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domingo, 31 de março de 2024

Famílias famintas e mães desdentadas: o retrato da miséria na ditadura que ficou 'escondido' nos arquivos do IBGE




Pesquisador do IBGE entrevistando duas mulheres na porta de uma casa simples

CRÉDITO,IBGE

Legenda da foto,

O IBGE enviou 1200 pesquisadores para investigar o consumo familiar em 1974 e 1975



O Brasil vivia a rebarba do milagre econômico — período de acelerado crescimento na primeira metade da Ditadura Militar (1964-1985) — quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) colocou nas ruas 1.200 pesquisadores para percorrer o país e investigar o consumo das famílias, em especial a alimentação, numa das pesquisas mais ousadas e pioneiras da instituição.

Durante 1974 e 1975, o Estudo Nacional de Despesa Familiar (Endef) acompanhou 55 mil residências em todos os Estados, em áreas ruais e urbanas, por sete dias, período em que os pesquisadores acompanhavam os hábitos alimentares dos moradores em todas as refeições, inclusive pesando os alimentos e as sobras.

Para que as famílias não tivessem receio em abrir seus lares e seus hábitos para os pesquisadores, foi lançada a campanha "Abra a porta para o IBGE", com a atriz Regina Duarte como garota-propaganda.

A ampla pesquisa tinha "objetivos múltiplos para atender, basicamente, as necessidades de planejamento do governo", dizia uma publicação de 1978 com parte dos resultados. O IBGE precisava conhecer melhor o consumo das famílias para desenvolver índices de preço (medidas de inflação), indicadores sociais e aperfeiçoar o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB

Ou seja, o Endef serviria como base para outras pesquisas fundamentais para entender o país e planejar a atuação do Estado, naquele momento regido por uma ditadura — regime iniciado há sessenta anos, com o golpe de 31 de março de 1964, que derrubou o presidente João Goulart.


Fim do Matérias recomendadas

Esperava-se também, com a pesquisa, obter uma mapa das deficiências alimentares da população. A importância do levantamento era exaltado em editorial do Jornal do Brasil de agosto de 1974, quando teve início o trabalho de campo.

"Acaba o IBGE de iniciar, em âmbito nacional, um recenseamento menos espetacular que o da população, mas que poderá exercer incalculável influência no planejamento nacional e na própria humanização do país", dizia o jornal.

Cartaz com Regina Duarte sorrindo em que se lê: Abra a porta para ao IBGE

CRÉDITO,IBGE

Legenda da foto,

Regina Duarte, a 'namoradinha do Brasil', foi contratada como garota propaganda do Endef



O aspecto mais inovador do estudo, porém, não serviria diretamente aos objetivos estatísticos, embora fosse considerado essencial para entender as condições de população pelo diretor do Endef, o sociólogo e ex-oficial da Marinha Luiz Afonso Parga Nina.

Por ideia dele, foi inserido nos questionários um espaço para anotação livre, em que era sugerido aos pesquisadores que fossem relatados suas impressões pessoais sobre a situação dos entrevistados e a realização das entrevistas.

O resultado foi um registro detalhado da miséria e da fome que atingiam boa parte da população, apesar do ritmo acelerado de crescimento econômico dos anos anteriores. Essa parte do estudo foi publicado, mas acabou tendo sua circulação restrita, levantando suspeitas de censura pela Ditadura Militar, algo que não chegou a ser comprovado e até hoje é alvo de controvérsia.

"Já fizemos uma média de 120 domicílios, estando 70% na faixa de nível baixo, 20% casos extremos e 10% pessoas que conseguem o necessário para viver. Neste último caso, considero as pessoas que têm um emprego fixo, mas vivem privadas de muita coisa ainda", diz um dos relatos sobre a pesquisa em Uberlândia (MG).

"Nas duas primeiras faixas, a base da alimentação é farinha de mandioca muito grossa feita em casa. O vestuário é sempre doado e, nos casos extremos, as pessoas cobrem o corpo com trapos disformes e imundos que cheiram mal", continuava.

Outro relato, de uma pesquisadora que atuou em Boa Vista (RR), descrevia sérios problemas de saúde da população local: "Devido à má alimentação, são seres totalmente predispostos aos males do meio ambiente. Desde que uma dessas famílias tinha vindo do interior, ninguém pergunta se não teve 'malária' ou até mesmo 'hepatite' porque são doenças comuns no interior."

"Mediante as dificuldades na compra dos remédios, são pessoas que ficam maltratadas para o resto da vida. As mulheres não são privilegiadas. Depois do primeiro filho, perdem logo os dentes (falta de cálcio) e sofrem as consequências de um parto mal feito durante muito tempo", segue o relato.

