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sábado, 13 de abril de 2024

A origem da rivalidade entre Israel e Irã e como ela está sendo intensificada pela guerra em Gaza




Partidários do Hezbolá protestam contra Israel em Beirute

CRÉDITO,MANU BRABO / GETTY

Legenda da foto,A inimizade entre o Irã e Israel tornou-se uma das principais fontes de instabilidade no Oriente Médio

*Esta reportagem foi publicada originalmente em 8/4 e atualizada em 13/4

A escalada bélica no Oriente Médio teve um grande desenvolvimento com um ataque de drones lançado pelo Irã contra Israel.

Forças de Defesa de Israel anunciaram no sábado (13/4) que o ataque estava em curso e disseram que as forças israelenses estavam em alerta máximo e “monitorando todos os alvos”.

O ataque era esperado - o Irã havia prometido uma resposta após vários de seus altos comandantes militares morrerem em um ataque contra o consulado do país em Damasco, atribuído a Israel




Além disso, o Exército suspendeu todas as dispensas de soldados, e os serviços de GPS foram bloqueados para atrapalhar a navegação de drones e mísseis intrusos.

Esse é o mais recente episódio de uma inimizade já antiga.

Israel e Irã estão há anos em uma rivalidade sangrenta que virou uma das principais fontes de instabilidade no Oriente Médio e cuja intensidade varia de acordo com o momento geopolítico.

Para Teerã, Israel não tem o direito de existir. Os governantes iranianos consideram o país o "pequeno Satanás", o aliado no Oriente Médio dos Estados Unidos, que chamam de "grande Satanás", e querem que ambos desapareçam da região.

Já Israel acusa o Irã de financiar grupos "terroristas" e de realizar ataques contra seus interesses, movidos pelo antissemitismo dos aiatolás.

A rivalidade entre os "arqui-inimigos" já fez um grande número de mortos, muitas vezes em ações secretas em que nenhum dos governos admite sua responsabilidade.

E a guerra em Gaza só fez as coisas piorarem.

Soldados e homens armados, montam guarda junto a um edifício de Teerã com um pôster de Khomeini colado no fundo

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,O triunfo da Revolução Islâmica de 1979 no Irã marcou o início da rejeição iraniana a Israel

Como começou a rivalidade entre Israel e Irã

As relações entre Israel e o Irã foram bastante cordiais até 1979, quando a chamada Revolução Islâmica dos aiatolás conquistou o poder em Teerã.

E embora tenha se oposto ao plano de fatiamento da Palestina que resultou na criação do Estado de Israel em 1948, o Irã foi o segundo país islâmico a reconhecer Israel, depois do Egito.

O Irã era uma monarquia na qual reinavam os xás da dinastia Pahlavi e um dos principais aliados dos Estados Unidos no Oriente Médio. Assim, o fundador de Israel e seu primeiro chefe de governo, David Ben-Gurion, procurou e conseguiu a amizade iraniana como forma de combater a rejeição do novo Estado judeu de seus vizinhos árabes.

Mas a Revolução de Ruhollah Khomeini, em 1979, derrubou o xá e impôs uma república islâmica que se apresentava como defensora dos oprimidos e tinha como principais marcas a rejeição ao "imperialismo" americano e a Israel.

Ruhollah Khomeini cumprimenta a multidão em Teerã

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,Khomeini e outros líderes da Revolução Islâmica simpatizavam com a causa dos palestinos contra Israel

O novo regime dos aiatolás rompeu as relações com Israel, deixou de reconhecer a validade do passaporte de seus cidadãos e tomou posse da embaixada israelense em Teerã para cedê-la à Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que então liderava a luta por um Estado palestino, contra o governo israelense.

Alí Vaez, diretor do Programa para o Irã do International Crisis Group, um centro de análise, disse à BBC Mundo que "a aversão a Israel foi um pilar do novo regime iraniano porque muitos de seus líderes haviam treinado e participado de ações de guerrilha com palestinos em lugares como o Líbano e tinham uma grande simpatia por eles".

