As aulas presenciais em instituições de ensino superior das Macrorregiões 1, 2 e 4 (delimitada na Geres VIII ,com sede em Petrolina) receberam o aval do Governo do Estado para serem retomadas a partir do próximo dia 8 de setembro. A data foi anunciada pelo secretário estadual de Educação, Fred Amâncio, em entrevista coletiva online na tarde desta segunda-feira (31). O secretário também anunciou a prorrogação do decreto sobre a Educação Básica em todo o Pernambuco, mantendo as aulas suspensas até o dia 15 de setembro.
A macrorregião 1 engloba a Região Metropolitana do Recife e as Zonas da Mata Norte e Sul; e a 2 compreende os municípios de Caruaru, Garanhuns e seus entornos, no Agreste. Já a 8ª Geres, que faz parte da macrorregião 4, reúne as cidades do grupo que tem como polo o município de Petrolina, no Sertão. Estão fora dessa autorização de aula presencial do Ensino Superior a macrorregião 3 e as Geres com sede em Arcoverde, Serra Talhada e Afogados da Ingazeira, assim como as duas Geres que são da macrorregião 4 com sede em Ouricuri e Salgueir
De acordo com o secretário estadual de Saúde, André Longo, também presente na coletiva, ainda não é possivel igualar a situação epidemiológica de todas as regiões de Pernambuco. "Ainda não há uma homogeneidade dentro das proprias macrorregiões. Ainda temos situações em algumas das Gerências Regionais de Saúde (Geres) que ainda exigem cuidado. A gente ainda não tem esse comportamento uníssono nos 15 dias em todas as regiões. É por isso que nós não vamos tomar medidas homogêneas para todas as macrorregiões do Estado", explicou.
Segundo o Governo de Pernambuco, o protocolo para o retorno das aulas nas faculdades será divulgado até a próxima sexta-feira (4), e caberá a cada instituição a decisão da retomada - ou não - das aulas. "Além de se tratar de uma autorização dada pelo Comitê de Combate à Covid-19, vale destacar que é um público adulto atendido. Outro ponto a ser destacado é que esse processo de retomada vai ser feito em etapas, e as aulas poderão assumir, a partir da decisão das instituições, várias configurações", observou Fred Amâncio.
O retorno das aulas presenciais nas faculdades, segundo o Governo de Pernambuco, será escalonado. Na primeira etapa, que começa dia 8, as instituições de ensino só poderão receber até 25% da sua capacidade. No dia 14 de setembro, as atividades poderão ser retomadas com com até 50% da capacidade de estudantes. O retorno às aulas presenciais segue nos dias 21 e 28 de setembro, estando as instituições estão autorizadas a retomarem as atividades com 75% e 100% de sua capacidade, respectivamente. "A própria instituição vai definir quais são as turmas e cursos que vão retomar. É uma decisão que vai caber a cada uma das instituições. Mas a nossa sugestão é que a grande prioridade seja dada para os estudantes concluintes", indicou o secretário Fred Amâncio.
Os programas sensacionalistas educaram o brasileiro no ódio ao bandido e parecem ter alcançado de forma particular o coração dos fundamentalistas.
É UMA LUTA que provavelmente as gerações mais jovens não conhecem. A guerra da televisão. Nos tempos de TV CRT de 30 quilos, anos 1990, era comum ter uma só em casa. Então, um controle-remoto dava um poder desproporcional a quem dele se apossava.
Na minha casa, quem detinha o poder era o pastor. Meu avô. Como um toque de recolher, minha liberdade de escolher o que ver na TV terminava todo dia às 4h da tarde. Era quando começava a maratona de programas favoritos dele. O primeiro era Carlos Alborghetti, o furioso apresentador que virou um meme. Depois o “Aqui Agora”, um ambicioso e bem financiado projeto de jornalismo sensacionalista, que duraria até 1997. Terminava com o Telejornal Brasil, de Boris Casoy. O primeiro de uma afiliada da TV Gazeta em Curitiba, os demais, por uma do SBT de Sílvio Santos. No total, a tirania do pastor sobre a TV durava cinco horas.