"Em um domicílio, o homem da casa está enfraquecido devido à falta de alimentação e a senhora dele está débil mental em consequência de um parto mal feito. As crianças são raquíticas, de cor pálida e frequentemente com tosse", descreveu ainda a pesquisadora.

No interior do Paraná, são vários os relatos da equipe do IBGE sobre a dura vida das famílias de boias-frias, que trabalhavam por diárias em fazendas da região.

"A fome tomava conta dos pequenos corpos humanos que habitavam a bela fazenda de café. (...) Soubemos de uma família que ia para o trabalho sem a pequena marmita de almoço, substituíam-no por 'coco guavirova' ou até chegavam ao extremo de comer folha seca de café."

A BBC News Brasil teve acesso à publicação original da pesquisa — hoje disponível online — e a um compilado de relatórios semestrais dos pesquisadores do Endef produzido pelo setor de memória do IBGE em 2014.

'Distribuição restrita'

A BBC News Brasil conversou com o servidor aposentado do IBGE Maurício Vasconcellos, que atuou por anos em diferentes etapas do Endef e, depois, chefiou alguns setores do instituto, como o Departamento de Censo Demográfico.

Ele acompanhou parte do trabalho de campo e chegou a presenciar a morte de um bebê durante o processo de entrevista, devido à extrema vulnerabilidade da família, mas não quis contar detalhes para não se emocionar.

"Esse estudo é terrível, porque, se você for ler, você vai chorar o tempo todo", recorda.

Ele se refere a uma publicação que ganhou o nome de "Estudo das informações não estruturadas do Endef e sua integração com os dados quantificados", produzida por Parga Nina, a partir dos relatos de campo.

Empolgado com a riqueza desse material, o diretor do Endef solicitou relatórios semestrais sobre as pesquisas de campo e sistematizou o material nessa publicação, criando categorias para os relatos, como "penúria alimentar", "condições de saúde e higiene", "emprego-desemprego" e "vida familiar".

"É evidente que algo deve ser feito para captar o que as equipes de campo observaram, sentiram, viveram, ao longo desse ano de trabalho. Seria absurdo não fazer esta tentativa, e estariam perdidas informações que podem ser tão importantes e, em certos aspectos, mais importantes que os dados dos questionários", dizia a introdução do trabalho.

"Não há nenhum sentido em procurar entender a 'realidade sócio-econômica' através de pesquisas, em qualquer campo, se não houver também um esforço para tentar compreender, por um mínimo de convivência, de simpatia, de contato direto, a dimensão humana do que está sendo investigado", reforça outro trecho.

Apesar da grande importância dada a esse trabalho, ele não foi divulgado ao público. Foi impressa uma pequena tiragem de 250 cópias e algumas delas foram enviadas sem alarde a órgãos públicos e bibliotecas, como o Ministério da Saúde e algumas universidades.

Alguns volumes da publicação que permanecem nos arquivos do IBGE tem em sua capa escrita a mensagem "Distribuição restrita", em letra cursiva que seria de Parga Nina.

Há também volumes com o carimbo de "confidencial", que, segundo Maurício Vasconcellos, foram adicionados por ele depois, já após à ditadura, quando exemplares que estavam com a família de Parga Nina retornaram ao IBGE, após a morte dele.

Ele disse à reportagem que tinha receio que de alguns relatos permitissem identificar os entrevistados, ferindo o sigilo que é legalmente garantido às pessoas pesquisadas.

Na sua visão, a decisão de não divulgar o material amplamente nos anos 1970 teria partido do próprio Parga Nina.

"Eram informações brutais, situações horrorosas. Aí ele publicou esses livros e decidiu fazer uma distribuição restrita", lembra.

Na sua visão, não houve uma censura direta do regime.

"A censura estava na imprensa. O IBGE publicava o que queria. Se o dado desagradasse o governo, ele não ia para o jornal. A gente tinha total liberdade para fazer o que quisesse e fazia", contou.

Capas de volumes da pesquisa Endef do IBGE, marcadas com o aviso "distribuição restrita" ou carimbo de "confidencial"

CRÉDITO,IBGE

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Exemplares da pesquisa foram marcados com o aviso de 'distribuição restrita'nos anos 70. O carimbo de 'confidencial' foi acrescentado após a Ditadura, segundo o servidor aposentado do IBGE Maurício Vasconcellos

A socióloga Cecília Minayo, pesquisadora aposentada da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), conviveu de perto com Parga Nina nos anos 80, quando ele saiu do IBGE para a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Lá, os dois desenvolveram uma espécie de desdobramento do Endef em menor escala, pesquisando zonas de pobreza no Rio de Janeiro.

