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domingo, 17 de março de 2024

Haiti: 5 fatores que explicam as raízes históricas da crise permanente



Homem em meio a pneus em chamas no Haiti

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O noticiário vem mostrando o caos que assola o Haiti nos últimos dias, mas crise do país tem raízes históricas



Assolado pela pobreza, periodicamente sacudido por desastres naturais, submerso em uma dívida histórica e com a instabilidade endêmica dos seus governos, o Haiti parece viver em uma crise permanente.

O assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse (1968-2021) e o recrudescimento da violência pelas gangues criminosas já causaram milhares de mortes e levaram o país ao seu limite.

Mas os males do Haiti têm raízes m

1. Instabilidade política

O Haiti sofre com a instabilidade política desde a sua independência, em 1804.



Seu primeiro governante, Jean-Jacques Dessalines (1758-1806), proibiu a escravidão, mas concentrou todo o poder em si próprio, ao se declarar governador-geral vitalício do país. E, poucos meses depois, ele se autonomeou imperador Jacques 1º.

Ele foi assassinado – um destino que foi seguido por diversos líderes haitianos – e sua sucessão levou a uma guerra civil.

O século 19 presenciou uma sucessão de governantes, muitos deles vitalícios. Mas seu poder durava poucos anos e eles acabavam derrubados por revoltas, assassinados ou exilados.

A influência alemã no país crescia cada vez mais, causando preocupação nos Estados Unidos. Por isso e para proteger seus interesses na região, os americanos invadiram o Haiti em 1915.

Eles só saíram em 1943, depois que conseguiram alterar a legislação haitiana. Passou a ser permitida, por exemplo, a compra de terrenos por estrangeiros, o que intensificou a influência das empresas norte-americanas na economia e na política do Haiti.

François e Jean Claude Duvalier

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O regime ditatorial de François 'Papa Doc' Duvalier e seu filho Jean Claude 'Baby Doc' aterrorizou o país e levou à criação de grupos criminosos, como os paramilitares chamados 'tontons macoutes



A segunda metade do século 20 foi marcada pelos violentos governos de François "Papa Doc" Duvalier (1907-1971) e seu filho, Jean-Claude "Baby Doc" (1951-2014).

A ditadura dos Duvalier durou 29 anos. Nesse período, a corrupção esvaziou os cofres do país e a repressão policial resultou em cerca de 30 mil mortos ou desaparecidos.

Depois de um golpe militar fracassado em 1958, François Duvalier tentou enganar as forças armadas criando uma milícia pessoal, os tontons macoutes (expressão equivalente ao "homem do saco", no idioma crioulo falado no Haiti). Sua função era aterrorizar a população, proteger o governante e perseguir seus opositores


Seu filho Jean-Claude Duvalier se manteve no poder até que uma rebelião o obrigou a se exilar na França, em 1986.

Em 1990, depois de vários golpes de Estado, o Haiti escolheu seu primeiro presidente democraticamente eleito: o ex-sacerdote Jean-Bertrand Aristide.

Alçado ao poder pelos menos favorecidos, Aristide cumpriu apenas sete meses de mandato. Ele foi derrubado por outro golpe militar e precisou seguir para o exílio.

Aristide conseguiu voltar ao Haiti em 1994, graças a uma intervenção militar norte-americana. Ao chegar, ele dissolveu o exército.

Dois anos depois, René Préval ganhou as eleições e sucedeu Aristide na presidência. O ex-sacerdote seria eleito presidente mais uma vez em novembro de 2000.

Gráfico mostra líderes que estiveram no poder no Haiti entre 1957 e 2024

Mas, depois de contínuas crises políticas e econômicas, Aristide foi obrigado a se retirar em 2004, quando a oposição se tornou cada vez mais violenta.

Houve acusações de fraude eleitoral, mortes extrajudiciais, tortura e brutalidade. No mesmo ano, as Nações Unidas enviaram uma missão de paz para o Haiti, que passou 13 anos no país.

Préval voltou a ganhar as eleições em 2006 e conseguiu terminar seu mandato de cinco anos. Mas o terrível terremoto de 2010 devastou grande parte do país, exacerbando os problemas políticos, econômicos e sociais do Haiti.

