quinta-feira, 18 de julho de 2024

História: brasileiros que lutaram pelo fim da escravidão no Brasil



Ilustração de cada um dos seis brasileiros que lutaram pelo fim da escravidão no Brasil citados na reportagem

CRÉDITO,ANDRÉ VALENTE | BBC BRASIL

Legenda da foto,Batalha pela abolição já ocorria nas províncias brasileiras anos antes da assinatura da Lei Áurea, e reunia escravizados, negros libertos, pessoas da classe média e da alta sociedade

O fim da escravidão no Brasil completa 136 anos em 13 de maio deste ano. Em 1888, a princesa Isabel, filha do imperador do Brasil Pedro 2º, assinou a Lei Áurea, decretando a abolição - sem nenhuma medida de compensação ou apoio aos ex-escravizados.

A decisão veio após mais de três séculos de escravidão, que resultaram em 4,9 milhões de africanos traficados para o Brasil, sendo que mais de 600 mil morreram no caminho.

Mas a abolição no Brasil está longe de ter sido uma benevolência da monarquia. Na verdade, foi resultado de diversos fatores, entre eles, o crescimento do movimento abolicionista na década de 1880, cuja força não podia mais ser contida.

Entre as formas de resistência, estavam grandes embates parlamentares, manifestações artísticas, até revoltas e fugas massivas de escravizados, que a polícia e o Exército não conseguiam - e, a partir de certo ponto, não queriam - reprimir. Em 1884, quatro anos antes do Brasil, os Estados do Ceará e do Amazonas acabaram com a escravidão, dando ainda mais força para o movimento.

A disputa continuou no pós-libertação, para que novas políticas fossem criadas destinando terras e indenizações aos ex-escravizados - o que nunca ocorreu


Conheça abaixo as histórias de seis brasileiros protagonistas na luta pelo fim da escravidão:

Luiz Gama, o ex-escravizado que se tornou advogado

Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em 1830, em Salvador, filho de mãe africana livre e pai branco de origem portuguesa. Quando o menino tinha quatro anos, sua mãe, Luísa, teria participado revolta dos Malês, na Bahia, pelo fim da escravidão.

Uma reviravolta ocorreu quando Gama tinha dez anos: ficou sob cuidados de um amigo do pai, que o vendeu como escravizado. O menino "embarcou livre em Salvador e desembarcou escravizado no Rio de Janeiro", escreve a socióloga Angela Alonso no livro Flores, Votos e Balas, sobre o movimento abolicionista. Depois, foi levado para São Paulo, onde trabalhou como escravizado doméstico. "Aprendi a copeiro, sapateiro, a lavar e a engomar roupa e a costurar", escreveu o baiano.

Fotografia de Luís Gama

CRÉDITO,ACERVO BIBLIOTECA NACIONAL - BRASIL

Legenda da foto,Calcula-se que Luiz Gama tenha ajudado a libertar cerca de 500 escravizados


Aos 17 anos, Gama aprendeu a ler e escrever com um estudante de direito. E reivindicou sua liberdade ao seu proprietário, afinal, nascera livre, livre era.

Em São Paulo, Gama se tornou rábula (advogado autodidata, sem diploma) e criou uma nova forma de ativismo abolicionista: entrava com ações na Justiça para libertar escravizados. Calcula-se que tenha ajudado a conseguir a liberdade de cerca de 500 pessoas.

Gama usava diversos argumentos para obter a alforria. O principal deles era que os africanos trazidos ao Brasil depois de 1831 tinham sido escravizados ilegalmente. Isso porque naquele ano foi assinado um tratado de proibição do tráfico de pessoas escravizadas. Mais de 700 mil pessoas tinham entrado no país nessas condições. Apenas em 1850 o tráfico de escravizados foi abolido definitivamente.

"As vozes dos abolicionistas têm posto em relevo um fato altamente criminoso e assaz defendido pelas nossas indignas autoridades. A maior parte dos escravos africanos (...) foram importados depois da lei proibitiva do tráfico promulgada em 1831", disse Gama na época.

O advogado ainda entrou com diversos pedidos de habeas corpus para soltar escravizados que estavam presos, acusados, sobretudo, de fuga. Ainda trabalhou em ações de liberdade, quando o escravizado fazia um pedido judicial para comprar sua própria alforria - o que passou a ser permitido em 1871, em um dos artigos da Lei do Ventre Livre.