Talvez o velho estivesse se esbaldando com um novo vício. Ser pastor da Assembleia de Deus era guiar uma igreja na qual o consenso era que crente nem sequer devia ter TV em casa. Não chegava a ser proibido, mas passava a impressão que o dono da TV não tinha compromisso com o modo de vida cristão e permitia às tentações do mundo entrarem em casa pela antena. E, dentro do espaço possível na Assembleia na década de 90, meu avô era até moderno: não tinha nada contra calças para mulher ou cortar o cabelo. Dizia que essas coisas eram só costumes, não doutrina (isto é, são coisas não bíblicas, só hábitos da igreja). Mas TV mesmo, ele só foi ter depois de aposentado.
Mas quando teve uma, esbaldava-se em programas pinga-sangue. Hoje ou 30 anos atrás, quem viu a cobertura jornalística de um programa pinga-sangue, viu todas. “Travesti injeta silicone industrial e pede ajuda para não morrer” – apresentador chama de imbecil, mas ajuda. “Esposa queima marido com álcool”. “Marido esfaqueia esposa e joga no riacho”. Alguém faz sexo com animais. Crimes menos espetaculares. Gente pobre. Sempre o bandido tentando esconder a cara da câmera, o policial forçando. Alguns vítimas terminando tão humilhadas como seus abusadores.
Jacinto Figueira Júnior, ‘O Homem do Sapato Branco’, foi um dos pioneiros no show de miséria nos anos 80.
Foto: Reprodução/Youtube - SBT
Crias da ditadura
Sempre odiei esses programas, mas até pouco tempo atrás nunca havia pensado na ideologia que eles transmitem. Quando eu vi o documentário “Bandidos na TV”, na Netflix, me deu o estalo. Programas pinga-sangue estão entre os maiores eleitores de Bolsonaro: eles influenciaram os crentes a odiar não só o pecado, mas o pecador.
O pinga-sangue educou o brasileiro no ódio ao “bandido” – ódio também ao “amigo do bandido” e seus “direitos humanos”. Por diversas razões, parece ter falado de forma particular ao coração dos fundamentalistas, ajudando-os a desabrochar nas figuras agressivamente políticas do presente.
Um pouco de história: programas pinga-sangue têm origem nos tempos da ditadura. “Um dos pioneiros nesta linha foi Jacinto Figueira Júnior, que estreou, em 1966, o programa ‘O Homem do Sapato Branco‘ e permaneceu no ar com seu show de misérias por vários anos”, escreveu o filósofo e teólogo padre Jaime Carlos Patias, em “O telejornal sensacionalista, a violência e o sagrado”. “Seu programa foi veiculado pela Bandeirantes, Globo, SBT e até mesmo pela TV Cultura, emissora teoricamente mais preocupada com o padrão de qualidade da sua programação.”
Jacinto começou na TV e depois foi também para o rádio. Várias outras figuras pioneiras, como Gil Gomes, Afanásio Jazadji e Carlos Alborghetti, começaram como radialistas de noticiário policial antes do fim do regime. Em 1968, Gil Gomes descobriu que um crime sexual havia ocorrido no mesmo prédio de sua rádio e resolveu, pela primeira vez, cobrir ao vivo, andando com o microfone, inaugurando seu estilo dramático.
Nessa época, a ditadura e os sensacionalistas estavam mais ou menos em lados opostos. Jacinto, eleito em 1966 deputado estadual em SP pelo MDB, a oposição permitida pela ditadura, perdeu o mandato (por “atentado contra a moral e bons costumes”), em 1969, após o AI-5, e foi tirado do ar até 1979. Gil Gomes relatou que foi preso 30 vezes no período.
‘Sempre odiei esses programas, mas até pouco tempo atrás nunca havia pensado na ideologia que eles transmitem’.
A era de ouro do sensacionalismo viria na democracia. No momento em que a censura foi banida, com a Constituição de 88. Foi uma época em que as TVs partiram para testar os limites. Fausto Silva falando palavrão no meio da tarde – parece difícil de acreditar hoje, mas babaca e pentelho já foram palavrões. No SBT, surgia um programa baseado em mostrar seios, “Cocktail”. A banheira do Gugu. Em 1991, o já citado noticiário pinga-sangue “Aqui Agora” (que o Sílvio Santos, aliás, pretende trazer de volta).
É um paradoxo. A ditadura não se entendia com o pinga-sangue, mas no final das contas o pinga-sangue acabou por abraçar, reproduzir e divulgar talvez a mais duradoura herança da guerra suja, do porão da ditadura. A cultura da brutalidade policial, da ilegalidade, do grupo de extermínio.