Depois do governo do presidente Michel Martelly, o empresário Jovenel Moïse ganhou as eleições de 2016. Seu mandato foi marcado por protestos contra o governo, frequentemente violentos, e pelas acusações de corrupção.

No dia 7 de julho de 2021, Moïse foi assassinado a tiros por um grupo de mercenários colombianos, na sua casa, perto da capital haitiana, Porto Príncipe. Até hoje, não se conseguiu descobrir quem ordenou o assassinato do presidente.

Sua morte deixou um vazio de poder e grupos armados tomaram o controle de grande parte do país.

Seu ex-primeiro-ministro, Ariel Henry, assumiu o poder de forma interina, mas o recrudescimento dos protestos o obrigou a renunciar na segunda-feira (11/3).

Com isso, o Haiti não tem governante no momento.

Jovenel Moïse

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O Haiti não tem um governante eleito desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021




2. Violência extrema

O Haiti está mergulhado na violência, em grande parte, devido às cerca de 200 gangues que controlam grandes regiões do país, especialmente em Porto Príncipe.

Dados das Nações Unidas indicam que a violência já deslocou internamente quase 314 mil pessoas.

Desde os brutais tontons macoutes criados por "Papa Doc" em 1958, as facções criminosas só aumentaram sua presença, especialmente nos momentos de vazio de poder.

Quando Aristide eliminou o exército, que era marcado pela corrupção, o Estado perdeu sua capacidade de lutar contra o crime organizado.

Os narcotraficantes haitianos trabalhavam então estreitamente com o cartel de Medellín, na Colômbia, segundo um dos diretores do Centro de Estudos Latino-Americanos e Caribenhos da Universidade de Essex, no Reino Unido, Nicolas Forsans.

O Haiti funcionava como intermediário do tráfico de drogas da Colômbia para os Estados Unidos. Isso corrompeu muitos funcionários e policiais "e se tornou uma fonte de renda pouco conhecida, mas considerável, para as elites políticas e empresariais do Haiti, que ofereciam proteção e apoio logístico aos narcotraficantes", explica Forsans no site de notícias acadêmicas The Conversation.

Gráfico mostra proporção de policiais por habitantes no Haiti e no mundo

O terremoto de 2010 permitiu que muitos chefes de facções criminosas fugissem da prisão. Isso incentivou as gangues, que realizaram sequestros, ataques à polícia, aos meios de comunicação e a políticos. Elas transformaram o dia a dia de muitos haitianos em um inferno.

Atualmente, a maioria das gangues é afiliada a duas facções predominantes: a G-9 e Família, chefiada por Jimmy Chérizier, conhecido como "Barbecue", e a G-Pep, liderada por Gabriel Jean-Pierre.

Fundada em 2020, a G-9 é vinculada ao Partido Haitiano Tèt Kale (PHTK), de Moïse e Henry. A organização supostamente angariou votos para o partido, segundo o portal especializado Insight Crime.

A gangue controla atividades econômicas fundamentais, como o porto da capital, terminais petrolíferos e os pontos de entrada e saída de Porto Príncipe.

A G-Pep está sediada em Cité Soleil, o bairro mais pobre e mais povoado da capital. Ela é principalmente apoiada pelos opositores do PHTK, "embora não esteja claro até que ponto ela recebe apoio material ou financeiro desses opositores atualmente", destacava Insight Crime em um relatório de dois anos atrás.

Estimativas da ONU indicam que o número de mortos pela violência das gangues duplicou no ano passado, superando a marca de 5 mil assassinatos.

A polícia conta com poucos recursos para enfrentá-las e muitos agentes abandonaram a força policial no último ano, segundo um relatório das Nações Unidas.

Atualmente, existe no Haiti 1,3 policial para cada 1 mil habitantes. O padrão internacional é de 2,2.

Além disso, a violência se estendeu das cidades para a zona rural. E, para o secretário-geral da ONU, António Guterres, este é "mais um motivo sério de alarme".

3. Dívida e intervenção estrangeira

O Haiti foi o primeiro país latino-americano a declarar independência. É a república negra mais antiga do mundo e a segunda república mais antiga do hemisfério ocidental, atrás apenas dos Estados Unidos.