Luiz Gama morreu em 1882, sem ver a abolição. Seu funeral, em São Paulo, foi seguido por uma multidão. "Quanto galgara Luís Gama, de ex-escravo a morto ilustre, em cujo funeral todas as classes representavam-se. Comércio de porta fechada, bandeira a meio mastro, de tempos em tempos, um discurso; nas sacadas, debruçavam-se tapeçarias, como nas procissões da Semana Santa", relata Alonso.

Na hora do enterro, alguém gritou pedindo que a multidão jurasse sobre o corpo de Gama que não deixaria morrer a ideia pela qual ele combatera. E juraram todos



Maria Tomásia Figueira Lima, a aristocrata que lutou para adiantar a abolição no Ceará

Filha de uma família tradicional de Sobral (CE), Maria Tomásia foi para Fortaleza depois de se casar com o abolicionista Francisco de Paula de Oliveira Lima. Na capital, tornou-se uma das principais articuladoras do movimento que levou o Estado a decretar a libertação dos escravizados quatro anos antes da Lei Áurea.

Segundo o Dicionário de Mulheres do Brasil, ela foi cofundadora e a primeira presidente da Sociedade das Cearenses Libertadoras que, em 1882, reunia 22 mulheres de famílias influentes para argumentar a favor da abolição.

Ao fim de sua primeira reunião, elas mesmas assinaram 12 cartas de alforria e, em seguida, conseguiram que senhores de engenho assinassem mais 72.

As mulheres conseguiram, inclusive, o apoio financeiro do imperador Pedro 2º para a iniciativa. Juntamente com outras sociedades abolicionistas da época, elas organizaram reuniões abertas com a população, promoviam a libertação de escravizados em municípios do interior do Ceará e publicavam textos nos jornais pedindo a abolição em toda a província.

Maria Tomásia estava presente na Assembleia Legislativa no dia 25 de março de 1884, quando foi realizado o ato oficial de libertação dos escravizados do Ceará, que deu força à campanha abolicionista no país.

Pintura da sessão parlamentar que aboliu a escravidão no Ceará

CRÉDITO,ACERVO BIBLIOTECA NACIONAL - BRASIL

Legenda da foto,Nesta pintura da sessão parlamentar que aboliu a escravidão no Ceará, em 1884, é possível ver diversas mulheres entre os homens

André Rebouças, o engenheiro que queria dar terras aos libertos

André Rebouças nasceu na Bahia, em 1838, em uma família negra, livre, e incluída na sociedade imperial. Quando jovem, estudou engenharia e começou a trabalhar na área. Foi responsável por diversas obras de engenharia importantes no país, como a estrada de ferro que liga Curitiba ao porto de Paranaguá. Conquistou posição social e respeito na corte. A Avenida Rebouças, importante via em São Paulo, é uma homenagem a André e a seu irmão Antonio, também engenheiro.

Em uma das obras de que participou, outro engenheiro pediu que Rebouças libertasse o escravizado Chico, que era operário e tinha sido responsável pelos trabalhos hidráulicos. "Foi quando sua atenção recaiu sobre o assunto", escreve Angela Alonso, também em Flores, Votos e Balas. Chico foi, então, libertado.

"Sou abolicionista de coração. Não me acusa a consciência ter deixado uma só ocasião de fazer propaganda para a abolição dos escravos, e espero em Deus não morrer sem ter dado ao meu país as mais exuberantes provas da minha dedicação à santa causa da emancipação", discursou certa vez Rebouças, na presença do imperador Pedro 2º.

Retrato de André Rebouças

CRÉDITO,MUSEU AFRO BRASIL

Legenda da foto,André Rebouças era adepto de uma reforma agrária que concedesse terras para os ex-escravizados

Na década de 1870, Rebouças se engajou na campanha pelo fim da escravidão. Participou de diversas sociedades abolicionistas e acabou se tornando um dos principais articuladores do movimento. Um de seus papéis foi fazer lobby - uma ponte entre os abolicionistas da elite e as instituições políticas, para quem executava obras de engenharia.

As ideias de Rebouças incluíam não apenas o fim da escravidão. Ele propunha que os libertos tivessem acesso à terra e a direitos, para serem integrados, não marginalizados. "É preciso dar terra ao negro. A escravidão é um crime. O latifúndio é uma atrocidade. (...) Não há comunismo na minha nacionalização do solo. É pura e simplesmente democracia rural", proclamou Rebouças.