Isso porque, nesse ramo, de certa forma, o papel do jornalista não é só ser simpático ao policial. Ele se confunde com o próprio policial. Em entrevista ao Intercept, o jornalista Danilo Angrimani, autor de “Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa”, traz um exemplo antigo. “Essa ‘promiscuidade’ entre o repórter policial e a polícia não é nova. Lembro de Nelson Gatto, que prendeu, pessoalmente, um bandido e rendeu a manchete ‘Promessinha preso’, em letras garrafais no Última Hora, em 1958. Ou seja, ele não se limitava a informar. Ele mesmo ‘criava’ a notícia”.
Ritual na TV
Os dois estudiosos descrevem o papel do apresentador-sensacionalista como um agente da notícia. “O sensacionalismo opera em uma espécie de balança, atuando, às vezes, como transgressor e, em outros momentos, como ‘instrumento’ de punição”, afirma Angrimani. “O veículo sensacionalista, em alguns momentos, alardeia a quebra da ordem e, em outros, glorifica o restaurador da moralidade.”
O filósofo e teólogo Jaime Patias faz uma análise sob a ótica religiosa dos programas sensacionalistas. Com base no trabalho do filósofo francês René Girard, estabelece uma distinção entre violência sagrada e profana, suja e limpa, pecaminosa ou purificadora. Como funciona: as vítimas em um programa policial, lesadas pela violência profana, são resgatadas pela violência sagrada. “Quando um sistema ou instituição se coloca acima das demais instituições, ao combater a violência, o faz como violência purificadora”, afirma. “A sua atuação se dá numa dimensão religiosa, transcendental.”
Isto é a polícia, acima das leis, ocupando uma função sagrada, e o apresentador cumprindo um papel de sacerdote, numa espécie de ritual de expiação do pecado. “No apresentador [José Luiz] Datena, do Brasil Urgente, percebe-se traços característicos de mediador religioso que se pretende purificador ante a violência comum”, define.
O jornalista e radialista Gil Gomes do “Aqui e Agora”, levado ao ar pelo SBT.
Ari Vicentini/AGE via Estadão Conteúdo
E aqui retornamos ao meu avô. Patias defende que essa relação do espectador com o apresentador é uma substituta da religião. “De certa forma, a mídia é, ao mesmo tempo, produtora da notícia e detentora das grandes verdades e soluções. Dessa forma, ocupa o lugar que outrora foi de Deus, como a verdadeira religião a quem a pessoa recorre.”
Não consigo imaginar meu avô pastor realmente trocando Deus por Datena. Acredito que é algo que corre em paralelo. Uma espécie de sincretismo, digamos assim.
Quando a gente brigava pelo controle da TV, eu achava que o entusiasmo do meu avô por programas policialescos era mero mau gosto, falta de estudo – apesar de, por causa de sua profissão, o pastor ser o único na família a ter uma biblioteca não era decorativa.
Mas a relação era mais profunda. Bíblica. A TV sensacionalista traz uma visão do mundo externo que condiz com o que os evangélicos fundamentalistas pensam. É um mundo caído, em pecado, onde a falta de Jesus no coração leva a todo tipo de abominação, de desgraça, de vergonha. A violência profana da qual fala o professor Patias, que domina o mundo fora da igreja. Ou simplesmente “O Mundo”, como gostam de falar.
Basicamente tudo na vida de um crente fundamentalista se divide entre O Mundo e a Graça, a vida em pecado e em comunhão com Cristo. Coisas d’O Mundo são ruins: música, filmes, ciência que contradiz a Bíblia, bebida, drogas, sexo, tudo o que pode levar o crente a se perder. Um filme ou música profana são a porta de entrada do Diabo na vida de alguém. O objetivo da vida de um evangélico fundamentalista é viver ao máximo segregado d’O Mundo. Essa era a razão para os crentes antigos rejeitarem a televisão.
“O pastor, ao falar para seus fiéis, cita o Diabo como responsável por todas as transgressões”, afirma Danilo Angrimani. O crente precisa se afastar do Diabo, para não pecar mais, para não transgredir.” Os pinga-sangues mostram a vida profana, o mundo do Diabo, exatamente como os crentes o imaginam.
