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terça-feira, 27 de julho de 2021

O símbolo universal que conecta Jesus, Buda e Apolo



Figura religiosa

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Depois de aparecer pela primeira vez na arte religiosa do antigo Irã, a auréola migrou por meio de diferentes culturas em um ritmo surpreendente

O cristianismo, o budismo, o hinduísmo, o zoroastrismo e a mitologia grega são geralmente vistos como religiões totalmente distintas entre si, amplamente definidas por suas diferenças.

Mas se você analisar cada uma delas, verá um símbolo que conecta todas: a auréola.

Esta aura em torno da cabeça de uma figura sagrada expressa sua glória ou divindade e pode ser vista na arte do mundo todo.

Há muitas variações, incluindo auréolas formadas por raios (como a da Estátua da Liberdade) e auréolas flamejantes (que aparecem em algumas artes islâmicas otomanas, mongóis e persas), mas a mais característica e onipresente é a auréola em forma de disco circular.

Mas por que esse símbolo foi inventado? Especula-se que poderia ter sido originalmente um tipo de design de coroa. Ou que poderia ser símbolo de uma aura divina emanando da mente de uma divindade. Talvez apenas um simples adereço decorativo.


Uma hipótese curiosa é a de que deriva de placas de proteção colocadas em estátuas de deuses para proteger suas cabeças de excrementos de pássaros.

Investigar a função original da auréola circular na arte religiosa nos remete ao século 1 a.C.

Ela não havia aparecido em nenhuma religião antes e, ainda assim, se tornou uma peça permanente da iconografia religiosa em toda a Eurásia por alguns séculos.

A divindade egípcia Rá retratada com um círculo representando o Sol

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A antiga divindade egípcia Rá era retratada com um círculo representando o Sol

É provável que tenha evoluído a partir de tradições artísticas muito antigas. No antigo Egito, o deus solar Rá era comumente retratado com um disco circular representando o Sol — embora estivesse acima de sua cabeça, e não atrás dele.

Enquanto isso, alguns artefatos da cidade de Mohenjo-daro (no vale do Indo), criados em 2000 a.C., apresentam o que parecem ser auréolas com raios. No entanto, elas estão gravadas ao redor de todo o corpo das figuras sagradas, ao invés de apenas em suas cabeças.

Da mesma forma, na arte da Grécia antiga, há representações eventuais de coroas com raios de luz em volta das cabeças de heróis mitológicos para sugerir seus poderes divinos.

Mas a auréola em forma de disco circular é uma invenção posterior e, supostamente, resultado de ideias religiosas únicas.

Os primeiros exemplos desse tipo de auréola são vistos em 300 a.C, na arte religiosa do antigo Irã. Ela parece ter sido concebida como uma característica marcante de Mitra, divindade da luz no zoroastrismo.

Há controvérsias de que o conceito de glória divina (conhecido como 'Khvarenah') no zoroastrismo esteja intimamente conectado com o brilho do sol, e que a auréola era a forma iconográfica de relacionar esta qualidade a Mitra, assim como haviam feito com Rá.

Em termos de história da arte, a velocidade absoluta com que a auréola em forma de disco migrou entre as culturas a torna particularmente notável como uma peça de iconografia religiosa.

Por volta dos anos 100 d.C — algumas centenas de anos após sua criação —, ela podia ser vista em locais tão distantes quanto a cidade tunisiana de El Djem, a cidade turca de Samosata e a cidade paquistanesa de Sahri-Bahlol.

Nos anos 400, as auréolas foram incorporadas à arte cristã em Roma e à arte budista na China.

De alguma forma, em questão de poucos séculos, se tornaram o símbolo religioso universal da divindade na Eurásia.

Mas como a influência da auréola se espalhou pelo mundo e entre as religiões?

A movimentação inicial dessa peça de iconografia religiosa se deu em direção a leste e oeste de seu local de nascimento no Irã, pelas mãos de alguns dos impérios mais poderosos do passado.

No primeiro século d.C, os indo-citas (nômades do Irã) e os kushans (da Báctria, no Afeganistão) invadiram as regiões a sudeste, territórios agora abrangidos pelo atual Paquistão, Afeganistão e norte da Índia.