O engenheiro também se opunha ao pagamento de indenização para os senhores de escravizados em troca da liberdade - para Rebouças, isso seria uma forma de validar que uma pessoa fosse propriedade da outra.

Apoiador da monarquia e da família real brasileira, Rebouças foi ainda um dos responsáveis pela exaltação da Princesa Isabel como patrona da abolição.

Adelina, a charuteira que atuava como 'espiã'

Filha bastarda e escravizada do próprio pai, Adelina passou a vender charutos que ele produzia nas ruas e estabelecimentos comerciais de São Luís (MA). Suas datas de nascimento e morte não são conhecidas. Seu sobrenome, também não.

Como escravizada criada na casa grande, Adelina aprendeu a ler e escrever. Trabalhando nas ruas, assistia a discursos de abolicionistas e decidiu se envolver na causa.

Ilustração de Adelina

CRÉDITO,ANDRÉ VALENTE | BBC BRASIL

Legenda da foto,Como não há registros fotográficos de Adelina, a charuteira, ilustração foi baseada em fotografias de escravizadas que viviam no Maranhão na época

De acordo com o Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, de Clóvis Moura (Edusp), Adelina enviava à associação Clube dos Mortos - que escondia escravizados e promovia sua fuga - informações que conseguia sobre ações policiais e estratégias dos escravistas.

Aos 17 anos, Adelina seria alforriada, segundo a promessa que seu senhor fez a sua mãe. Mas, segundo o Dicionário, isso não aconteceu.

Dragão do Mar, o jangadeiro que se recusou a transportar escravizados para os navios

O jangadeiro e prático (condutor de embarcações) Francisco José do Nascimento (1839-1914), um homem pardo conhecido como Dragão do Mar, foi membro do Movimento Abolicionista Cearense, um dos principais da província, a primeira do Brasil a abolir a escravidão.

Em 1881, o Dragão do Mar comandou, em Fortaleza, uma greve de jangadeiros que transportavam os negros e negras escravizados para navios que iriam para outros Estados do Nordeste e para o Sul do Brasil. O movimento conseguiu paralisar o tráfico negreiro por alguns dias.

Ilustração de Francisco José do Nascimento

CRÉDITO,ANDRÉ VALENTE | BBC BRASIL

Legenda da foto,Francisco José do Nascimento se recusou a transportar escravizados das praias de Fortaleza para navios negreiros

Com o comércio de escravizados impedido nas praias do Ceará, Nascimento foi exonerado do cargo, segundo o registro de Clóvis Moura. E se tornou símbolo da batalha pela libertação dos escravizados.

Depois da abolição, ele tornou-se Major Ajudante de Ordens do Secretário Geral do Comando Superior da Guarda Nacional do Estado do Ceará e morreu como primeiro-tenente honorário da Armada, em 1914.

Maria Firmina dos Reis, a primeira escritora abolicionista

A maranhense Maria Firmina (1825-1917) era negra e livre, "filha bastarda", mas formou-se professora primária e publicou, em 1859, o que é considerado por alguns historiadores o primeiro romance abolicionista do Brasil, Úrsula. O livro conta a história de um triângulo amoroso, mas três dos principais personagens são negros que questionam o sistema escravocrata.

A escritora assinava o livro apenas como "Uma maranhense", um expediente comum entre mulheres da época que se aventuravam no mercado editorial, e só agora começa a ser descoberto pelas universidades, segundo a professora de literatura brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Constância Lima Duarte.

Ilustração de Maria Firmina dos Reis

CRÉDITO,ANDRÉ VALENTE | BBC BRASIL

Legenda da foto,Romance de Maria Firmina dos Reis é considerado o primeiro a trazer o ponto de vista de personagens negros no Brasil escravocrata

Maria Firmina também publicava contos, poemas e artigos sobre a escravidão em revistas de denúncia no Maranhão.

De acordo com o Dicionário de Mulheres do Brasil: de 1500 Até a Atualidade (Ed. Zahar), ela criou, aos 55 anos de idade, uma escola gratuita e mista para crianças pobres, na qual lecionava. Maria Firmina morreu aos 92 anos, na casa de uma amiga que havia sido escravizada.