‘Os pinga-sangues mostram a vida profana, o mundo do Diabo, exatamente como os crentes o imaginam’.
Do lado oposto, eles já trazem uma visão que se parece com a do policial encarnado em anjo vingador por esses programas. Uma cultura de autoridade, de leis duras, de tradições pétreas e de guerra – uma guerra constante com o Mundo, o pecado, como é a “guerra” contra o crime do policial militar brasileiro. Uma cultura na qual o bandido está do lado do diabo, em que é basicamente um possesso. E uma cultura policialesca na qual aqueles que se opõem às ações da polícia são como pedras no caminho desse trabalho sagrado. Defender os direitos humanos dos encarcerados e dos alvos da polícia é estar do errado da guerra santa contra o crime. Os que fazem isso costumam ser os mesmos que defendem aborto, religiões afro e “gayzismo”. A esquerda, assim, passa a ter algo de satânico.
Em um programa de 2010, José Luiz Datena demonstrou, de forma transparente, essa relação. Atribuiu a execução de uma criança de dois anos à “ausência de Deus”, num nietzschianismo vulgar.
“Esse é o exemplo típico de um sujeito que não acredita em Deus. Matou um menino de dois anos de idade. Essa gente é quem mata, enterra pessoas vivas, quem estupra, quem violenta nossas mulheres. (…) É por isso que o mundo está essa porcaria, guerra, peste, fome e tudo mais. São os caras do mal. (…) Quem não acredita em Deus não tem limite. Quem não acredita em Deus não respeita limite porque se acha o próprio Deus”.
O insulto mobilizou os descrentes do Brasil. Datena acabou perdendo judicialmente contra a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, a Atea. Mas o resultado foi, segundo o presidente da entidade, “vinhetas bem aguadas e genéricas sobre tolerância religiosa”.
Da minha parte, na época, soou uma coisa óbvia a alguém como Datena dizer. Um insulto no topo de uma montanha. Datena – e pouco importa o que pense ou diga sobre Bolsonaro em si – representa uma faceta central desse bolsonarismo ancestral no qual eu fui criado.
Mas poderia ter sido diferente. Eu mesmo nunca imaginei que um dia haveria um presidente “deles”. Quem sabe os crentes fundamentalistas – e o Brasil – tivessem ficado melhor se continuassem sem televisão.
Nesta semana, um jornal do grupo ND (Notícias do Dia), de Santa Catarina, publicou uma série de reportagens sobre as áreas de pobreza em Florianópolis e municípios vizinhos que chocou urbanistas por sua combinação de inconsistências e preconceitos.
Através do jornal ND+ e da NDTV, que possui seis emissoras afiliadas à Record TV, lançaram um caderno denominado “Relatório Cidade Ameaçada”.
O caderno é, na realidade, um conjunto de panfletos que reproduzem justificativas pretensamente racionais para dar fundamento às insatisfações de elites conservadoras, ao oportunismo do mercado imobiliário e de grupos empresariais e o desejo permanente de manter os mais pobres afastados das áreas de seus interesses.
Na cesta de pérolas do jornal há afirmações como “a nova rocinha não é aqui em Florianópolis”, comparando com a “ocupação favelada de morros” do Rio de Janeiro e propondo a seguinte solução: “ainda há tempo de expulsar”. Enquanto isso, a trajetória da pandemia sequer foi mitigada na capital.
Boa parte do “relatório” mobiliza e reforça incongruências e lugares comuns que permeiam o imaginário social, como o “crescimento desordenado”, o “caos urbano” gerado por “invasões” e “obras clandestinas”. As reportagens reproduzem a torto e a direito estigmas que vinculam as ocupações e áreas de informalidade a uma população perigosa, onde estão as “facções criminosas”, que tornam a “cidade ameaçada”.
O discurso de ódio é recheado por imagens e algumas opiniões de profissionais que parecem incitados por questões tendenciosas e cujas respostas se tornam insuficientes em meio a tantos estereótipos e preconceitos.
A urbanização nunca foi desordenada, mas sempre seguiu a ordem de um poder público muito generoso com as camadas de alta renda e compromissado em satisfazer suas pressões e garantir os seus interesses, porém, extremamente omisso com os mais pobres. Mesmo nos tempos de intensa urbanização no Rio de Janeiro, em São Paulo ou Florianópolis, não faltou planejamento.