Na sua leitura, a decisão de restringir o material seria reflexo de pressões externas e internas. Ela lembra que ele teria virado motivo de piada entre parte do corpo técnico do IBGE, que considerava as pesquisas qualitativas que ele desenvolveu estranhas ao foco estatístico do instituto, embora Parga Nina contasse com o apoio do presidente do órgão, Isaac Kerstenetzky.

"(E por parte) Dos militares, era o medo de que o Brasil grande, o Brasil do ame-o ou deixe-o, pudesse produzir pessoas que comiam barro, comiam fezes, comiam ratos, como a pesquisa de campo mostrou", recorda Minayo.

O Endef, estudo ainda hoje pouco conhecido, teve seu momento de fama logo após o fim da ditadura, quando a revista IstoÉ descobriu essa parte não divulgada da pesquisa.

A publicação deu uma reportagem de capa para o tema em outubro de 1985, com a manchete "Fome Censurada", sobre a imagem de uma criança pobre, nua, segurando um rato.

Parga Nina negou que tenha havido censura em uma carta à revista, disponibilizada à BBC News Brasil por Maurício Vasconcellos.

"O trabalho foi realizado pela administração Isaac Kerstenetzky, com participação pessoal do presidente. Seria totalmente incoerente que viesse ela a fazer sobre seu próprio trabalho a censura descrita na reportagem, ou no editorial", respondeu.

Segundo Leandro Malavota, historiador da Equipe Memória IBGE, não há elementos históricos que permitam responder com certeza por que parte do estudo teve circulação restrita. Na sua leitura, houve uma espécie de autocensura, relacionado ao contexto da ditadura.

"O Endef é o reverso do milagre econômico. Ele mostra o Brasil que a ditadura não queria mostrar. Então, ainda que eu não tenha encontrado nas minhas pesquisas qualquer tipo de determinação formal para que aquelas informações não fossem divulgadas, eu acho que, de certa forma, houve uma contenção por parte dos próprios participantes daquela pesquisa para que aquelas informações muito sensíveis não chegassem ao público", avalia.

Capa da revista IstoÉ de outubro de 1985 com a manchete "Fome Censurada", sobre a imagem de uma criança pobre, nua, segurando um rato

CRÉDITO,REPRODUÇÃO ISTOÉ

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Pesquisa foi revelada para o grande público após fim da ditadura, em reportagem de 1985 da IstoÉ

Malavota ressalta que o IBGE, desde sua criação nos anos 1930, no governo de Getúlio Vargas, até a ditadura militar, era visto como um órgão que atendia aos interesses de planejamento do Estado. Ou seja, apenas após a redemocratização, o órgão passou a ser visto como uma instituição voltada para a sociedade, com aumento da transparência.

Ainda assim, lembra ele, as pesquisas costumavam ser divulgadas, como ocorreu com a parte estatística do Endef.

Esse material, porém, não gerou grandes reportagens, até porque o IBGE divulgou, em etapas, dados bem detalhados sobre quantidade de calorias e tipos de nutrientes ingeridos pela população em diferentes regiões, mas não produziu de imediato um indicador mais geral a partir desses números, como qual seria o índice de desnutrição da população — cálculos feitos posteriormente por Maurício Vasconcellos em sua tese de doutorado a partir de dados do Enfed identificaram, numa estimativa conservadora, que ao menos 22% do universo pesquisado seriam de subnutridos.

Uma busca da BBC News Brasil nos arquivos dos jornais O Globo e Jornal do Brasil identificou registros breves sobre os resultados do Endef.

Em oito de março de 77, por exemplo, o jornal O Globo noticiou sem grande destaque a divulgação dos dados preliminares do Rio de Janeiro e da região Sul, que contou com a presença de Isaac Kerstenetzky .

"No Rio de Janeiro, os dados obtidos pela pesquisa indicam que a população do Estado ingere, em média, uma quantidade adequada de calorias, enquanto que a quantidade de cálcio ingerido é menor que as suas necessidades, e a ingestão de proteínas, ferro e vitaminas é superior ao necessário", registrava o jornal.

A matéria acrescentava que não era possível fazer "uma comparação entre a dieta alimentar da população da Baixada Fluminense e aquela de áreas habitadas por pessoas de nível de renda mais elevado".

"O presidente do IBGE explicou que o ENDEF não foi concebido para desagregar os dados a esse nível. Isso, inclusive, em sua opinião, não seria justificável. Para ele o importante é relacionar a dieta alimentar com outros dados como, por exemplo, profissão e a situação econômica dos comensais", dizia ainda a reportagem.