Ambos os impérios, imersos na antiga história cultural iraniana, levaram moedas que representavam Mitra com uma auréola.

Essa divindade jovem e atraente com seu esplendor divino tinha um apelo evidente para um número cada vez maior de pessoas ao redor da região do Hindu Kush (ou Indocuche).

Tanto é verdade que a iconografia de Buda — inclusive desde as primeiras representações visuais dele, como o relicário de Bimaran (que pode datar do fim do século 1 d.C), mostra ele com uma auréola mitraica.

Enquanto isso, Mitra também estava conquistando os corações do Império Romano invasor a oeste — a tal ponto que o mitraísmo evoluiu para uma das principais religiões romanas.

Pintura de Buda representado com auréola

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Buda é representado com uma auréola em imagens no mundo todo, como neste afresco de um templo cambojano

Mitra mais tarde influenciou a iconografia de outra divindade romana — o Sol Invictus ("sol invencível").

Ambos os deuses combinavam físicos masculinos graciosos com poderes divinos, ligados ao esplendor e à autoridade do Sol, e por isso eram adorados pelos membros mais poderosos da sociedade, sobretudo os imperadores romanos.

O imperador Constantino reconheceu o poder iconográfico da auréola, então ele e seus sucessores arrogantemente se apropriaram dela e usaram em representações artísticas de si mesmos.

Depois, com a crescente aceitação do cristianismo no Império Romano, os artistas começaram a representar Jesus com uma auréola.

Sua chegada à iconografia cristã ocorreu por volta de 300 d.C, mais de dois séculos depois de ter surgido no budismo.

Jesus representado em pintura com auréola cruciforme

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Jesus, às vezes, é representado com uma auréola cruciforme, como neste antigo afresco cristão nas catacumbas de Ponzianus, em Roma

Foi um sinal da metamorfose do cristianismo — de uma religião marginalizada para uma estrutura de poder oficial no Ocidente.

A auréola se manteve presente na arte cristã desde então, embora tenha sofrido alguma adaptação ao longo dos anos.

Deus, o Pai, às vezes pode ser visto coroado com uma auréola triangular; Jesus, com uma auréola em forma de cruz; e os santos, com uma auréola quadrada.

O budismo, o jainismo e o hinduísmo coexistiram pacificamente na Índia no primeiro milênio d.C, e as três religiões compartilharam ideias e iconografia artística, incluindo as auréolas.

As primeiras representações esculpidas de auréolas na arte religiosa indiana são provenientes de dois grandes centros de produção artística, Gandhara (na fronteira do Paquistão e Afeganistão) e Mathura (145 km ao sul de Déli).

Troca de ideias

No fim da Antiguidade e na Idade Média, Gandhara estava no centro de uma imensa rede de rotas comerciais que se estendia até a China a leste e o Mediterrâneo a oeste.

Os mosteiros budistas surgiram ao longo dos principais entroncamentos das rodovias comerciais para servir como versões religiosas dos caravançarais (hospedarias para os mercadores viajantes).

Eles ofereciam um lugar para os mercadores descansarem, orarem e se recuperarem, e se tornaram os trampolins a partir dos quais o budismo se espalhou por terra para a China, onde artistas replicaram a iconografia da religião.

Por volta de 500 d.C., as auréolas apareceram na arte da Coreia e do Japão, indicando a chegada do budismo também nessas regiões.

A mesma disseminação ocorreu com o hinduísmo, que se espalhou pela Ásia por meio de rotas comerciais terrestres e marítimas, levando o comportamento religioso e o estilo artístico para a Indonésia, Malásia e outros territórios do sudeste asiático.

Essas extensas artérias comerciais, que ligavam o leste ao oeste no fim da Antiguidade e na Idade Média, costumam ser chamadas de "Rota da Seda", por causa dos produtos de luxo que costumavam ser transportados ao longo delas.

Mas, ao lado de mercadorias exóticas, essas rotas também transportaram religiões, conhecimento e iconografia.