* Esta reportagem foi originalmente publicada em 13 maio 2018 e atualizada em 2024



  • Amanda Rossi e Camilla Costa
  • Role,Da BBC Brasil em São Paulo e Londres
Professor Edgar Bom Jardim - PE

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Frida Kahlo: como mexicana se tornou uma das mulheres mais conhecidas do mundo?



Foto em preto e branco de Frida Kahlo, usando tranças no cabelo e sentada sobre a relva

CRÉDITO,TONI FRISELLI

Legenda da foto,Transformação de sofrimento pessoal em arte fez com que obra de Frida Kahlo se tornas

Magdalena Carmen Frida Kahlo Calderón, mundialmente conhecida por Frida, seguido do sobrenome alemão herdado do pai, Kahlo, morreu aos 47 anos em 1954.

Sua curta vida, no entanto, foi seguida por décadas em que se transformou em uma das figuras femininas mais conhecidas do mundo, de mito à mercadoria.

Além das pinturas e esculturas, fotografias, vídeos, documentos, desenhos, cartas e até o diário íntimo da artista viraram alvo do interesse público.

"O conceito de usar a si mesma como tema de sua obra elevaram Frida a um lugar excepcional", aponta o escritor mexicano Francisco Haghenbeck, autor do livro O segredo de Frida Kahlo


As principais obras da pintora são seus autorretratos — especialmente uma série de quadros em que ela aparece de corpo inteiro, muitas vezes sangrando, sofrendo e em hospitais

Na última década, os objetos artísticos e pessoais da mexicana têm circulado o mundo em diversas exposições.

E a imagem de Frida também se transformou em um ícone pop: seu rosto estampa camisetas, canecas, ímãs de geladeira, bolsas e diversos produtos.

"Kahlo reúne em uma só pessoa e obra vários elementos que contribuíram para que sua imagem se tornasse um mito: o exótico, o mundo subdesenvolvido como pano de fundo e o ser mulher, além de um talento plástico inegável e original", disse à BBC Brasil a professora da Universidad Autónoma Metropolitana de Xochimilco, Eli Bartra, autora de Frida Kahlo. Mujer, ideología, arte.

Objetos pessoais de Frida Kahlo

CRÉDITO,LAÍS MODELLI

Legenda da foto,Objetos pessoais da artista, incluindo seu diário íntimo, tornaram-se de interesse público e correm o mundo em exposições

Mito

Segundo Bartra, o mito em torno de si começou a ser construído pela própria artista em vida.

"Nos lugares por onde passou, na Europa e nos Estados Unidos, a vida e a obra de Frida despertaram muito interesse. Com sua morte, estes lugares deram continuidade à construção do mito", diz a pesquisadora.

"Logo veio o interesse das feministas alemãs, por causa de sua origem alemã e por causa do nome 'Frida'. O movimento de 'chicanos' (mexicanos que moram nos EUA) também passou a se interessar pela figura da artista por acreditar que ela representava uma mexicanidade por excelência."

Para Haghenbeck, o "mito Frida" também foi reforçado pelos romances que a pintora teve com personagens famosos de sua época.

"O amor e atração de personagens como André Breton, Trotsky, Picasso e Rockefeller, além de Diego Rivera, ajudaram a tornar conhecida e venerada a vida de Frida, de personalidade forte e dócil, alegre e sofrida", afirma o escritor.

Muro da Casa Azul, onde viveu Frida Kahlo, com os dizerem em espanhol: Frida e Diego viveram nesta casa 1929-1954

CRÉDITO,LAÍS MODELLI

Legenda da foto,'Frida era uma metáfora do México: colorida, dinâmica, mas que sofre com grandes feridas', diz escritor mexicano Francisco Haghenbeck


Frida Kahlo casou-se duas vezes, em 1929 e em 1940, ambas com o muralista mexicano Diego Rivera.

Devido a relações extraconjugais de ambos — Rivera chegou a ter um caso com a irmã de Frida, o que pôs fim ao primeiro casamento — o casal teve uma relação longa, porém conturbada.

Entre idas e vindas, a pintora teve romances com artistas e intelectuais, como Leon Trotsky, a quem Frida ofereceu abrigo político em sua própria casa, em 1937.