Mas além disso, acredita Vaez, "o novo Irã queria se projetar como uma potência pan-islâmica e levantou a causa palestina contra Israel, que os países muçulmanos árabes tinham abandonado".

Assim, Khomeini começou a reivindicar a causa palestina como sua própria. E grandes manifestações pró-Palestina, com apoio oficial, tornaram-se habituais em Teerã


Homens queimam bandeiras israelenses em manifestação em Teerã

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,As manifestações contra Israel tornaram-se habituais em Teerã

Vaez explica que "em Israel a hostilidade ao Irã só começou mais tarde, na década de 1990, porque antes o Iraque de Saddam Hussein era percebido como uma maior ameaça regional."

Tanto é que o governo israelense foi um dos mediadores que tornou possível o chamado Irã-Contra, o programa pelo qual os Estados Unidos desviaram armamento para o Irã, para que usassem na guerra contra o vizinho Iraque, entre 1980 e 1988.

Mas, com o tempo, Israel começou a ver no Irã um dos principais perigos para sua existência. E a rivalidade entre os dois passou das palavras para os fatos.

Uma 'guerra nas sombras'

Vaez observa que, enfrentando também a Arábia Saudita, outra grande potência regional, e consciente de que o Irã é persa e xiita em um mundo islâmico maioritariamente sunita e árabe, "o regime iraniano percebeu seu isolamento e começou a desenvolver uma estratégia destinada a evitar que seus inimigos pudessem um dia atacá-lo em seu próprio território".

Assim, proliferou uma rede de organizações alinhadas a Teerã que realizavam ações armadas favoráveis aos seus interesses. A libanesa Hezbollah, listada como terrorista pelos Estados Unidos e pela União Europeia, é a mais proeminente. Hoje, o chamado "Eixo da Resistência" iraniano se estende pelo Líbano, Síria, Iraque e Iêmen.

Israel não ficou de braços cruzados e trocou com o Irã e seus aliados ataques e outras ações hostis, muitas vezes em outros países, onde financia e apoia grupos armados que combatem os pró-iranianos.

O estado da relação entre o Irã e Israel foi descrito como uma "guerra nas sombras", na qual ambos já realizaram ataques mútuos sem que, em muitos casos, nenhum dos governos tenha admitido oficialmente sua participação.

Em 1992 o grupo Jihad Islâmico, próximo ao Irã, atacou a embaixada israelense em Buenos Aires, provocando 29 mortes. Pouco antes, o líder do Hezbollah, Abbas al-Musawi, tinha sido assassinado, em um atentado amplamente atribuído aos serviços de inteligência de Israel.

Para Israel, sempre foi uma obsessão minar o programa nuclear iraniano e evitar que chegue o dia em que os aiatolás tenham armas nucleares.

Em Israel não se acredita que o programa nuclear iraniano tenha apenas fins civis. E é amplamente aceito que foram os serviços israelenses que, em colaboração com os Estados Unidos, desenvolveram o vírus de computador Stuxnet, que causou sérios danos às instalações nucleares iranianas na primeira década de 2000.

Um guarda de segurança monta guarda ao lado do reator nuclear de Bushehr, no Irã.

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,Um segurança monta guarda ao lado do reator nuclear de Bushehr, no Irã.

Teerã também denunciou a inteligência israelense como responsável pelos atentados contra alguns dos principais cientistas encarregados de seu programa nuclear.

O caso mais conhecedo foi o assassinato em 2020 de Mohsen Fakhrizadeh, considerado o principal responsável pelo programa. Mas o governo israelense nunca aceitou seu envolvimento nas mortes de cientistas iranianos.

Israel, juntamente com seus aliados ocidentais, acusam o Irã de estar por trás dos ataques com drones e foguetes sofridos por seu território, bem como de ter realizado vários ataques cibernéticos.