A auréola em forma de disco é um ícone desse intercâmbio dinâmico de ideias que existiu em um passado distante.

Ela surgiu como um sinal zoroastriano da divindade solar, mas se espalhou pela Eurásia por meio de impérios antigos e redes comerciais que conectavam os limites do mundo conhecido.

No século 21, é também um poderoso lembrete da herança cultural compartilhada da humanidade.

  • Matthew Wilson
  • BBC Culture
Professor Edgar Bom Jardim - PE

sábado, 19 de junho de 2021

Os 40 anos do livro brasileiro condenado pelo Vaticano que hoje inspira papa Francisco




Leonardo Boff

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Atuação do então frade franciscano Leonardo Boff repercutiu no começo dos anos 1980

Aquele padre já estava incomodando bastante os círculos mais conservadores da Igreja Católica. No comecinho dos anos 1980, a atuação do então frade franciscano Leonardo Boff repercutia social e politicamente, justamente pela atuação à frente da Teologia da Libertação, corrente cristã que enfatiza como necessária a opção preferencial pelos pobres.

Quarenta anos atrás, Boff lançou um livro até hoje considerado sua obra máxima, constante de bibliografias de cursos de teologia e presente nas cabeceiras de muitos pensadores influentes — e, há quem diga, até mesmo do papa Francisco. Trata-se de Igreja: Carisma e Poder (Vozes), um compilado de 13 densos ensaios cuja primeira edição foi publicada em 1981.

Ao longo de mais de 200 páginas, o teólogo afirma existirem violações aos direitos humanos no interior da Igreja Católica, questiona a engessada hierarquia eclesiástica e entende a teologia como resultado das experiências de fé vividas pelo povo — e não o contrário.

Se o jeito de ser religioso de Boff, militando junto aos pobres, causava desconforto em setores católicos, o livro serviu como prova concreta para os que viam nele um dissidente, alguém fora do padrão instituído.

O caso foi analisado primeiro pela Arquidiocese do Rio de Janeiro. Em seguida, encaminhado para a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), órgão do Vaticano herdeiro histórico do temido Tribunal da Inquisição, conhecido por perseguir aqueles considerados hereges até o século 19.


No comando da CDF estava o então cardeal alemão Joseph Ratzinger, que mais tarde se tornaria o papa Bento 16, sucessor de João Paulo 2º (1920-2005).

Sua decisão sobre o caso Boff foi publicada em 11 de março de 1985. No julgamento, a congregação entendeu que o livro era uma afronta a pelo menos quatro pontos da doutrina católica.

"Examinadas à luz dos critérios de um autêntico método teológico […] certas opções do livro de L. Boff manifestam-se insustentáveis", pontua o documento final.

"Sem pretender analisá-las todas, colocam-se em evidência apenas as opções eclesiológicas que parecem decisivas, ou seja: a estrutura da Igreja, a concepção do dogma, o exercício do poder sagrado e o profetismo."

Entendendo que as reflexões de Boff "são de tal natureza que põem em perigo a sã doutrina da fé", a congregação condenou o religioso brasileiro. Coube a ele um ano do chamado "silêncio obsequioso", uma espécie de "cala-boca" oficial que o proibiu de emitir opiniões ou mesmo exercer publicamente suas atividades religiosas.

Por e-mail, Boff afirmou à BBC News Brasil que "a intenção originária do livro era aplicar as intuições da teologia da libertação às relações internas na Igreja, em setores da Igreja".

"Uma igreja que prega a libertação na sociedade não pode ser um fator de opressão nas suas relações internas", argumenta ele.

"A razão reside neste fato: todo o poder sagrado está nas mãos de um pequeno grupo clerical; os leigos, que são as grandes maiores, não participam dele e as mulheres são completamente excluídas. Uma Igreja que assim se organiza e exige libertação na sociedade se desmoraliza porque, internamente, não dá mostra de ser libertadora."

Recordando seu próprio livro, o teólogo sustenta que "na medida em que a Igreja hierárquica se assenta sobre o poder em sua forma absolutista e até tirânica na figura do papa, não há a possibilidade de se converter".