No geral, historicamente, o poder público sempre destinou os seus planos e os grandes investimentos em infraestrutura e serviços públicos para sustentar projetos grandiosos de elites ou para abrir frentes de investimento para o capital imobiliário, segregando os excluídos e invisibilizando essa realidade do conjunto da população. A prioridade sempre foi garantir espaços urbanos com qualidades semelhantes às cidades da Europa e dos EUA. Governantes e camadas de alta renda criavam as áreas embelezadas onde viviam, enquanto deixavam à própria sorte os subalternos que faziam o cotidiano urbano funcionar e ainda eram estigmatizados como violentos e perigosos.
O fim do século XIX e o século XX todo estão perpassados de intervenções urbanísticas setorial e privilegiada, contribuindo para ampliar e consolidar o atual apartheid social e a segregação urbana. Foi assim que se formaram as periferias, os morros, as favelas, e todas as áreas de pobreza; e é assim que se reproduzem as desigualdades hoje, sobretudo porque os investimentos setorizados geram curvas de especulação muito acima da alta dos salários, elevando o custo da terra urbanizada, impedindo que as camadas pobres consigam habitar dignamente e usufruir das cidades.
Precisamos reconhecer que outras reportagens mostram mais consciência, ao reconhecerem que a valorização da ilha “empurrou a população mais pobre para as encostas de morros e periferias”. E também até têm uma razão (cínica) ao dizer que “favelas desvalorizam o entorno”. Mas o fato é que nenhuma delas vai a fundo no problema e muitas questões ficam sem respostas.
Qual a parcela de responsabilidade das camadas que querem fazer de Florianópolis a cidade inteligente, sustentável, internacional e que, junto de seus governantes, investem em ilusões, em saneamento e transporte para todos, ao invés de investir em moradia adequada? Os culpados pela pobreza urbana são os que vão para as áreas centrais em busca de sobrevivência, de moradia, de emprego e ainda são sub-remunerados, ou a culpa é donos de glebas que assediam a prefeitura para que a área urbanizada possa avizinhar-se dos seus terrenos? A responsabilidade de toda essa desigualdade recairia sobre os promotores imobiliários e empresários da construção civil que se utilizam de financiamento publico para investir onde têm interesse e do modo que desejam, ou sobre os pobres que perdem longas horas diárias em transportes ruins, abarrotados e em vias precárias?
Numa caricatura, Florianópolis é isso: na aparência, uma cidade internacional, qualificada, com patrimônio natural, arquitetônico e histórico preservados, uma futura smart city, mas com áreas de pobreza nas depressões dos morros, nas periferias e no continente, com mobilidade urbana inadequada, transporte publico insatisfatório, moradias com preços altamente especulados, além de precariedade no abastecimento de água e saneamento.
As reportagens do ND+ de Santa Catarina não falam desse processo histórico de construção da cidade, tão pouco sobre as situações dos que moram nessas ocupações e nos assentamentos informais, onde vivem milhares de famílias com muitas crianças e muitos idosos.
O noticiário parece ignorar que a imensa maioria dos que moram ali são trabalhadores, não apenas nas atividades informais. Muitos trabalham nos supermercados, como motoristas de ônibus e caminhões, em shoppings centers, escritórios, na politica militar e até no serviço público. Ao dizer que as favelas e seus modos de vida desvalorizam os bairros do entorno, trazendo imagens de habitações precárias e de criminalidade, essas opiniões fortalecem os estereótipos. Somado à omissão do poder público, esse discurso legitima a ação violenta de policiais despreparados a baterem nesses trabalhadores e na juventude negra e pobre, pois responsabilizam esses trabalhadores e suas famílias pela depreciação e pela ameaça à cidade. É importante lembrar que esse tipo de opinião, quando publicada em jornais com grande circulação local, ganham ar de legitimidade pública.
No limite, essas narrativas povoam o imaginário de playboys que queimam morador de rua. Esses sujeitos e setores da mídia não se dão conta de que, ao reforçarem esses estigmas e preconceitos, contribuem para acirrar a incompreensão recíproca, o ódio, a hostilidade e a violência.