O baixo impacto do Endef junto à opinião pública contrasta com os resultados do Censo de 1970, que geraram forte debate nacional e incomodaram a ditadura ao revelar os altos níveis de desigualdade de renda do país.

Ainda assim, a pesquisa foi de fato usada no desenvolvimento de novos índices de preço e indicadores sociais, além de permitir um cálculo mais preciso do PIB, já que o consumo das famílias tinha — e tem ainda — um peso grande na economia brasileira.

Pesquisadora do IBGE fala com família em frente a uma casa simples

CRÉDITO,IBGE

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Relatos dos pesquisadores do IBGE captaram o 'reverso' do milagre econômico, diz historiador

O altos e baixos do IBGE na ditadura

A relação do IBGE com a ditadura militar teve altos e baixos, mas, em geral, o regime foi positivo para o órgão, afirmam ex-funcionários e estudiosos do tema.

Professor adjunto do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Candido Mendes (IUPERJ-UCAM), o sociólogo Alexandre Camargo diz que "os períodos de ouro" da capacidade de produção do IBGE foram momentos de Estado forte, como a Era Vargas e os anos 70, período da presidência de Isaac Kerstenetzky (1970-1979).

Eurico Borba, que foi diretor-geral do IBGE nos anos 70 e depois presidiu o instituto (1992-1993), contou em depoimento ao acervo de memória do IBGE que Kerstenetzky tinha grande prestígio com o ministro do Planejamento da época, o economista João Paulo dos Reis Velloso (1969-1979).

"Eu acho que nós fomos felizes, foi um período abençoado em pleno período militar, nos anos de chumbo, porque basicamente o professor Isaac tinha sido professor do João Paulo dos Reis Velloso. Quando eu levava os problemas e batiam na trave do Ministério do Planejamento, o professor Isaac resolvia", recordou.

Por outro lado, Borba via o então ministro da Economia, Delfim Netto, como "inimigo do IBGE", que teria boicotado o órgão devido aos resultados do Censo de 1970.

"Pouca gente se dá conta que o regime militar começou a balançar com a ideia do milagre brasileiro quando em 1972 nós lançamos um estudo preliminar com uma amostra de 1,85% dos questionários completos do Censo, mostrando que nós tínhamos um problema sério de distribuição de renda, de emprego, de qualificação da habitação, de saneamento, de educação", disse, no depoimento disponível em vídeo.

"E o presidente (Emílio) Médici fez aquele célebre discurso no aeroporto de Recife em que disse 'o Brasil vai bem, o povo vai mal'. O ministro Delfim Netto, desde aquela época, ficou inimigo do IBGE, prejudicando a importação de computadores", continuou.

"Tanto que a primeira parte do censo dos anos 70 foi processada nos computadores da PUC-Rio, porque o Ministério da Fazenda, querendo justificar de qualquer maneira o milagre brasileiro que não existia, impediu a importação dos equipamentos que nós já havíamos comprado da IBM", contou ainda.

Delfim Netto é ainda alvo de críticas quando foi ministro da Agricultura e Secretário do Planejamento no governo João Figueiredo (1979-1985), período em que teria tentando interferir no cálculo da inflação.

Aos 95 anos, Delfim Netto não quis comentar as críticas, por estar focado no cuidado da sua saúde, disse sua assessoria à reportagem.

Pesquisadora do IBGE posa com família pesquisada em frenta a sua residência

CRÉDITO,IBGE

Legenda da foto,

Estudo foi pioneiro em documentar a relação entre agentes do IBGE e público pesquisado

Para Maurício Vasconcellos, os ventos da democratização entraram como um furacão na instituição. De 1985 a 1993, foram oito presidentes diferentes, ressalta.

Na sua avaliação, o IBGE sofreu com a falta de um arcabouço institucional que lhe desse mais autonomia. "Não uma independência absoluta em relação ao poder executivo, mas uma forma de controle social que permita o mínimo de autonomia em relação ao poder público, suficiente para assegurar a continuidade administrativa e técnica necessária a realização de projetos que, não raro, atravessam mais de um mandato presidencial", defendeu em sua tese de doutorado.

Se o fim da ditadura trouxe mais instabilidade ao IBGE, também foi o momento da ganhos importantes de transparência e participação da sociedade no desenvolvimento das pesquisas, ressalta o sociólogo Alexandre Camargo.

"O IBGE se democratizou. (Passou a dar) Transparência e acessibilidade máxima às pesquisas, pontualidade nos resultados, (passou a ter) cobrança, participação de movimentos sociais na montagem das pesquisas", destaca.