Outro motivo de confronto foi a guerra civil desencadeada na Síria a partir de 2011. A inteligência ocidental aponta que o Irã enviou dinheiro, armas e instrutores para apoiar as forças do presidente Bashar Al-Assad contra os insurgentes que tentavam derrubá-lo. Isso disparou o alerta em Israel, que acredita que a vizinha Síria é uma das principais rotas por onde os iranianos enviam armamentos e equipamentos para o Hezbollah no Líbano.

De acordo com o portal de inteligência americano Stratfor, tanto Israel quanto o Irã realizaram ações na Síria destinadas a dissuadir o outro de lançar um ataque em larga escala.

Em 2021, a "guerra nas sombras" chegou ao mar quando Israel apontou o Irã como responsável pelos ataques contra navios israelenses no Golfo de Omã. E o Irã, por sua vez, acusou Israel de atacar seus navios no Mar Vermelho.

Soldados iranianos ajoelhados diante do caixão do responsável pelo programa nuclear de Teerã

CRÉDITO,HAMED MALEKPOUR / GETTY

Legenda da foto,O Irã acusa Israel de ser responsável pelo assassinato do chefe de seu programa nuclear

Como estão as coisas agora

Desde os ataques de 7 de outubro de 2023 realizados pelo Hamas contra Israel, e a ofensiva militar massiva lançada pelo Exército israelense em Gaza em resposta, analistas e governos de todo o mundo expressam preocupação de que o conflito pudesse provocar uma reação em cadeia na região, e um confronto aberto e direto entre iranianos e israelenses.

Os conflitos entre forças israelenses e milicianos supostamente ligados ao Hezbollah na fronteira com o Líbano aumentaram nos últimos meses. Os choques com manifestantes palestinos nos territórios ocupados da Cisjordânia também.

Até os mais recentes desenvolvimentos, tanto Irã quanto Israel vinham evitando elevar a hostilidade e os combates em grande escala.

Um tanque israelense avança em Gaza

CRÉDITO,MENAHEM KAHANA / GETTY

Legenda da foto,A ofensiva israelense em Gaza reativou a hostilidade entre Israel e o Irã

Para Vaez, “a ironia é que ninguém quer um conflito em grande escala agora. Israel está há seis meses em sua devastadora guerra contra o Hamas em Gaza, que afetou muito negativamente sua reputação no cenário internacional e o deixou mais isolado do que nunca. Com essa missão ainda por concluir, ela teria que encarar o Irã, que é um ator estatal e, portanto, muito mais poderoso do que o Hamas".

"O Irã, por sua vez, tem muitos problemas econômicos e seu governo sofre uma crise de legitimidade interna", depois de meses de protestos liderados por mulheres, fartas de restrições religiosas.

Assim, o país também não está nas melhores condições para se colocar contra uma potência militar como Israel, que conta com o apoio dos EUA em caso de guerra declarada.

Os escombros do consulado iraniano em Damasco

CRÉDITO,AMMAR GHALI / GETTY

Legenda da foto,O ataque ao seu consulado em Damasco, no qual vários generais morreram, enfureceu o Irã

Mas o ataque à sua sede diplomática em Damasco, que deixou 13 mortos, incluindo alguns dos mais proeminentes altos comandantes iranianos, como o general da Guarda Revolucionária Mohammad Reza Zahedi e seu adjunto, Hadi Hajriahimi, bateu forte em Teerã.

O Ministério das Relações Exteriores iraniano prometeu "um castigo ao agressor" e seu embaixador na Síria, Hossein Akbari, anunciou que a resposta seria "decisiva".

Com o ataque lançado por Teerã contra o território Israelense, a situação se agrava e está evoluindo rapidamente, com os governos de todo o Médio Oriente reagindo às notícias dos ataques de drones.

A Jordânia, o Líbano e o Iraque, três países localizados na provável trajetória de voo destes drones, fecharam o seu espaço aéreo.