"Este tipo de poder centralizado necessariamente é excludente e, por isso, sua natureza viola direitos dos fiéis", diz.

Boff vê os leigos reduzidos a uma cidadania inferior, e as mulheres encaradas como "força auxiliar do clero", a despeito de serem numericamente a maioria.

"O ponto crítico e extremamente sensível para as autoridades eclesiásticas foi a crítica que fiz ao poder sagrado, sobre o qual se constrói toda a compreensão da Igreja", acrescenta.

"Jesus fez uma arrasadora crítica ao poder como centralização e busca de privilégio. O poder só se legitima evangelicamente como serviço e não como privilégio e elemento de criação de diferenças na comunidade. A Igreja dos primórdios se construía sobre a categoria da comunhão de todos com todos, no sentido de uma comunidade fraternal de iguais, embora com funções diferentes."

Leonardo Boff

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Boff diz que no catolicismo contemporâneo, a comunhão foi "esvaziada" e "no lugar do Espírito Santo entrou o direito canônico, que tudo estabelece"

Boff diz que no catolicismo contemporâneo, a comunhão foi "esvaziada" e, "no lugar do Espírito Santo, entrou o direito canônico, que tudo estabelece".

"Não me restringi a fazer crítica à Igreja hierárquica do poder sagrado. Tentei mostrar […] uma alternativa possível e fundada biblicamente, de uma Igreja assentada sobre o Espírito Santo e os carismas como forma diferente de organização comunitária", explica. "Estes seriam os pontos nevrálgicos que provocaram minha convocação pela Congregação para a Doutrina da Fé."

O teólogo reconhece, contudo, que os problemas não eram apenas os teológicos. "Havia dois outros, muito importantes, de caráter político", ressalta ele, frisando que o primeiro dizia respeito à teologia da libertação.

"Uma semana antes de minha convocação [para prestar esclarecimentos], a congregação [CDF] havia publicado um documento crítico a este tipo de teologia, acusando-a de politização da fé e do uso de categorias marxistas. Submeter-me, logo após, a um juízo doutrinário significava também colocar sob suspeição a Teologia da Libertação e, com isso, desautorizá-la."

O segundo motivo político dizia respeito às chamadas comunidades eclesiais de base — grupos ecumênicos em que pessoas com necessidades comuns são incentivadas a se reunir para leituras bíblicas e debates sociopolíticos. Como diz Boff, lugares "onde se praticava e ainda se pratica a Teologia da Libertação".

"A intenção já antiga do Vaticano era declarar que essas comunidades não são eclesiais, mas políticas", afirma ele. "Desta forma, ficariam também desclassificadas e, junto delas, a Teologia da Libertação."

A reportagem perguntou a Leonardo Boff se, com passar do tempo, ele se arrepende ou chegou a se arrepender de alguma coisa do conteúdo desse livro — considerando, inclusive, a repercussão do mesmo no interior da Igreja. Ele negou categoricamente.

"Continuo sustentando as teses do meu livro, que são secundadas pela melhor reflexão teológica católica e ecumênica", esclarece.

Ele afirma que "a estruturação institucional da Igreja hierárquica é mais e mais criticada por não ser suficientemente fundada nos evangelhos e na prática de Jesus e dos apóstolos".

"Sobre isso se fizeram inúmeras teses nas muitas faculdades de teologia. Mais ainda, esta teologia oficial é posta de lado pela prática do atual papa Francisco, que explicitamente vive o modelo de Igreja de comunhão, favorece as comunidades eclesiais de base e tem dado apoio explícito à teologia da libertação, de onde ele mesmo mesmo veio."

Boff comentou que se corresponde com o papa Francisco "em sucessivas e amistosas trocas de cartas".

"O livro ['Igreja: Carisma e Poder'] resultou de uma série de textos de conferências e de artigos publicados. O título vai direto ao ponto", define o teólogo Luiz Carlos Susin, professor na Pontifícia Universidade Católica no Rio Grande do Sul (PUC-RS) e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana e membro do Comitê Internacional do Fórum Mundial de Teologia e Libertação.