"Então, é uma pressão que se colocou a partir dos anos 1980 e o IBGE respondeu muito bem. Hoje, é uma das instituições de Estado mais abertas a esse diálogo e pioneiras inclusive na disponibilização digital de banco de dados inteiros", reforça.

Camargo defende um resgate da importância dos relatórios de campo do Endef e um melhor tratamento desse material.

"(Essa pesquisa) Tem uma importância incrível para a memória e para a história das Ciências Sociais brasileiras. É o que se tem de mais documentado sobre como se dá a interação de um agente do IBGE com as pessoas em casa, e a barreira de classe sendo determinante no resultado a ser atingido", explica.

"Isso é uma agenda de pesquisa (que está) a mil hoje globalmente falando nas Ciências Sociais, no que envolve especialmente a construção de dados para políticas sociais. E isso (os relatos de campo do Endef) é um repertório magnífico, inteiramente desconhecidos e ainda sem tratamento", ressalta




  • Mariana Schreiber
  • Role,Da BBC News Brasil em Brasília

Professor Edgar Bom Jardim - PE

sábado, 30 de março de 2024

Os pastores evangélicos perseguidos pela ditadura militar



Protesto em 2019

CRÉDITO,GETTY IMAGES

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Entre as vítimas do regime estavam pastores, líderes de juventudes cristãs, estudantes de teologia e membros de diversas denominações


"Os choques me provocavam convulsões e gritos. A sensação era de perda total de controle sobre minha capacidade mental, racional, e sobre os meus movimentos. Era insuportável!"

Foi assim que Anivaldo Padilha, líder ecumênico metodista, descreveu as torturas que sofreu durante os 21 dias em que ficou preso em São Paulo no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), uma agência de repressão política subordinada ao Exército durante a ditadura militar iniciada em 1964.

Padilha foi um dos líderes religiosos evangélicos perseguidos pelo regime no Brasil. Ele foi acusado de "infiltração comunista" na Igreja Metodista, segundo seus próprios relatos, e passou, ao todo, 11 meses detido.

Pai do atual ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), ele foi delatado, no início da década de 1970, pelo pastor e pelo bispo da igreja da qual fazia parte

Na época, ocupava o cargo de diretor do Departamento Nacional de Juventude da Igreja Metodista e era editor de uma revista da igreja dirigida a esse público

Fez parte desde a sua juventude da Ação Popular, uma organização criada por militantes da juventude católica que se expandiu para um caráter não confessional e defendia o conceito-chave do “socialismo como humanismo”.

Além das suspeitas de infiltração comunista, ele entrou na mira do regime por auxiliar na proteção de perseguidos políticos que buscavam o exílio e informar às redes ecumênicas internacionais sobre o que acontecia nas prisões da ditadura brasileira



"Forçaram-me a tirar minha roupa e me colocaram na 'cadeira do dragão'. Uma cadeira revestida com folhas de metal conectadas por um fio a um rádio militar de campanha", contou Padilha sobre as torturas que sofreu na prisão em depoimento realizado para Procuradoria da República e Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em 2011.

"Fui colocado nu no assento com minhas mãos e pés amarrados. Exigiram que eu desse todas as informações que eu possuía. A cada negativa, o torturador girava a manivela do telefone para aumentar a intensidade dos choques."

Padilha foi solto e se exilou no Uruguai, Suíça e Estados Unidos, tendo retornado ao Brasil somente após a Lei de Anistia, em 1979. Por seu tempo fora, só conheceu o filho Alexandre aos 8 anos.

O ministro relembrou a experiência de sua família com a perseguição ao pai em um ato pró-democracia em 2014.

"Muito cedo tive que aprender o que era a ditadura para entender porque eu e minha mãe mudávamos de casa e não tínhamos residência fixa até meus 4 anos. Só falava com meu pai por carta ou por fita cassete", contou


Anivaldo Padilha não foi o único integrante de uma igreja evangélica denunciado por membros da própria comunidade.

Segundo os relatórios elaborados pela Comissão Nacional da Verdade após anos de investigações sobre as violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, boa parte das lideranças evangélicas se alinharam ao governo de exceção depois da tomada do poder há 60 anos.

Com isso, pastores e membros das congregações que teciam críticas à ditadura, faziam parte de organizações de oposição ou mantinham posições consideradas nocivas para a segurança nacional naquele momento foram perseguidos e tiveram que atuar na clandestinidade.

Os denunciados ao regime foram acusados de subversão, forçados ao exílio, torturados e, em alguns casos, ficaram desaparecidos.

Muitos também sofreram processos eclesiásticos e foram até excluídos de suas igrejas. Concílios inteiros e unidades administrativas locais também foram dissolvidas.