O Irã e Israel também fecharam os seus para todos, exceto aeronaves militares



BBC BRASIL  
  • Guillermo D. Olmo
  • Role,BBC News Mundo

Professor Edgar Bom Jardim - PE

domingo, 31 de março de 2024

Famílias famintas e mães desdentadas: o retrato da miséria na ditadura que ficou 'escondido' nos arquivos do IBGE




Pesquisador do IBGE entrevistando duas mulheres na porta de uma casa simples

CRÉDITO,IBGE

Legenda da foto,

O IBGE enviou 1200 pesquisadores para investigar o consumo familiar em 1974 e 1975



O Brasil vivia a rebarba do milagre econômico — período de acelerado crescimento na primeira metade da Ditadura Militar (1964-1985) — quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) colocou nas ruas 1.200 pesquisadores para percorrer o país e investigar o consumo das famílias, em especial a alimentação, numa das pesquisas mais ousadas e pioneiras da instituição.

Durante 1974 e 1975, o Estudo Nacional de Despesa Familiar (Endef) acompanhou 55 mil residências em todos os Estados, em áreas ruais e urbanas, por sete dias, período em que os pesquisadores acompanhavam os hábitos alimentares dos moradores em todas as refeições, inclusive pesando os alimentos e as sobras.

Para que as famílias não tivessem receio em abrir seus lares e seus hábitos para os pesquisadores, foi lançada a campanha "Abra a porta para o IBGE", com a atriz Regina Duarte como garota-propaganda.

A ampla pesquisa tinha "objetivos múltiplos para atender, basicamente, as necessidades de planejamento do governo", dizia uma publicação de 1978 com parte dos resultados. O IBGE precisava conhecer melhor o consumo das famílias para desenvolver índices de preço (medidas de inflação), indicadores sociais e aperfeiçoar o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB

Ou seja, o Endef serviria como base para outras pesquisas fundamentais para entender o país e planejar a atuação do Estado, naquele momento regido por uma ditadura — regime iniciado há sessenta anos, com o golpe de 31 de março de 1964, que derrubou o presidente João Goulart.


Fim do Matérias recomendadas

Esperava-se também, com a pesquisa, obter uma mapa das deficiências alimentares da população. A importância do levantamento era exaltado em editorial do Jornal do Brasil de agosto de 1974, quando teve início o trabalho de campo.

"Acaba o IBGE de iniciar, em âmbito nacional, um recenseamento menos espetacular que o da população, mas que poderá exercer incalculável influência no planejamento nacional e na própria humanização do país", dizia o jornal.

Cartaz com Regina Duarte sorrindo em que se lê: Abra a porta para ao IBGE

CRÉDITO,IBGE

Legenda da foto,

Regina Duarte, a 'namoradinha do Brasil', foi contratada como garota propaganda do Endef



O aspecto mais inovador do estudo, porém, não serviria diretamente aos objetivos estatísticos, embora fosse considerado essencial para entender as condições de população pelo diretor do Endef, o sociólogo e ex-oficial da Marinha Luiz Afonso Parga Nina.

Por ideia dele, foi inserido nos questionários um espaço para anotação livre, em que era sugerido aos pesquisadores que fossem relatados suas impressões pessoais sobre a situação dos entrevistados e a realização das entrevistas.

O resultado foi um registro detalhado da miséria e da fome que atingiam boa parte da população, apesar do ritmo acelerado de crescimento econômico dos anos anteriores. Essa parte do estudo foi publicado, mas acabou tendo sua circulação restrita, levantando suspeitas de censura pela Ditadura Militar, algo que não chegou a ser comprovado e até hoje é alvo de controvérsia.

"Já fizemos uma média de 120 domicílios, estando 70% na faixa de nível baixo, 20% casos extremos e 10% pessoas que conseguem o necessário para viver. Neste último caso, considero as pessoas que têm um emprego fixo, mas vivem privadas de muita coisa ainda", diz um dos relatos sobre a pesquisa em Uberlândia (MG).