O acidente de ônibus, ocorrido em 1925, e as mais de 30 operações às quais foi submetida — uma barra de ferro atravessou sua barriga e virilha no momento do acidente — também contribuíram para a imagem da mulher que transformava o próprio sofrimento em arte.

Ela tinha também um defeito no pé resultado de ter contraído poliomielite na infância.

Para Edla Eggert, pesquisadora com pós-doutorado em Estudos da Mulher pela Univesidad Autónoma Metropolitana de Xochimilco e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), foi esta apresentação do sofrimento humano em diversas dimensões que tornou Frida uma das artistas mais conhecidas do mundo.

"Há esse enigmático ponto de contato que ela produz com todo mundo que já viveu uma tragédia com seu corpo", explica Eggert.

Na principal biografia de Kahlo, escrita por Hayden Herrera, a aparência exótica da pintora, com seus adereços e vestimentas típicas de comunidades mexicanas, foi descrita como uma estratégia para tirar o foco de suas cicatrizes e deformidades físicas nas pernas e pés.

Rivera e Kahlo em foto em preto e branco

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,Rivera e Kahlo se casaram duas vezes e tiveram relação conturbada, marcada por traições e declarações de amor



Rivera e Kahlo em foto em preto e branco

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,Rivera e Kahlo se casaram duas vezes e tiveram relação conturbada, marcada por traições e declarações de amor

"Assim como os autorretratos confirmavam sua existência, as roupas faziam com que a mulher frágil, quase sempre presa à cama, se sentisse mais magnética, mais visível e mais enfaticamente presente como objeto físico no espaço", escreveu Herrera em Frida - a biografia.

"Paradoxalmente, eram uma máscara e uma moldura. Uma vez que definiam a identidade de quem as usava em termos de aparência, as roupas distraiam Frida — e o observador — da dor interior"

Quando precisava usar coletes ortopédicos para corrigir desvios na coluna, por exemplo, Frida deixava o item a mostra e o enfeitava com os adereços, como se ele fizesse parte de sua roupa.

Segundo Herrera, à medida que a saúde de Frida piorava, seus adereços e joias foram ficando mais elaborados e coloridos.

A pintora se vestia dessa maneira até nos dias em que não conseguia sair do quarto.

Ícone pop

Eli Bartra diz que grande parte desta "Frida mito", contudo, ajudou a criar uma "Frida pop" — uma reprodução em massa da imagem da pintora que é, muitas vezes, esvaziada de sentido.

"O que funciona agora é a mercadoria Frida. Ela foi transformada em arte popular justamente porque vende."

A pesquisadora explica que, no México, Frida atualmente tem uma dimensão mais normal e menos mítica.

"Ela é conhecida, reconhecida e apreciada, mas em uma medida mais humana. O mito, na verdade, contribuiu para que muitos se cansassem de Kahlo", afirma Bartra.

"Frida, hoje, talvez não seja mais querida que outras pintoras nacionais, como Remedios Varo e María Izquierdo."

Para a antropóloga e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Sônia Maluf, o sucesso contemporâneo de Frida está ligado à atualidade de sua obra, mas também a uma releitura superficial de sua vida.

"Algumas leituras acabam 'higienizando' Frida de dimensões que não interessaria serem ressaltadas, como seu ativismo de esquerda, sua bissexualidade e mesmo o modo como ela transformava o que seria a tragédia da mutilação física em obra de arte, em algo belo e sublime", diz.

"O acidente e suas operações quase sempre foram abordados de maneira sensacionalista", completa Bartra.

Camisetas com diferentes ilustrações representando Frida Kahlo

CRÉDITO,REUTERS

Legenda da foto,Imagem da pintora tornou-se ícone pop e feminista nos últimos anos, mesmo que ela nunca tenha se apresentado especificamente como feminista

Feminista?

Na década de 1950, Diego Rivera descreveu Frida como "a primeira mulher na história da arte a tratar, com absoluta e descomprometida honestidade, poderíamos até dizer com uma crueldade indiferente, aqueles temas gerais e específicos que apenas dizem respeito às mulheres".

"Ela nunca se disse feminista, pelo menos nunca se apresentou assim. Mas podemos ver como sua obra retrata um universo de mulher e de uma rebeldia contra condição social das mulheres da época", explica Bartra.

Segundo Haghenbeck, Frida estava longe de ser a figura que hoje é apresentada como exemplo de feminismo.

