Estados Unidos desembarcaram em Porto Príncipe para defender os interesses das empresas norte-americanas no país, tomado pela instabilidade política. E esta primeira incursão foi seguida por outra ainda maior.

Os Estados Unidos assumiram o controle da alfândega e das principais instituições econômicas do Haiti, como os bancos e o tesouro nacional – que foi praticamente esvaziado para pagar as dívidas com as empresas norte-americanas.

Em 1922, Washington obrigou o Haiti a tomar empréstimos de Wall Street, o que deixou o país afogado em novas dívidas. A ocupação americana durou até 1943, mas o controle financeiro do país se prolongou por décadas.

Mãe com duas crianças no Haiti

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A pobreza fez com que a desnutrição entre as crianças atingisse níveis sem precedentes no Haiti

4. Pobreza

Toda essa instabilidade política, aliada à violência e à espoliação financeira, trouxe consequências evidentes ao país e seus habitantes. O Haiti, hoje, é o país mais pobre da América Latina e do Caribe – e um dos mais pobres do mundo.

Seu PIB per capita, em paridade do poder de compra, foi de apenas US$ 3.306 (cerca de R$ 16,5 mil) em 2022, segundo o Banco Mundial. E este número não considera a desigualdade de renda entre seus habitantes.

Em termos comparativos, o PIB per capita médio da América Latina e do Caribe no mesmo período foi de US$ 19.269 (cerca de R$ 95,9 mil).

O Haiti também ocupa o 163º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano calculado pela ONU, em um total de 191 países.

Mais da metade da sua população vive abaixo do limite da pobreza. A estimativa de vida é de pouco mais de 64 anos, principalmente devido às péssimas condições de vida em grande parte do país e à fragilidade do seu sistema de saúde.

A fome e a desnutrição também atingiram níveis sem precedentes, com efeitos potencialmente mortais, segundo as Nações Unidas.

Em 2023, três milhões de crianças – o maior número já registrado – precisavam de ajuda humanitária no Haiti. Quase uma em cada três crianças sofre desnutrição crônica no país.

A situação é particularmente grave nos bairros assolados pela violência. Um exemplo é Cité Soleil, em Porto Príncipe, que mantém um triste recorde: aquele foi, por anos, o bairro mais pobre da capital mais pobre do país mais pobre do continente americano.

Gráfico mostra a renda per capita no Haiti em relação a outros países latino-americanos e ao mundo

As péssimas condições sanitárias enfrentadas por grande parte da população haitiana também fazem com que algumas doenças transmissíveis causem graves danos.

O país tem, por exemplo, uma das taxas de incidência de tuberculose mais altas da região. A cólera causou cerca de 10 mil mortes após o terremoto que devastou o país em 2010 e, agora, voltou a surgir em alguns pontos do Haiti.

E 1,7% da população adulta é portadora do vírus HIV, segundo os números do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/AIDS (UNAIDS).

Some-se ainda que cerca de 40% da população é de analfabetos, segundo dados do Banco Mundial – e apenas a metade das crianças frequenta a escola, pelos números do Unicef.

Com um Estado debilitado e sacudido por desastres naturais periódicos, o país tem infraestrutura extremamente pobre.

Todas estas razões fizeram do Haiti um país seriamente dependente da ajuda internacional. Calcula-se que, entre 2011 e 2021, o país caribenho tenha recebido pelo menos US$ 13 bilhões (cerca de R$ 64,7 bilhões) em auxílio.

Ainda assim, o Haiti continua sendo um país pobre, em parte, porque esta dependência internacional substituiu o Estado, que deixou de estar presente entre a população. É o que afirmam economistas como Jake Johnston, do think tank Centro de Pesquisa Econômica e Política, com sede nos Estados Unidos.

"Nos últimos 30 e poucos anos, observamos a terceirização do Estado haitiano", declarou Johnston ao jornalista Ronald Ávila-Claudio, da BBC News Mundo.

"Mesmo antes do terremoto de 2010, 80% dos serviços públicos no Haiti tinham controladores privados, sejam eles organizações sem fins lucrativos, igrejas, bancos de desenvolvimento ou o setor privado, mas não o Estado."

Mulher chora em meio às ruínas de sua casa

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96% dos habitantes do Haiti estão sujeitos a desastres naturais

5. Desastres naturais

O Haiti é especialmente vulnerável aos desastres naturais devido à sua própria geografia.

O país se encontra no caminho dos furacões do Oceano Atlântico e repousa sobre duas falhas geológicas que o tornam um território com alta atividade sísmica. Mas algumas das piores consequências desses desastres naturais foram agravadas pela mão humana.

A pobreza e o quase desaparecimento do Estado propiciaram o desmatamento e a degradação ambiental, que multiplica o efeito dos furacões. Paralelamente, a precariedade das construções faz com que o número de vítimas e destroços dos terremotos seja muito maior.

Dos quase 12 milhões de habitantes do Haiti, 96% estão expostos a este tipo de desastre.

O Haiti fica no extremo ocidental da ilha de La Hispaniola, dividida entre o país e a República Dominicana. Seu terreno é acidentado, marcado pelos vales e a maior parte da população está concentrada no litoral.

Mapa mostra falhas geológicas na região do Haiti

O Banco Mundial calcula que 98% das suas florestas tenham sido derrubadas, principalmente para a produção de lenha e carvão. Isso causou a erosão do solo e forte escassez de água potável.

A erosão do solo não afeta apenas a agricultura. Ela torna o Haiti ainda mais vulnerável aos furacões e tempestades tropicais que atingem periodicamente o país, causando graves inundações e deslizamentos de terra.

Em 2016, por exemplo, a passagem do furacão Matthew causou danos de mais de 32% do Produto Interno Bruto (PIB) do país.

O Haiti também está localizado em meio a um vasto sistema de falhas geológicas, resultantes da movimentação da placa do Caribe e da enorme placa da América do Norte. A Falha de Enriquillo-Plantain Garden atravessa todo o sul do país, enquanto a Falha Setentrional Oeste percorre o norte.

Elas provocaram alguns dos terremotos mais devastadores dos últimos tempos, como o de magnitude 7 que sacudiu o país em 2010. Nele, morreram 250 mil pessoas e, segundo o Banco Mundial, foi destruído o equivalente a 120% do PIB do Haiti.

Em outros países do mundo, como o Chile e o Japão, ocorrem terremotos de magnitude similar ou até superior, sem produzir o mesmo número de vítimas. Mas as estruturas de concreto simples das cidades haitianas, sem nenhum amortecimento, desmoronaram como um castelo de cartas.

Em 2021, a natureza atacou em duas frentes. Um terremoto de magnitude 7,2 matou cerca de 2 mil pessoas e destruiu 30% da península ao sul do país. Poucos dias depois, a tempestade tropical Grace exacerbou a situação, causando inundações e deslizamentos de terra.

E os especialistas advertem que as consequências da crise climática só irão piorar a situação desse país já flagelado por inúmeros males



Professor Edgar Bom Jardim - PE