"Nas duas primeiras faixas, a base da alimentação é farinha de mandioca muito grossa feita em casa. O vestuário é sempre doado e, nos casos extremos, as pessoas cobrem o corpo com trapos disformes e imundos que cheiram mal", continuava.

Outro relato, de uma pesquisadora que atuou em Boa Vista (RR), descrevia sérios problemas de saúde da população local: "Devido à má alimentação, são seres totalmente predispostos aos males do meio ambiente. Desde que uma dessas famílias tinha vindo do interior, ninguém pergunta se não teve 'malária' ou até mesmo 'hepatite' porque são doenças comuns no interior."

"Mediante as dificuldades na compra dos remédios, são pessoas que ficam maltratadas para o resto da vida. As mulheres não são privilegiadas. Depois do primeiro filho, perdem logo os dentes (falta de cálcio) e sofrem as consequências de um parto mal feito durante muito tempo", segue o relato.

"Em um domicílio, o homem da casa está enfraquecido devido à falta de alimentação e a senhora dele está débil mental em consequência de um parto mal feito. As crianças são raquíticas, de cor pálida e frequentemente com tosse", descreveu ainda a pesquisadora.

No interior do Paraná, são vários os relatos da equipe do IBGE sobre a dura vida das famílias de boias-frias, que trabalhavam por diárias em fazendas da região.

"A fome tomava conta dos pequenos corpos humanos que habitavam a bela fazenda de café. (...) Soubemos de uma família que ia para o trabalho sem a pequena marmita de almoço, substituíam-no por 'coco guavirova' ou até chegavam ao extremo de comer folha seca de café."

A BBC News Brasil teve acesso à publicação original da pesquisa — hoje disponível online — e a um compilado de relatórios semestrais dos pesquisadores do Endef produzido pelo setor de memória do IBGE em 2014.

'Distribuição restrita'

A BBC News Brasil conversou com o servidor aposentado do IBGE Maurício Vasconcellos, que atuou por anos em diferentes etapas do Endef e, depois, chefiou alguns setores do instituto, como o Departamento de Censo Demográfico.

Ele acompanhou parte do trabalho de campo e chegou a presenciar a morte de um bebê durante o processo de entrevista, devido à extrema vulnerabilidade da família, mas não quis contar detalhes para não se emocionar.

"Esse estudo é terrível, porque, se você for ler, você vai chorar o tempo todo", recorda.

Ele se refere a uma publicação que ganhou o nome de "Estudo das informações não estruturadas do Endef e sua integração com os dados quantificados", produzida por Parga Nina, a partir dos relatos de campo.

Empolgado com a riqueza desse material, o diretor do Endef solicitou relatórios semestrais sobre as pesquisas de campo e sistematizou o material nessa publicação, criando categorias para os relatos, como "penúria alimentar", "condições de saúde e higiene", "emprego-desemprego" e "vida familiar".

"É evidente que algo deve ser feito para captar o que as equipes de campo observaram, sentiram, viveram, ao longo desse ano de trabalho. Seria absurdo não fazer esta tentativa, e estariam perdidas informações que podem ser tão importantes e, em certos aspectos, mais importantes que os dados dos questionários", dizia a introdução do trabalho.

"Não há nenhum sentido em procurar entender a 'realidade sócio-econômica' através de pesquisas, em qualquer campo, se não houver também um esforço para tentar compreender, por um mínimo de convivência, de simpatia, de contato direto, a dimensão humana do que está sendo investigado", reforça outro trecho.

Apesar da grande importância dada a esse trabalho, ele não foi divulgado ao público. Foi impressa uma pequena tiragem de 250 cópias e algumas delas foram enviadas sem alarde a órgãos públicos e bibliotecas, como o Ministério da Saúde e algumas universidades.

Alguns volumes da publicação que permanecem nos arquivos do IBGE tem em sua capa escrita a mensagem "Distribuição restrita", em letra cursiva que seria de Parga Nina.