Anivaldo Padilha (no centro) ao lado do filho e demais membros da família

CRÉDITO,IGREJA METODISTA

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Anivaldo Padilha (no centro) ao lado do filho e demais membros da família em foto de 2013

Entre as vítimas evangélicas, estavam principalmente aqueles que pregavam uma renovação nas ideias tradicionais defendidas por esse segmento cristão desde o século 19, em especial o fundamentalismo bíblico, o puritanismo e um isolamento das coisas consideradas mais mundanas, como a política.

Em vez disso, essas lideranças pregavam a responsabilidade das igrejas diante de mudanças políticas e a luta por justiça social.

Os movimentos ecumênico, que defende a unidade de diferentes igrejas e comunidades cristãs, e de juventude evangélica tiveram forte papel na pressão por mudanças.

"Essa forte aproximação com a Igreja Católica era rejeitada pelos mais conservadores", afirma Alderi Souza, pastor presbiteriano e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

O historiador e teólogo explica que, ao mesmo tempo, também havia grande preocupação do comando em relação a uma corrente que crescia: o liberalismo teológico.

"Quem apoiava essas ideias acreditava na ênfase na teologia que já não priorizava mais a evangelização no sentido clássico, ou a espiritualidade e a teologia no sentido tradicional, mas sim o envolvimento político social", diz Souza.

Do mundo para as igrejas

Não foi apenas a pressão por mudanças internas que incomodou. A cisão interna que atingiu as igrejas evangélicas no Brasil foi um reflexo das convulsões experimentadas pela sociedade brasileira como um todo em meados do século 20, explica o historiador.

O momento era de extrema polarização, com um contexto internacional também agitado.

Enquanto o Muro de Berlim marcava a tensão geopolítica entre a União Soviética e os Estados Unidos e seus respectivos aliados, internamente, João Goulart sofria uma forte resistência conservadora contra seu governo.

Antes mesmo do golpe em 1964, as reações antagônicas aos ideais que cresciam na época e o movimento contra a chamada "ameaça vermelha" do comunismo também tiveram impacto nas igrejas.

Houve uma cisão de posições ideológicas dentro das igrejas como estava acontecendo na sociedade brasileira, diz Souza.

"Enquanto alguns indivíduos estavam alarmados com aquilo que entendiam como a ascensão da esquerda e o risco iminente da tomada do poder pelos comunistas, outros estavam empolgados com as novas ideias que surgiam e defendiam até mesmo soluções mais radicais, como a luta armada para tomada do poder."

Na cúpula da maioria das igrejas evangélicas, predominou a primeira posição, segundo o historiador.

Tanques em frente ao Palácio das Laranjeiras, durante o golpe militar que levou à derrubada do presidente João Goulart

CRÉDITO,GETTY IMAGES

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Tanques em frente ao Palácio das Laranjeiras, durante o golpe militar que levou à derrubada do presidente João Goulart

Dois anos após a tomada do poder pelos militares, a Igreja Presbiteriana do Brasil elegeu o pastor Boanerges Ribeiro, que defendia uma posição conservadora, para presidir o Supremo Concílio, que manteria sua influência por quase 20 anos.

Movimentos semelhantes aconteceram em outras denominações protestantes, entre elas a batista e a metodista.

Não demorou muito para que essas lideranças entrassem em conflito direto com os pastores e membros da comunidade que defendiam ideias opostas àquelas pregadas pelo regime militar.

Segundo Raimundo Barreto, pastor batista, historiador e professor da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, muitos integrantes foram influenciados "pelas discussões em torno do marxismo e das promessas não cumpridas do desenvolvimento capitalista de melhores condições de vida".

"Muito desse movimento aconteceu às margens das igrejas protestantes, porque o mundo do protestantismo brasileiro sempre foi conservador e influenciado por movimentos missionários americanos mais individualistas cuja maior preocupação era a conversão."

Tanques nas ruas durante ditadura no Brasil

CRÉDITO,ARQUIVO NACIONAL

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Comissão Nacional da Verdade investigou abusos e a violação de direitos humanos cometidos na ditadura

Em um de seus relatórios, a Comissão da Verdade aponta como "protestantes com engajamento social, especialmente, aqueles vinculados ao movimento ecumênico, eram identificados pelos agentes do sistema como inimigos da nação".

O comitê aponta como uma das provas de tal perseguição um documento elaborado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), o órgão de coleta de informações e de inteligência do regime militar, de 30 de outubro de 1980.

O texto afirma que grupos religiosos evangélicos procuravam "influir na política governamental nos diversos campos do poder nacional, através de educação e doutrinação das massas, visando a consecução de seus objetivos políticos”.