"Na América Latina em geral, mais especificamente no Brasil, a década de 1970 tinha sido tensa politicamente pois nos extremos estavam as ditaduras e as guerrilhas, e no campo intelectual a situação social era analisada com categorias marxistas. A Teologia da Libertação dialogava com este pensamento crítico, embora nem Boff e nem os demais teólogos dominassem bem as categorias marxistas. Mas havia 'afinidades eletivas'."

Contexto

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Genézio Darci Boff e assumiu o nome de Leonardo quando se tornou membro da Ordem dos Frades Menores

Em 1981, Boff já era bastante respeitado. Catarinense de Concórdia, nascido em 14 de dezembro de 1938, ele civilmente se chama Genézio Darci Boff e assumiu o nome de Leonardo quando se tornou membro da Ordem dos Frades Menores, ao fim da década de 1950.

Ordenou-se sacerdote em 1964 e, depois, viveu um período na Alemanha, onde doutorou-se pela Universidade de Munique.

Ao longo dos anos 1970, seu pensamento passou a ser materializado em artigos e livros. Ele integrou o conselho editorial da Vozes, onde coordenou a coleção Teologia e Libertação e atuou como redator da Revista Eclesiástica Brasileira, entre outras publicações periódicas.

Nesse contexto, o teólogo fundou em 1979, com a ajuda de um grupo de militantes e religiosos, o Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), em Petrópolis, onde vive. Os antigos parceiros nesse projeto são os que guardam as melhores memórias da perseguição sofrida por Boff no processo junto ao Vaticano.

"Trabalhava no CDDH nos anos 1980 e convivia diariamente com Boff, principalmente no ano do famoso silêncio obsequioso [1985], afirma o teólogo e filósofo Adair Rocha, professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

"Silêncio obsequioso é uma expressão de uma sabedoria histórica incrível, bem mais respeitosa do que 'faz favor de calar a boca'."

"Igreja: Carisma e Poder se relaciona com Jesus Cristo libertador. Isso acabou incomodando os setores hierárquicos da Igreja", diz ele.

"[Boff] trabalha os pressupostos teóricos de natureza teológica com as questões de natureza prática, numa perspectiva estruturante do modelo da circularidade da Igreja, enquanto o modelo tradicional existente é hierarco-piramidal."

"Quando isso vai para as comunidades eclesiais de base, implica em questões que vão interferir diretamente na vida das pessoas, e isso assume uma conotação de natureza política que vai identificar Boff e toda sua produção com autores preocupados com essa questão estruturante do capitalismo e como os meios de produção interferem na força de trabalho", completa.

Para Rocha, a teologia trazida pelas reflexões de Boff estava empenhada em possibilitar que a população mais pobre adquirisse "todos os direitos". "A palavra de Deus vai deixando isso cada vez clara. A conotação política acaba sendo clara", acrescenta.

Professor e desenvolvedor de aplicativos em Goiânia, o filósofo José Américo de Lacerda Júnior recorda que foi arrebatador quando, nos anos 1980, "mergulhou" na leitura de Igreja: Carisma e Poder.

Em 1987, viveu em Petrópolis e "a proximidade com a pessoa do Leonardo trouxe ainda mais força àqueles seus escritos que tinham me marcado tanto".

"Eu vi nele a coerência entre sua prática e sua escrita, entre sua ação e sua teologia", afirma. "Práxis. Compreendi na pele e na alma a mensagem do livro: o desafio de manter o equilíbrio entre a força fundante do amor e a razão opressora da institucionalização."

Leonardo Boff

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Boff afirma que seu livro teve o mérito de provocar uma grande discussão teológica no cerne do catolicismo

O músico e filósofo Sérgio Messias Guimarães orgulha-se de ter integrado o grupo que criou o CDDH em 1979. "[Vi] as consequências: tudo o que Leonardo sofreu a partir de Igreja: Carisma e Poder. A obra veio questionar práticas equivocadas internamente, liturgicamente, teologicamente e pastoralmente. Práticas de centenas de anos. O livro questiona de maneira contundente, daí ganhou uma importância tamanha", relata ele.