A rebelião iniciada pelas pessoas escravizadas em 1791 contra os colonizadores franceses culminou com a declaração de independência do Haiti, em 1804.

Mas a liberdade teve um preço. A luta pela libertação do domínio francês destruiu a maior parte das plantações e da infraestrutura do país, deixando o Haiti em graves dificuldades econômicas.

Nenhum país quis reconhecer diplomaticamente o Haiti, até que a França concordou com o reconhecimento da independência em 1825. Mas não sem condições: o novo país deveria pagar reparações pelas fazendas perdidas e pelas pessoas escravizadas que foram libertadas. Caso contrário, iria enfrentar uma guerra.

Foi assim que o Haiti se comprometeu a pagar uma indenização de 150 milhões de francos (cerca de US$ 21 bilhões em valores de hoje, ou R$ 104,6 bilhões), em cinco parcelas.

Ilustração mostra um marinheiro francês branco jogando homens negros ao mar

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Após a violenta revolta que originou a independência do Haiti, a França exigiu ressarcimento pelas terras e pessoas escravizadas perdidas pelos colonizadores

Mas a receita anual do governo haitiano representava apenas 10% do valor exigido pela França, de forma que o país não contava com os fundos necessários para fazer os pagamentos. Para isso, o Haiti precisava pedir um empréstimo.

A antiga metrópole concordou, desde que fosse contratado junto a um banco francês. E assim começou formalmente o que é conhecido como a dívida da Independência.

As comissões draconianas impostas pelo banco Crédit Industriel et Commercial (hoje, CIC) fizeram com que o novo país passasse a ter duas dívidas: a já contratada com a França e outra, com o banco francês.

O Haiti precisou pedir enormes empréstimos a bancos norte-americanos, franceses e alemães, com taxas de juros exorbitantes. O país foi obrigado a destinar a maior parte do orçamento nacional ao pagamento da dívida.

O Haiti só terminou de compensar os donos das plantações da colônia francesa em 1947. Mas a França não foi o único país que ocupou e esvaziou os cofres daquela que, um dia, foi a pérola das Antilhas.

Em 1915, 330 fuzileiros navais dos Estados Unidos desembarcaram em Porto Príncipe para defender os interesses das empresas norte-americanas no país, tomado pela instabilidade política. E esta primeira incursão foi seguida por outra ainda maior.

Os Estados Unidos assumiram o controle da alfândega e das principais instituições econômicas do Haiti, como os bancos e o tesouro nacional – que foi praticamente esvaziado para pagar as dívidas com as empresas norte-americanas.

Em 1922, Washington obrigou o Haiti a tomar empréstimos de Wall Street, o que deixou o país afogado em novas dívidas. A ocupação americana durou até 1943, mas o controle financeiro do país se prolongou por décadas.

Mãe com duas crianças no Haiti

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A pobreza fez com que a desnutrição entre as crianças atingisse níveis sem precedentes no Haiti

4. Pobreza

Toda essa instabilidade política, aliada à violência e à espoliação financeira, trouxe consequências evidentes ao país e seus habitantes. O Haiti, hoje, é o país mais pobre da América Latina e do Caribe – e um dos mais pobres do mundo.

Seu PIB per capita, em paridade do poder de compra, foi de apenas US$ 3.306 (cerca de R$ 16,5 mil) em 2022, segundo o Banco Mundial. E este número não considera a desigualdade de renda entre seus habitantes.

Em termos comparativos, o PIB per capita médio da América Latina e do Caribe no mesmo período foi de US$ 19.269 (cerca de R$ 95,9 mil).

O Haiti também ocupa o 163º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano calculado pela ONU, em um total de 191 países.

Mais da metade da sua população vive abaixo do limite da pobreza. A estimativa de vida é de pouco mais de 64 anos, principalmente devido às péssimas condições de vida em grande parte do país e à fragilidade do seu sistema de saúde.

A fome e a desnutrição também atingiram níveis sem precedentes, com efeitos potencialmente mortais, segundo as Nações Unidas.

Em 2023, três milhões de crianças – o maior número já registrado – precisavam de ajuda humanitária no Haiti. Quase uma em cada três crianças sofre desnutrição crônica no país.