O colegiado que investigou as violações ocorridas durante os anos de autoritarismo afirma ainda que os agentes da repressão denominavam “progressistas” tanto católicos quanto protestantes, por conta de ações consideradas “contestação ao regime vigente e às autoridades constituídas”.

Em 1964, ano do golpe que deu início ao regime militar, as igrejas evangélicas passavam por um momento de expansão.

O protestantismo chegou ao Brasil no início dos anos 1900, mas foi apenas a partir dos anos 1960 que um crescimento substantivo pôde ser notado, especialmente com o aparecimento das igrejas neopentecostais a partir dos anos 1970

Na década de 1960, segundo dados do censo, cerca de 4,3% da população se declarava evangélica - uma parcela pequena se comparada aos 23% registrados em 2010.

Em contrapartida, mais de 90% da população se declarava católica daquele momento.

Mas, assim como as igrejas evangélicas, as lideranças católicas também desempenharam papéis contraditórios durante a ditadura militar no Brasil.

Por um lado, parte da cúpula da Igreja Católica apoiou os militares. Por outro, muitas lideranças e fiéis católicos foram personagens importantes na resistência e foram perseguidos por isso.

Outro grupo religioso que entrou na mira dos militares foram as Testemunhas de Jeová, por se absterem de qualquer participação política e recusarem o alistamento militar e a idolatria a símbolos nacionais.

'Pastor por conveniência'

Assim como Anivaldo Padilha, Zwinglio Dias, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), também foi preso, no DOI-Codi no Rio de Janeiro, onde sofreu tortura psicológica.

Ele era membro do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), que promovia reuniões em que havia a troca de informações sobre os colegas que estavam sendo perseguidos.

Foi preso em 1971 e contou que, embora não tenha sido submetido às torturas físicas, foi bastante ameaçado, assistindo pessoas serem torturadas na sua frente.

Em Memórias Ecumênicas Protestantes, livro publicado em 2014, ele afirma ter sido investigado pela igreja por ser um "ateu por convicção, político por profissão, e pastor por conveniência" antes mesmo de ser ordenado pastor, quando ainda era licenciado.

Já o pastor presbiteriano Leonildo Silveira Campos foi preso em 1969 aos 21 anos, quando ainda era seminarista da Igreja Presbiteriana Independente.

Ele foi acusado de subversão e ficou 15 dias detido nas dependências da Operação Bandeirantes (Oban) e no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em São Paulo.

O centro de informações e investigações criado pelos militares e conhecido como Oban também é lembrado por conta do pastor batista Roberto Pontuschka, capelão do Exército que, segundo depoimentos, teria atuado também como torturador no local.

Segundo o relatório produzido pela Comissão da Verdade, Silveira Campos ainda carrega marcas de queimadura no polegar e no indicador da mão esquerda produzidas por descargas elétricas nas sessões de tortura.

Ele não se esquece do modus operandi do religioso que à noite torturava os presos e de dia visitava celas distribuindo o Novo Testamento.

"Um dia bateram na cela: ‘Quem é o seminarista que está aqui?'", contou Silveira Campos em depoimento ao historiador Rodrigo Patto Sá Motta.

"De terno e gravata, ele se apresentou como capelão e disse que trazia uma Bíblia para eu ler para os comunistas f.d.p. e tentar converter alguém.”

O pastor batista teria então afirmado, com uma pistola apontada debaixo do paletó, segundo Silveira Campos: "Para os que desejam se converter, eu tenho a palavra de Deus. Para quem não quiser, há outras alternativas".

Antigo centro de repressão da ditadura DOI-Codi em São Paulo

CRÉDITO,PAULO PINTO/AGÊNCIA BRASIL

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Antigo centro de repressão da ditadura DOI-Codi em São Paulo

Há relatos e registros de outros muitos religiosos evangélicos vítimas do regime e, inclusive, de mulheres que tinham relação próxima com a igreja.

Zenaide Machado de Oliveira, jovem da Igreja Presbiteriana Independente, ficou presa por 3 anos e foi torturada por 60 dias.

Ana Maria Ramos Estevão, líder de jovens da Igreja Metodista que chegou a ser integrante da Aliança de Libertação Nacional, foi presa três vezes e torturada por mais de 15 dias.

Heleny Guariba, também da Igreja Metodista, foi presa e desapareceu em 1971.

Outros nomes citados com frequência são o de Jether Ramalho, membro da Confederação Evangélica (CEB) do Brasil nos anos 1950, Dorival Beulke, pastor da Igreja Metodista, e Weber Fernandes Ferrer, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil.