"Ratzinger, com seu conservadorismo, traduziu essa linha [conservadora] de João Paulo 2º. Aí chegou a bater forte em Leonardo, por conta dos questionamentos importantes feitos por esse livro", comenta.

"A relevância da obra continua forte porque ela evoca mudanças na Igreja. Jesus colocou muito claramente no evangelho o amor para o outro, o cuidado para o outro, principalmente para aquele que precisa mais, sofre mais as consequências da sociedade que não permite que todos tenham seus direitos básicos respeitados. Boff continua presente, atual. No papado de Francisco, o livro se torna um grande ponto de referência."

Guimarães acredita que a condenação de Boff tenha sido pelo conjunto de sua atuação. "O livro foi a gota d'água por certos questionamentos que ele vinha fazendo e pela própria teologia da libertação", defende.

Para a educadora e militante Márcia Monteiro da Silva Miranda, com quem Boff vive oficialmente desde que largou a batina, em 1992, a repercussão do livro é resultante do fato de que, no período da ditadura, "setores da Igreja lutaram pelos direitos das pessoas e setores conservadores da Igreja achavam que a Igreja não podia se misturar com política".

"Como se o fato de eles não falarem nada [sobre o regime ditatorial] também não fosse um posicionamento político", diz ela.

"Leonardo foi muito profético, mas ele é um homem transparente, que acredita no que fala. O que ele fala é a partir do que reflete, estuda. Mas ele não é um acadêmico que fica só estudando. Ele é um homem de fé e andou sempre em contato com a situação do povo. Isso tornou forte o pensamento dele", afirma.

Por outro lado, Miranda acredita que a punição sofrida por seu companheiro tornou sua obra ainda mais reconhecida.

"Acredito que Deus escreve certo por linhas tortas", sentencia. "O fato de ele ser punido, calado, serviu para disseminar ainda mais a teologia da libertação. Tornou-se uma coisa que se espalhou, se esparramou e vai até hoje adubando a fé, inclusive para irmãos cristãos evangélicos e outras religiões que não são cristãs."

Legado

Boff ressalta que seu livro teve o mérito de provocar uma grande discussão teológica no cerne do catolicismo. "[Contudo] foi um grave equívoco cometido pelas autoridades doutrinais do Vaticano terem entendido de forma errônea o título do meu livro", acredita ele.

"Entenderam Igreja: Carisma ou Poder. Tenho afirmado a legitimidade do carisma e do poder na Igreja, poder para organizar internamente a comunidade no espírito dos evangelhos e carisma para abrir-se ao novo e às iniciativas exigidas pelos tempos cambiantes. Mas tenho insistido na tese: na relação entre poder e carisma deve-se partir sempre do carisma e não do poder", explica ele.

"Assim, o carisma impede o poder de se autonomizar e o confirma sempre como serviço. Se partirmos do poder, este enquadrará o carisma, tirar-lhe-á a forma de inovação e de abertura de novos caminhos", acrescenta.

"Essa foi a tragédia do carisma na Igreja: figuras carismáticas — aqui no sentido de inovadores e não do movimento carismático — e os profetas foram, geralmente, vigiados, cerceados, perseguidos, punidos e até condenados."

Para o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, um ponto-chave para compreender Igreja: Carisma e Poder é entender que, na Teologia da Libertação, "a teologia aparece sempre como um segundo ato".

"O primeiro ato, o mais importante, é a experiência de fé dentro das comunidades. E foi dentro dessas comunidades que a experiência cristã foi mostrando para Boff que a Igreja que se conhece era uma Igreja hierárquica, europeia, medieval, uma Igreja que estrutura e combina o poder temporal com o poder espiritual. Essa Igreja estava em uma direção completamente contrária. Então [sua obra] aponta para uma luta contra o clericalismo, contra essa ordem hierarquizada", explica.

"É como se ele dissesse que o poder nasce dentro da Igreja, mas da Igreja que são essas pessoas pobres, humilhadas sofridas, oprimidas."

Por tudo isso, a obra pode ser definida como profética, segundo explica o professor. Boff cobra uma Igreja que abandone o estilo monárquico, os títulos, os cargos — e brote justamente dos mais pobres.