"Mesmo assim, ela foi uma rebelde, uma mulher firme de suas convicções e comprometida com seus ideais."

A maneira como Frida expôs sua bissexualidade e seu casamento e o modo como retratou de maneira crua uma maternidade frustrada — a pintora sofreu três abortos espontâneos por causa das sequelas do acidente —, anteciparam questões atuais de gênero em todo o mundo.

No quadro O Hospital Henry Ford, por exemplo, a pintora retratou o momento do seu segundo aborto espontâneo, sofrido no hospital de mesmo nome.

"Feministas ainda se interessam pela obra de Frida porque ela foi capaz de expressar, plasticamente, uma rebeldia contra uma feminilidade imposta às mulheres. Ora se apresentou andrógina, ora pintou cenas de parto, abortos, assassinatos de mulheres, coisa que não se expunha até então", aponta Bartra.

Uma das fases em que Frida mais pintou autorretratos foi durante o divórcio, em 1935, quando a artista saiu de casa e foi morar em um apartamento pobre no centro da Cidade do México.

Mesmo se recuperando de uma cirurgia que lhe amputou dedos do pé direito, ela lutou para obter independência econômica do ex-marido e passou a comercializar seus quadros.

Frida ao lado de Trotsky e outras pessoas, em retrato em preto e branco

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,Amizades e romances com personalidades da época, como Leon Trotsky, reforçaram mito em torno de Frida

Em Autorretrato com Cabelo Cortado, pintado durante a separação, a pintora aparece de cabelo curto — uma das longas tranças que costumava usar, e que Rivera tanto gostava, está na sua mão — e vestindo um terno masculino.

Na parte superior do quadro, Frida escreveu o trecho de uma canção mexicana: "Olha, se te amei foi pelo teu cabelo; agora que estás careca, já não te amo".

Outra obra conhecida dessa época foi Unos Cuantos Piquetitos (1935), que retrata uma mulher nua e ensanguentada em cima de uma cama, com um homem em pé ao lado, segurando uma faca.

A obra foi feita depois que Frida leu uma notícia de que um homem matou a esposa a facadas por causa de ciúme e, ao se defender no tribunal, disse ao juiz: "foram apenas uns cortes pequenos".

"Unos Cuantos Piquetitos é uma denúncia sobre a violência contra as mulheres e a condescendência da cultura machista para com o agressor", observa Eggert.

O maior legado da obra de Frida, contudo, foi a ideia de que assuntos considerados privados na vida das mulheres deveriam ser tratados como políticos.

"A vida e a obra de Frida são elementos que colocam sob tensão a tradicional condição da mulher", diz Sônia Maluf, da UFSC.

"Alguns autores consideram que o feminismo está presente em sua obra não de forma referencial, mas através da antecipação do que se tornou um lema feminista após os anos 1960: 'o pessoal é político'."

Filha da Revolução

Frida Kahlo se declarava "filha da Revolução Mexicana", que ocorreu em 1910, três anos após seu nascimento, e se estendeu até 1920.

Até os treze anos, ela cresceu em meio a tiroteios, conflitos populares e camponeses armados e assistiu sua mãe oferecer comida e ajuda aos Zapatistas quando estes passavam pelo bairro de Coyoacán, então periferia da Cidade do México onde morava a família Kahlo.

Roupas de Frida Kahlo expostas em museu

CRÉDITO,LAÍS MODELLI

Legenda da foto,Durante período vivendo nos EUA, pintora homenageava costumes e povos mexicanos com roupas e adereços típicos

Já a adolescência da artista foi marcada por um México pós-revolução, um momento histórico de efervescência cultural.

"Frida amava a cultura popular mexicana, desde a comida até os trajes típicos. Era uma mulher que gostava de tacos e mariachis, não era elitista", aponta Haghenbeck.

"Ela viveu alguns anos nos EUA, mas, mesmo estando lá, fazia festas com papel picado, tequila e usava vestidos típicos. Tanta cor e alegria, para os americanos, era algo exótico. Esse imaginário colorido deixado por Frida no estrangeiro plantou uma semente que, de 1960 em diante, levou estrangeiros ao México porque eles se lembravam dela."

"Frida era uma metáfora do México: colorida, dinâmica, mas que sofre com grandes feridas", acrescenta o escritor




BBC News Brasil
Professor Edgar Bom Jardim - PE