O escritor Rubem Alves, que foi pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, também foi acusado, junto com outros membros, de pecados como comunismo e desprezo pela doutrina protestante nos tribunais da igreja.

Ele entrou para a lista dos vigiados da ditadura e em 1965 optou pelo autoexílio com a família.

Muitos dos ativistas do movimento ecumênico que se envolveram na organização da Conferência do Nordeste, um evento que reuniu pastores, reverendos e fiéis de pelo menos 20 Estados em Recife em 1962 para debater a responsabilidade das igrejas diante das mudanças políticas e sociais, também foram vítimas de perseguição anos depois.

O pastor e sociólogo Waldo César, falecido em 2007, foi preso pelo regime militar por uma semana em 1966 e, algum tempo depois, se exilou.

Heleny Guariba, da Igreja Metodista, foi presa e desapareceu em 1971

CRÉDITO,COMISSÃO DA VERDADE

Legenda da foto,

Heleny Guariba, da Igreja Metodista, foi presa e desapareceu em 1971

Muitos dos religiosos expulsos de suas congregações se refugiaram em universidades para lecionar teologia e outros campos de estudo. Outros fundaram novas igrejas.

É o caso da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, no Espírito Santo, criada em 1979 por pastores que sofreram perseguição por sua visão ecumênica, defesa do ministério feminino e oposição ao regime.

Resistência e documentação

Lideranças religiosas também desempenharam um papel importante nos esforços de preservação e recolhimento de documentos sobre os crimes cometidos nesta época no Brasil.

Entre os evangélicos, se destaca o nome do pastor Jaime Wright, irmão de Paulo Stuart Wright, ex-deputado estadual por Santa Catarina e dirigente nacional da Ação Popular (AP), que desapareceu durante o regime militar, em 1973.

Chefe da Missão Presbiteriana do Brasil Central, em São Paulo, Jaime Wright representou uma importante força de resistência ao regime, denunciando as violações de direitos humanos ocorridas no Brasil para colegas no exterior.

"Com a prisão do meu tio, muitos colegas pastores presbiterianos do meu pai viraram as costas para ele e o acusaram de ser irmão de um comunista, de um subversivo", relata Anita Wright, filha de Jaime, à BBC News Brasil.

Segundo a presbítera da Igreja Presbiteriana Unida, foi durante as buscas por informações sobre o paradeiro do irmão que seu pai passou a trabalhar lado a lado com Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo, pela causa dos direitos humanos.

"Todos tinham muito medo de que houvesse um sumiço, uma queima de arquivo, do material da repressão. Por isso eles elaboraram uma estratégia para conseguir copiar todos os processos de prisão e tortura", conta.

Arns, Wright e outros ativistas alugaram uma sala com uma máquina copiadora para onde advogados comprometidos com a causa levavam os arquivos que seriam xerocados. "Os advogados tinha direito de retirar os processos do Superior Tribunal Militar por algumas horas e corriam para copiá-los antes de serem devolvidos", diz Anita Wright.

Movimento sindicalista no 1º de maio de 1968 na praça da Sé em São Paulo

CRÉDITO,BR UNICAMP IFCH/AEL BNM

Legenda da foto,

Foto recuperada pelo projeto 'Brasil: Nunca Mais' de movimento sindicalista no 1º de maio de 1968 na praça da Sé em São Paulo

"Se meu pai teve medo [da repressão] em algum momento, ele não demonstrou", relata. "Ele mantinha seu trabalho de forma reservada, até como uma forma de proteção para a família."

Os documentos reunidos deram origem ao projeto Brasil: Nunca Mais, que resultou na publicação de um livro que é um inventário sobre a tortura no Brasil durante os 21 anos de ditadura.

"Só ficamos sabendo da grandeza do projeto depois que tudo acabou."

Ao lado de Dom Evaristo Arns e do rabino Henry Sobel, Jaime Wright também conduziu em 1975 o culto em memória a Vladimir Herzog, jornalista assassinado pela ditadura militar e que se tornou símbolo da luta a favor da democracia.

"Foi um momento muito marcante porque houve uma grande mobilização dos militares para impedir que o evento acontecesse. Me lembro que foram feitas barreiras na [Avenida] 23 de Maio e meu pai quase não conseguiu chegar a tempo da celebração", diz Anita.

Diferente de Herzog, o corpo do tio da presbítera, Paulo Stuart Wright, nunca foi encontrado. Há suspeitas de que ele tenha sido morto sob tortura após ser preso no DOI-Codi de São Paulo


  • Julia Braun
  • Role,Da BBC Brasil em Londres
Professor Edgar Bom Jardim - PE