Conforme diz Moraes, os teólogos da libertação estavam preocupados com a ortopraxia em vez da ortodoxia. "Para eles, melhor do que a opinião correta, é a prática correta. É nessa direção que Boff vai", comenta.

Igreja: Carisma e Poder tornou-se fundamental nas bibliografias da área. "A obra de Boff vai perdurar por muito tempo ainda, porque é consistente. É de uma teologia desafiadora, que faz as pessoas sonharem com um verdadeiro poder: o poder do cristianismo autêntico e não a estrutura fechada, engessada, do clericalismo que se torna protecionista de coisas erradas", avalia Moraes.

"Sua obra vai continuar existindo e resistindo ao tempo porque é uma fonte de utopia, uma fonte teológica de sonhos, de possibilidades de concretização no mundo real das expectativas da caminhada de fé."

Ele ressalta que o teólogo ainda tem a habilidade de tratar de coisas profundas de um jeito simples, dirigindo-se ao homem comum, sendo de fácil compreensão.

Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e pesquisadora do Instituto de Ensino e Assistência Social (IEAS), a religiosa Dulcelene Ceccato, da Congregação das Irmãs do Divino Salvador ressalta a relevância mundial de Boff.

"Ele não é apenas um autor, ele é uma escola de pensamento, tanto teológico como também filosófico. Como poucos, ou melhor, como os melhores e o maiores autores contemporâneos, possui uma obra ampla, sistematizada em muitos livros e artigos."

Leonardo Boff

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"A obra de Boff vai perdurar por muito tempo ainda, porque é consistente", avalia historiador

Ao condenar Boff, a Igreja tinha como "meta atingir a mente mais lúcida da América Latina e Caribe para calar o pensamento em favor do mundo dos pobres", defende o o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Junior, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). "A estratégia persistiu até a eleição do papa Francisco, quando voltamos a ter oxigênio para fazer teologia. Superou-se o verdadeiro inverno eclesial e eclesiástico que durou 40 anos. Um verdadeiro deserto para os intelectuais católicos", diz o professor.

"A cristologia latino-americana que se fez a partir da dor humana, especialmente da humanidade padecente em sua carne e corpo, nas ditadores militares foi calada e perseguida dentro da própria Igreja", comenta Altemeyer. "A cristologia européia se fez a partir do conhecimento humano e da angústia existencial em sua alma e mente. A cristologia latino-americana vem de baixo para cima. Do histórico de Jesus ao ser de Jesus. Do ser de Jesus ao ser de Deus. É alinhada à escola teológica de Antioquia, ao pensamento dos primeiros evangelistas e a São João Crisóstomo. Fazer teologia muda a vida dos teólogos."

Para Susin, a riqueza intelectual de Boff acabou se tornando mais visível com a "mudança de foco" depois de desligar-se do sacerdócio, em 1992. "Ele vinha prestando atenção, pesquisando e começando a escrever a respeito de ecologia em diálogo com as ciências. Sua decisão foi privilegiar a interlocução com a sociedade e não mais com a Igreja, ao menos no foco central de seu trabalho", analisa.

"Continua tendo lealdade de pertença à Igreja e fala dela com propriedade, mas cresceu em sua liderança em termos de ética e espiritualidade ecológicas. Inovou em sua insistência numa ecologia integral, assumida agora pelo papa Francisco", comenta ele. "Mas seus livros de teologia da primeira fase têm ainda consistência e conservam atração por uma das características de seu estilo, uma linguagem quase jornalística, de crônica e algo de poesia. Este outro lado místico e entusiasta, e não apenas crítico, ou profético, em termos mais bíblicos, está presente ao longo de sua produção, o que o torna um escritor rico e complexo."

Pontificado de Francisco

Leonardo Boff

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Boff não esconde que há um alinhamento entre seu pensamento e o atual pontificado

"A teologia de Boff e tantos pensadores do hemisfério sul participa da esperança libertadora dos povos crucificados. É uma cristologia ascendente, inspirada em textos clássicos dos aristotélicos e tomistas", explica Altemeyer. "[Por outro lado,] a teologia europeia trabalha a encarnação do Verbo como manifestação salvífica de Deus. É uma teologia descendente, inspirada em textos clássicos dos platônicos e agostinianos."