Há também volumes com o carimbo de "confidencial", que, segundo Maurício Vasconcellos, foram adicionados por ele depois, já após à ditadura, quando exemplares que estavam com a família de Parga Nina retornaram ao IBGE, após a morte dele.

Ele disse à reportagem que tinha receio que de alguns relatos permitissem identificar os entrevistados, ferindo o sigilo que é legalmente garantido às pessoas pesquisadas.

Na sua visão, a decisão de não divulgar o material amplamente nos anos 1970 teria partido do próprio Parga Nina.

"Eram informações brutais, situações horrorosas. Aí ele publicou esses livros e decidiu fazer uma distribuição restrita", lembra.

Na sua visão, não houve uma censura direta do regime.

"A censura estava na imprensa. O IBGE publicava o que queria. Se o dado desagradasse o governo, ele não ia para o jornal. A gente tinha total liberdade para fazer o que quisesse e fazia", contou.

Capas de volumes da pesquisa Endef do IBGE, marcadas com o aviso "distribuição restrita" ou carimbo de "confidencial"

CRÉDITO,IBGE

Legenda da foto,

Exemplares da pesquisa foram marcados com o aviso de 'distribuição restrita'nos anos 70. O carimbo de 'confidencial' foi acrescentado após a Ditadura, segundo o servidor aposentado do IBGE Maurício Vasconcellos

A socióloga Cecília Minayo, pesquisadora aposentada da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), conviveu de perto com Parga Nina nos anos 80, quando ele saiu do IBGE para a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Lá, os dois desenvolveram uma espécie de desdobramento do Endef em menor escala, pesquisando zonas de pobreza no Rio de Janeiro.

Na sua leitura, a decisão de restringir o material seria reflexo de pressões externas e internas. Ela lembra que ele teria virado motivo de piada entre parte do corpo técnico do IBGE, que considerava as pesquisas qualitativas que ele desenvolveu estranhas ao foco estatístico do instituto, embora Parga Nina contasse com o apoio do presidente do órgão, Isaac Kerstenetzky.

"(E por parte) Dos militares, era o medo de que o Brasil grande, o Brasil do ame-o ou deixe-o, pudesse produzir pessoas que comiam barro, comiam fezes, comiam ratos, como a pesquisa de campo mostrou", recorda Minayo.

O Endef, estudo ainda hoje pouco conhecido, teve seu momento de fama logo após o fim da ditadura, quando a revista IstoÉ descobriu essa parte não divulgada da pesquisa.

A publicação deu uma reportagem de capa para o tema em outubro de 1985, com a manchete "Fome Censurada", sobre a imagem de uma criança pobre, nua, segurando um rato.

Parga Nina negou que tenha havido censura em uma carta à revista, disponibilizada à BBC News Brasil por Maurício Vasconcellos.

"O trabalho foi realizado pela administração Isaac Kerstenetzky, com participação pessoal do presidente. Seria totalmente incoerente que viesse ela a fazer sobre seu próprio trabalho a censura descrita na reportagem, ou no editorial", respondeu.

Segundo Leandro Malavota, historiador da Equipe Memória IBGE, não há elementos históricos que permitam responder com certeza por que parte do estudo teve circulação restrita. Na sua leitura, houve uma espécie de autocensura, relacionado ao contexto da ditadura.

"O Endef é o reverso do milagre econômico. Ele mostra o Brasil que a ditadura não queria mostrar. Então, ainda que eu não tenha encontrado nas minhas pesquisas qualquer tipo de determinação formal para que aquelas informações não fossem divulgadas, eu acho que, de certa forma, houve uma contenção por parte dos próprios participantes daquela pesquisa para que aquelas informações muito sensíveis não chegassem ao público", avalia.