A situação é particularmente grave nos bairros assolados pela violência. Um exemplo é Cité Soleil, em Porto Príncipe, que mantém um triste recorde: aquele foi, por anos, o bairro mais pobre da capital mais pobre do país mais pobre do continente americano.

Gráfico mostra a renda per capita no Haiti em relação a outros países latino-americanos e ao mundo

As péssimas condições sanitárias enfrentadas por grande parte da população haitiana também fazem com que algumas doenças transmissíveis causem graves danos.

O país tem, por exemplo, uma das taxas de incidência de tuberculose mais altas da região. A cólera causou cerca de 10 mil mortes após o terremoto que devastou o país em 2010 e, agora, voltou a surgir em alguns pontos do Haiti.

E 1,7% da população adulta é portadora do vírus HIV, segundo os números do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/AIDS (UNAIDS).

Some-se ainda que cerca de 40% da população é de analfabetos, segundo dados do Banco Mundial – e apenas a metade das crianças frequenta a escola, pelos números do Unicef.

Com um Estado debilitado e sacudido por desastres naturais periódicos, o país tem infraestrutura extremamente pobre.

Todas estas razões fizeram do Haiti um país seriamente dependente da ajuda internacional. Calcula-se que, entre 2011 e 2021, o país caribenho tenha recebido pelo menos US$ 13 bilhões (cerca de R$ 64,7 bilhões) em auxílio.

Ainda assim, o Haiti continua sendo um país pobre, em parte, porque esta dependência internacional substituiu o Estado, que deixou de estar presente entre a população. É o que afirmam economistas como Jake Johnston, do think tank Centro de Pesquisa Econômica e Política, com sede nos Estados Unidos.

"Nos últimos 30 e poucos anos, observamos a terceirização do Estado haitiano", declarou Johnston ao jornalista Ronald Ávila-Claudio, da BBC News Mundo.

"Mesmo antes do terremoto de 2010, 80% dos serviços públicos no Haiti tinham controladores privados, sejam eles organizações sem fins lucrativos, igrejas, bancos de desenvolvimento ou o setor privado, mas não o Estado."

Mulher chora em meio às ruínas de sua casa

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96% dos habitantes do Haiti estão sujeitos a desastres naturais

5. Desastres naturais

O Haiti é especialmente vulnerável aos desastres naturais devido à sua própria geografia.

O país se encontra no caminho dos furacões do Oceano Atlântico e repousa sobre duas falhas geológicas que o tornam um território com alta atividade sísmica. Mas algumas das piores consequências desses desastres naturais foram agravadas pela mão humana.

A pobreza e o quase desaparecimento do Estado propiciaram o desmatamento e a degradação ambiental, que multiplica o efeito dos furacões. Paralelamente, a precariedade das construções faz com que o número de vítimas e destroços dos terremotos seja muito maior.

Dos quase 12 milhões de habitantes do Haiti, 96% estão expostos a este tipo de desastre.

O Haiti fica no extremo ocidental da ilha de La Hispaniola, dividida entre o país e a República Dominicana. Seu terreno é acidentado, marcado pelos vales e a maior parte da população está concentrada no litoral.

Mapa mostra falhas geológicas na região do Haiti

O Banco Mundial calcula que 98% das suas florestas tenham sido derrubadas, principalmente para a produção de lenha e carvão. Isso causou a erosão do solo e forte escassez de água potável.

A erosão do solo não afeta apenas a agricultura. Ela torna o Haiti ainda mais vulnerável aos furacões e tempestades tropicais que atingem periodicamente o país, causando graves inundações e deslizamentos de terra.

Em 2016, por exemplo, a passagem do furacão Matthew causou danos de mais de 32% do Produto Interno Bruto (PIB) do país.

O Haiti também está localizado em meio a um vasto sistema de falhas geológicas, resultantes da movimentação da placa do Caribe e da enorme placa da América do Norte. A Falha de Enriquillo-Plantain Garden atravessa todo o sul do país, enquanto a Falha Setentrional Oeste percorre o norte.

Elas provocaram alguns dos terremotos mais devastadores dos últimos tempos, como o de magnitude 7 que sacudiu o país em 2010. Nele, morreram 250 mil pessoas e, segundo o Banco Mundial, foi destruído o equivalente a 120% do PIB do Haiti.