A influência do pensamento de Boff sobre o papado de Francisco transparece em algumas de suas manifestações e em documentos oficiais, como na encíclica dedicada ao meio ambiente, a Laudato Si', de 2015.

Para o frei Marcelo Toyansk Guimarães, da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos e assessor da Comissão Justiça e Paz da CNBB-SP, é visível como esse modo de pensar ecoa no atual pontificado. "Podemos ver nas homilias do papa, que ele chama fortemente a cúria romana à conversão", pontua. "Isto está escancarado, estamos à beira de uma reforma mais consistente da própria cúria."

"[No livro,] Boff discorre sobre violações de direitos humanos no interior da Igreja. A Igreja precisa estar aberta a críticas para ajudar na revisão de posicionamentos", prossegue. "Vemos em Francisco como isso acontece de forma mais fluida, quando ele diz tolerância zero com relação a abusos e quando ele se posiciona de forma muito firme em relação aos clericalismos, dizendo que é um grande mal da Igreja."

"O debate trazido por Boff é repetido pelo papa, que nos provoca hoje a fazer uma Igreja a partir dos pobres, que tenha o leigo como protagonista, que seja sinodal", resume o religioso.

Susin atenta que a Igreja, pelo "peso do dinossauro", enfrenta a "dificuldade da reforma". "A tradição, que é sua riqueza e sua glória, é também sua miséria quando se trata da estrutura de poder, e na submissão da doutrina e até do evangelho ao direito canônico, comenta. "A cúria romana tem a estrutura de uma corte do século 17I na França, cheia de títulos, vênias e medalhas. É nas áreas missionárias, de fronteiras, exatamente onde ela parece mais precária, que ela apresenta mais criatividade carismática e mais vitalidade genuinamente evangélica."

"Com a enorme extensão dos pontificados de João Paulo 2º somando-lhe a continuidade em Bento 16 acabou se fortificando na Igreja o que o papa Francisco tem chamado de clericalismo, um interesse ligado ao poder que se afirma sobre a postura de que o clero é a única mediação da salvação", explica ele. "As atuais tensões dentro da cúria romana e as contraposições nem sempre tão veladas de um clero mais conservador em diversos países, como os Estados Unidos, e o papa Francisco mostram que a análise do poder ainda precisa ser feita, é tarefa incompleta."

Ceccato lembra que o teólogo brasileiro foi pioneiro nas reflexões sobre "a grave problemática ecológica", propondo "os parâmetros para uma ecologia integral, que o papa Francisco retoma na encíclica Laudato Si'". "Pode ser dizer que essa é a obra de Leonardo Boff que continua sendo escrita com criatividade, inteligência e, cada vez mais, marcada por uma profunda mística franciscana que aponta para o amor misericordioso de Deus e a fraternidade universal."

"Não cabe dúvidas que a teologia sul-americana, nos últimos 50 anos, deu muitos passos na reflexão teológica", afirma a religiosa. "Basta ver a importância da problemática ecológica."

Boff não esconde que há um alinhamento entre seu pensamento e o atual pontificado. "A prática e a mensagem do atual papa se situam perfeitamente dentro da perspectiva carismática defendida por meu livro 'Igreja: Carisma e Poder'. Ele disse sucessivas vezes que não vai dirigir a Igreja com o uso do poder, que não condenará ninguém e que fará o possível para viver uma Igreja sinodal que é outro nome para uma Igreja de comunhão", ressalta ele.

"Pelo fato de se negar viver num palácio mas preferir a casa da hóspedes, mostra na prática a distância do símbolo do poder, um palácio, e sua proximidade do lugar comum a todos, uma casa. Ele está mais perto da gruta de Belém do que dos palácios dos príncipes renascentistas, muitos deles eleitos papas."

  • Edison Veiga
  • De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Professor Edgar Bom Jardim - PE