Capa da revista IstoÉ de outubro de 1985 com a manchete "Fome Censurada", sobre a imagem de uma criança pobre, nua, segurando um rato

CRÉDITO,REPRODUÇÃO ISTOÉ

Legenda da foto,

Pesquisa foi revelada para o grande público após fim da ditadura, em reportagem de 1985 da IstoÉ

Malavota ressalta que o IBGE, desde sua criação nos anos 1930, no governo de Getúlio Vargas, até a ditadura militar, era visto como um órgão que atendia aos interesses de planejamento do Estado. Ou seja, apenas após a redemocratização, o órgão passou a ser visto como uma instituição voltada para a sociedade, com aumento da transparência.

Ainda assim, lembra ele, as pesquisas costumavam ser divulgadas, como ocorreu com a parte estatística do Endef.

Esse material, porém, não gerou grandes reportagens, até porque o IBGE divulgou, em etapas, dados bem detalhados sobre quantidade de calorias e tipos de nutrientes ingeridos pela população em diferentes regiões, mas não produziu de imediato um indicador mais geral a partir desses números, como qual seria o índice de desnutrição da população — cálculos feitos posteriormente por Maurício Vasconcellos em sua tese de doutorado a partir de dados do Enfed identificaram, numa estimativa conservadora, que ao menos 22% do universo pesquisado seriam de subnutridos.

Uma busca da BBC News Brasil nos arquivos dos jornais O Globo e Jornal do Brasil identificou registros breves sobre os resultados do Endef.

Em oito de março de 77, por exemplo, o jornal O Globo noticiou sem grande destaque a divulgação dos dados preliminares do Rio de Janeiro e da região Sul, que contou com a presença de Isaac Kerstenetzky .

"No Rio de Janeiro, os dados obtidos pela pesquisa indicam que a população do Estado ingere, em média, uma quantidade adequada de calorias, enquanto que a quantidade de cálcio ingerido é menor que as suas necessidades, e a ingestão de proteínas, ferro e vitaminas é superior ao necessário", registrava o jornal.

A matéria acrescentava que não era possível fazer "uma comparação entre a dieta alimentar da população da Baixada Fluminense e aquela de áreas habitadas por pessoas de nível de renda mais elevado".

"O presidente do IBGE explicou que o ENDEF não foi concebido para desagregar os dados a esse nível. Isso, inclusive, em sua opinião, não seria justificável. Para ele o importante é relacionar a dieta alimentar com outros dados como, por exemplo, profissão e a situação econômica dos comensais", dizia ainda a reportagem.

O baixo impacto do Endef junto à opinião pública contrasta com os resultados do Censo de 1970, que geraram forte debate nacional e incomodaram a ditadura ao revelar os altos níveis de desigualdade de renda do país.

Ainda assim, a pesquisa foi de fato usada no desenvolvimento de novos índices de preço e indicadores sociais, além de permitir um cálculo mais preciso do PIB, já que o consumo das famílias tinha — e tem ainda — um peso grande na economia brasileira.

Pesquisadora do IBGE fala com família em frente a uma casa simples

CRÉDITO,IBGE

Legenda da foto,

Relatos dos pesquisadores do IBGE captaram o 'reverso' do milagre econômico, diz historiador

O altos e baixos do IBGE na ditadura

A relação do IBGE com a ditadura militar teve altos e baixos, mas, em geral, o regime foi positivo para o órgão, afirmam ex-funcionários e estudiosos do tema.

Professor adjunto do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Candido Mendes (IUPERJ-UCAM), o sociólogo Alexandre Camargo diz que "os períodos de ouro" da capacidade de produção do IBGE foram momentos de Estado forte, como a Era Vargas e os anos 70, período da presidência de Isaac Kerstenetzky (1970-1979).

Eurico Borba, que foi diretor-geral do IBGE nos anos 70 e depois presidiu o instituto (1992-1993), contou em depoimento ao acervo de memória do IBGE que Kerstenetzky tinha grande prestígio com o ministro do Planejamento da época, o economista João Paulo dos Reis Velloso (1969-1979).

"Eu acho que nós fomos felizes, foi um período abençoado em pleno período militar, nos anos de chumbo, porque basicamente o professor Isaac tinha sido professor do João Paulo dos Reis Velloso. Quando eu levava os problemas e batiam na trave do Ministério do Planejamento, o professor Isaac resolvia", recordou.