Em outros países do mundo, como o Chile e o Japão, ocorrem terremotos de magnitude similar ou até superior, sem produzir o mesmo número de vítimas. Mas as estruturas de concreto simples das cidades haitianas, sem nenhum amortecimento, desmoronaram como um castelo de cartas.

Em 2021, a natureza atacou em duas frentes. Um terremoto de magnitude 7,2 matou cerca de 2 mil pessoas e destruiu 30% da península ao sul do país. Poucos dias depois, a tempestade tropical Grace exacerbou a situação, causando inundações e deslizamentos de terra.

E os especialistas advertem que as consequências da crise climática só irão piorar a situação desse país já flagelado por inúmeros males



Professor Edgar Bom Jardim - PE

sexta-feira, 1 de março de 2024

Discurso do presidente Lula durante a Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC)


Foto: EBC




Discurso lido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a Cúpula da CELAC, em Kingstown (São Vicente e Granadinas), no dia 1º de março de 2024


É muito bom vir a São Vicente e Granadinas para participar da oitava Cúpula da CELAC.

Este belo e acolhedor país caribenho recebe hoje os líderes responsáveis por tornar realidade nossos ideais de integração.

Uma das experiências mais gratificantes dos meus primeiros mandatos está relacionada ao renascimento do projeto integracionista na primeira década do século XXI.

Tive a oportunidade e a satisfação de viver um momento ímpar desse desejo coletivo de maior aproximação entre nós.

Trabalhamos pelo fortalecimento e ampliação do MERCOSUL e pela criação da UNASUL.

Participei das etapas iniciais de formação da CELAC em 2008, na Bahia, quando reunimos, pela primeira vez, os 33 chefes de Estado e de Governo da América Latina e do Caribe.

Foi preciso esperar 500 anos para que isso acontecesse.

Apesar da nossa diversidade, soubemos avançar a passos firmes na construção de consensos regionais.

Nossa extraordinária variedade cultural, étnica e geográfica não foi um empecilho.

Nossos distintos modelos políticos e econômicos tampouco impediram o esforço permanente pelo entendimento.

Tínhamos a nos unir anseios comuns de justiça social, combate à pobreza e a promoção do desenvolvimento.

Construímos uma cultura de paz e entendimento.

Nos últimos anos, contudo, voltamos a ser uma região balcanizada e dividida, mais voltada para fora do que para si própria.

Entre muitos de nós, a intolerância ganhou força e vem impedindo que diferentes pontos de vista possam se sentar à mesma mesa.

Estamos deixando de cultivar nossa vocação de cooperação e permitindo que conflitos e disputas, muitas delas alheias à região, se imponham.

Defender o fim do bloqueio a Cuba e a soberania argentina nas Malvinas interessa a todos nós.

Todas as formas de sanções unilaterais, sem amparo no Direito Internacional, são contraproducentes e penalizam os mais vulneráveis.

Num momento em que os gastos militares globais ultrapassam 2 trilhões de dólares por ano, recuperar o espírito de solidariedade, diálogo e cooperação não poderia ser mais atual e necessário.

Num mundo em que tantos conflitos vitimam milhares de inocentes, sobretudo mulheres e crianças, nossa região deve ser um exemplo de construção da paz.

Senhoras e senhores,

Não podemos deixar de refletir sobre o nosso lugar no plano internacional.

Num contexto de difusão do poder global e de reforço constante da multipolaridade, a questão que volta a se colocar é se os países da América Latina e do Caribe querem se integrar ao mundo unidos ou separados.

Isso é particularmente relevante no momento atual, em que a nossa região se converterá no centro de gravidade da diplomacia global, ao receber as cúpulas do G20, da APEC, do BRICS e da COP30.

Se falamos como região, temos mais chances de influenciar os grandes debates da atualidade.

Se atuamos juntos, criamos sinergias que fortalecem nossos projetos individuais de desenvolvimento.

As três prioridades da presidência brasileira do G20 dialogam muito com nossos desafios históricos.

Nossa proposta da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, pode se beneficiar do Plano de Segurança Alimentar e Erradicação da Pobreza” da CELAC.

De acordo com a CEPAL, dos 660 milhões de latino-americanos e caribenhos, ainda há 180 milhões de pessoas que não possuem renda suficiente para suas necessidades básicas e 70 milhões ainda passam fome.