Esses panfletos conservadores são verdadeiros manifestos anti-urbanos, que não só inviabilizam o convívio e a solidariedade, mas, sobretudo, incitam a vida social apartada e hostil: os pobres isolados em suas comunidades, as camadas de alta renda encasteladas em condomínios fechados e as camadas médias com medo, atrás de câmeras, grades e dentro de shopping centers.
Ainda que entremos num domínio das hipóteses, não podemos diminuir a capacidade da imprensa em absorver as insatisfações difusas de seus simpatizantes e apoiadores. É de se supor que essa ofensiva pedindo limpeza social seja uma forma de pedir a abertura de frentes pra os negócios imobiliários, que de 2009 a 2015 se acostumaram a ganhar muito, mas desde 2016 oscilam entre estagnação e crescimento pífio, por conta da crise econômica nacional, agora acirrada pela pandemia.
Entretanto, essas reportagens-panfleto não são apenas nocivas, elas também têm o seu lado didático. Há ali material riquíssimo para muitas aulas sobre como a urbanização desigual e segregadora se reveste de narrativa racional e legitima uma sociedade fraturada. São didáticas também, na medida em que convocam professores, profissionais e entidades responsáveis a estarem mais presentes nos debates públicos porque, do contrário, estes são ocupados por pessoas despreparadas, opiniões inconsistentes e por vezes oportunistas.
Se as camadas populares não têm voz, se os urbanistas e as universidades não debatem como as cidades funcionam e são produzidas, outros atores sociais se sentem à vontade para fazê-lo. E, na realidade, é exatamente isso que eles têm feito, quase sempre denunciando os problemas e tragédias sociais como sendo causados pela ausência de fiscalização, pela irresponsabilidade dos moradores das favelas, ou por serem casos de polícia.
O mesmo serve a jovens e estudantes das mesmas disciplinas: vejam a importância de disputar as narrativas sobre a cidade. Não podemos deixar que atores sociais tão irresponsáveis se coloquem no papel de dizer qual cidade queremos para o futuro. O que mais precisamos neste momento é disputar esse futuro. As reportagens-panfleto destilam agressividade sem propostas efetivas, a não ser criminalizar as comunidades pobres, depreciar aqueles que buscam subsistir na cidade, e exigir do poder público fiscalização rigorosa, policiamento ostensivo, remoção da pobreza e o distanciamento.
Cabe a nós recolocar no horizonte que uma política urbana responsável demanda, antes de tudo, uma redistribuição justa de investimentos públicos, com critérios claros sobre as necessidades sociais urgentes. Em seguida, é necessário dar atenção para a multiplicidade das necessidades habitacionais, ou seja, a regularização fundiária, a urbanização de assentamentos precários, a melhoria através de reformas ou de manutenção das moradias, além de construção de novas moradias de interesse social em áreas centrais e providas de serviços públicos e de infraestrutura urbana.
Para tanto, é preciso mobilizar redes de entidades técnicas e profissionais, instituições governamentais das esferas municipais e estadual, as universidades e institutos compromissados com os reais desafios, com a implementação de legislação urbanística e especifica como lei da Assistência Técnica para a Habitação Social e, certamente, com os recursos públicos necessários e a gestão social do processo. É com essas redes que podemos recolocar um horizonte de cidade minimamente mais qualificada, mais inclusiva, mais digna, mais segura e mais justa para todas e todos.
Maria Inês Sugai é professora associada na Universidade Federal de Santa Catarina, onde foi coordenadora do Programa de Pós-Graduação. Foi membro do Conselho Estadual das Cidades do Estado de Santa Catarina e compõe a coordenação da Rede BrCidades Santa Catarina.
Paolo Colosso é professor no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Arquiteto e urbanista, é bacharel em filosofia pela Unicamp, mestre e doutor em filosofia pela USP. Atualmente compõe a coordenação nacional da Rede BrCidades.
O ator Chadwick Bosman, estrela do inovador filme de super-heróis “Pantera Negra”, faleceu de câncer de cólon aos 43 anos nessa sexta-feira 28.
Bosman nunca havia falado publicamente sobre a doença, que foi diagnosticada pela primeira vez em 2016, e continuou trabalhando em diversos filmes de Hollywood.
“Foi um honra para sua carreira dar vida ao rei T’Challa em Pantera Negra”, afirmou uma declaração postada nas redes sociais do ator. “Ele faleceu em casa, com a esposa e a família ao seu lado”.