Por outro lado, Borba via o então ministro da Economia, Delfim Netto, como "inimigo do IBGE", que teria boicotado o órgão devido aos resultados do Censo de 1970.

"Pouca gente se dá conta que o regime militar começou a balançar com a ideia do milagre brasileiro quando em 1972 nós lançamos um estudo preliminar com uma amostra de 1,85% dos questionários completos do Censo, mostrando que nós tínhamos um problema sério de distribuição de renda, de emprego, de qualificação da habitação, de saneamento, de educação", disse, no depoimento disponível em vídeo.

"E o presidente (Emílio) Médici fez aquele célebre discurso no aeroporto de Recife em que disse 'o Brasil vai bem, o povo vai mal'. O ministro Delfim Netto, desde aquela época, ficou inimigo do IBGE, prejudicando a importação de computadores", continuou.

"Tanto que a primeira parte do censo dos anos 70 foi processada nos computadores da PUC-Rio, porque o Ministério da Fazenda, querendo justificar de qualquer maneira o milagre brasileiro que não existia, impediu a importação dos equipamentos que nós já havíamos comprado da IBM", contou ainda.

Delfim Netto é ainda alvo de críticas quando foi ministro da Agricultura e Secretário do Planejamento no governo João Figueiredo (1979-1985), período em que teria tentando interferir no cálculo da inflação.

Aos 95 anos, Delfim Netto não quis comentar as críticas, por estar focado no cuidado da sua saúde, disse sua assessoria à reportagem.

Pesquisadora do IBGE posa com família pesquisada em frenta a sua residência

CRÉDITO,IBGE

Legenda da foto,

Estudo foi pioneiro em documentar a relação entre agentes do IBGE e público pesquisado

Para Maurício Vasconcellos, os ventos da democratização entraram como um furacão na instituição. De 1985 a 1993, foram oito presidentes diferentes, ressalta.

Na sua avaliação, o IBGE sofreu com a falta de um arcabouço institucional que lhe desse mais autonomia. "Não uma independência absoluta em relação ao poder executivo, mas uma forma de controle social que permita o mínimo de autonomia em relação ao poder público, suficiente para assegurar a continuidade administrativa e técnica necessária a realização de projetos que, não raro, atravessam mais de um mandato presidencial", defendeu em sua tese de doutorado.

Se o fim da ditadura trouxe mais instabilidade ao IBGE, também foi o momento da ganhos importantes de transparência e participação da sociedade no desenvolvimento das pesquisas, ressalta o sociólogo Alexandre Camargo.

"O IBGE se democratizou. (Passou a dar) Transparência e acessibilidade máxima às pesquisas, pontualidade nos resultados, (passou a ter) cobrança, participação de movimentos sociais na montagem das pesquisas", destaca.

"Então, é uma pressão que se colocou a partir dos anos 1980 e o IBGE respondeu muito bem. Hoje, é uma das instituições de Estado mais abertas a esse diálogo e pioneiras inclusive na disponibilização digital de banco de dados inteiros", reforça.

Camargo defende um resgate da importância dos relatórios de campo do Endef e um melhor tratamento desse material.

"(Essa pesquisa) Tem uma importância incrível para a memória e para a história das Ciências Sociais brasileiras. É o que se tem de mais documentado sobre como se dá a interação de um agente do IBGE com as pessoas em casa, e a barreira de classe sendo determinante no resultado a ser atingido", explica.

"Isso é uma agenda de pesquisa (que está) a mil hoje globalmente falando nas Ciências Sociais, no que envolve especialmente a construção de dados para políticas sociais. E isso (os relatos de campo do Endef) é um repertório magnífico, inteiramente desconhecidos e ainda sem tratamento", ressalta




  • Mariana Schreiber
  • Role,Da BBC News Brasil em Brasília

Professor Edgar Bom Jardim - PE