Esse é um paradoxo para uma região que abriga grandes e diversificados provedores de alimentos.

O desenvolvimento sustentável e a transição energética são uma urgência do nosso tempo e uma oportunidade para todos nós.

Possuímos o maior potencial energético renovável do mundo, se levarmos em conta a capacidade de produzir biocombustíveis, energia eólica, solar e hidrogênio verde.

Contamos com mais de um 1/3 das reservas de água do planeta e uma biodiversidade riquíssima.

Em nosso solo se encontra vasto e diversificado conjunto de minerais estratégicos de grande importância para os projetos industriais de última geração.

Neste ano em que celebramos os 60 anos da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), vale a pena retomar o debate sobre o caráter estrutural do subdesenvolvimento.

Economistas como Raul Prebisch e Celso Furtado explicitaram os riscos associados a uma inserção internacional baseada unicamente em vantagens comparativas.

Com a integração, podemos atuar para as ferramentas de Inteligência Artificia sejam uma aliada dos nossos projetos de reindustrilização, mitigando seus efeitos nefastos no mercado de trabalho.

O FMI estima que 40% dos empregos no mundo serão negativamente afetados por essas novas tecnologias.

As necessárias reformas das organizações internacionais embutem a demanda por mecanismos inovadores de financiamento.

Os bancos multilaterais de desenvolvimento devem destinar mais recursos, e de forma mais ágil e sem condicionalidades, para iniciativas que realmente façam a diferença.

Com isso, será mais fácil enfrentar nossa deficiente conexão física e investir na construção de estradas, ferrovias, pontes, portos e conexões aéreas que permitam uma efetiva circulação de pessoas e de mercadorias.

Senhoras e senhores,

Agradeço ao companheiro Ralph Gonsalves, uma vez mais, pelo excepcional trabalho realizado durante sua presidência.

Tenho certeza de que a companheira Xiomara Castro terá o mesmo êxito na condução da CELAC.

O Brasil acredita na CELAC como foro de construção de consensos, que cultiva a via do entendimento e que não se deixa tentar por soluções impositivas.

Quero concluir parafraseando o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, grande defensor da vertente regional da política externa brasileira e que nos deixou recentemente.

Para atingir seus objetivos estratégicos de desenvolvimento, os estados da periferia do mundo capitalista precisam enxergar uns aos outros pelos próprios olhos e não pelo prisma dos países centrais.

A CELAC nos proporciona essa possibilidade de pensar nossa inserção no mundo a partir de nossas agendas e interesses.

Meus amigos e minhas amigas,

Na Ucrânia, a cada dia em que os combates prosseguem, aumentam o sofrimento humano, a perda de vidas e a destruição de lares.

No Haiti, precisamos agir com rapidez para aliviar o sofrimento de uma população dilacerada pela caos social. Há anos o Brasil vem dizendo que o problema do Haiti não é só de segurança, mas, sobretudo, de desenvolvimento.

A tragédia humanitária em Gaza requer de todos nós a capacidade de dizer um basta para a punição coletiva que o governo de Israel impõe ao povo palestino.

As pessoas estão morrendo na fila para obter comida.

A indiferença da comunidade internacional é chocante.

Quero aproveitar a presença do secretário-geral da ONU, meu companheiro António Guterres, para propor uma moção da CELAC pelo fim imediato desse genocídio.

O secretário-geral pode invocar o artigo 99 da Carta da ONU para levar a atenção do Conselho tema que ameaça a paz e a segurança internacional.

Faço um apelo ao governo japonês, que assume a presidência do Conselho a partir de hoje, para que paute esse tema com toda a urgência.

Peço aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU que deixem de lados suas diferenças e ponham fim a essa matança.

Já são mais de 30 mil mortos. As vidas de milhares de mulheres e crianças inocentes estão em jogo.

As vidas dos reféns do Hamas também estão em jogo.

Eu quero terminar dizendo para vocês que a nossa dignidade e humanidade estão em jogo. Por isso é preciso parar a carnificina em nome da sobrevivência da humanidade, que precisa de muito humanismo.

Muito obrigado.

gov.br
Professor Edgar Bom Jardim - PE