Boseman se tornou o primeiro ator negro a interpretar um super-herói como protagonista em seu próprio filme do universo Marvel, estrelando em “Pantera Negra”, um enorme sucesso de bilheteria em 2018. O filme arrecadou mais de 1 bilhão de dólares em todo o mundo.
A obra, ambientada no fictício reino africano de Wakanda, foi aclamada pela crítica e pelo público e disputou o Oscar de melhor filme.
No início da carreira, Boseman interpretou os ícones negros Jackie Robinson em “42: A História de uma Lenda” e James Brown em “Get on Up”.
Recentemente, apareceu em “Destacamento Blood”, do diretor Spike Lee, e estrelaria na continuação de “Pantera Negra”, prevista para 2022.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou o afastamento imediato o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC) do cargo, inicialmente por seis meses, por irregularidades em contratos na saúde.
A decisão foi tomada na sexta-feira (28/08) pelo ministro do STJ Benedito Gonçalves.
Assume o Estado o vice-governador, Cláudio Castro (PSC).
Não há ordem de prisão contra Witzel. No total, a Polícia Federal (PF) cumpre 17 mandados de prisão, sendo 6 preventivas e 11 temporárias, e 72 de busca e apreensão.
Witzel e outras oito pessoas, incluindo sua mulher, a primeira-dama Helena Witzel, também foram denunciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) por corrupção.
O pastor Everaldo, presidente nacional do PSC, foi preso na operação.
Mas o que motivou o afastamento de Witzel?
O Ministério Público, por meio da Procuradoria-Geral da República (PGR), sustenta ter provas que colocam Witzel "no vértice da pirâmide" dos esquemas de fraudes investigados no estado.
Segundo a PGR, o governo do Rio de Janeiro estabeleceu um esquema de propina para a contratação emergencial e para liberação de pagamentos a organizações sociais (OSs) que prestam serviços ao governo, especialmente nas áreas de saúde e educação.
Ainda de acordo com a denúncia, Witzel usou o escritório de advocacia da mulher, Helena, para receber dinheiro desviado por intermédio de quatro contratos no valor aproximado de R$ 500 mil.
A decisão do ministro Benedito Gonçalves, do STJ, levou em conta as investigações de duas ações: a Favorito e a Placebo, ambas em maio (leia mais abaixo).
A operação desta sexta-feira foi batizada de Tris in Idem, uma referência ao termo em latim bis in Idem, que consiste na repetição (bis) de uma sanção sobre mesmo fato.
Trata-se, assim, de alusão aos dois antecessores de Witzel no governo do Rio de Janeiro, os ex-governadores Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, também acusados de corrupção.
O que diz Witzel
Witzel fez um pronunciamento na manhã de sexta (28) em que afirmou que é vítima de "perseguição" e que está "indignado" com o afastamento.
"É uma busca e decepção. Não encontrou R$ 1, uma joia. Simplesmente mais um circo sendo realizado. Eu e outros governadores estamos sendo vítimas do possível uso político da instituição (Ministério Público)", afirmou Witzel.
O governador afirmou ainda que não há nenhum indício de que ele esteja atrapalhando as investigações.
"Eu desafio quem quer que seja a qual foi o ato que pratiquei para prejudicar as investigações. Eu afastei o secretário da Saúde, eu determinei auditoria em todos os contratos e a suspensão dos pagamentos", afirmou.
"Todas as medidas que eu venho tomando são contrárias a qualquer decisão de afastamento porque não há nenhum ato praticado por mim ao longo desses meses que possa caracterizar que eu atrapalhei a investigação."
O procurador da República Eduardo El Hage disse, após a fala de Witzel, que o afastamento não teve motivação política. "A ação de hoje não tem qualquer motivação política, a peça (jurídica) está muito robusta. Não tem qualquer viés político, como tenta desviar o governador", afirmou El Hage em entrevista coletiva na sexta (28).
Operação Placebo - 26 de maio
Em 26 de maio, a PF deflagrou a Operação Placebo, em que Witzel e a mulher foram alvos de mandados de busca e apreensão, expedidos pelo STJ.
A PF buscava provas de supostas irregularidades nos contratos para a pandemia. A Organização social Iabas foi contratada de forma emergencial pelo governo do RJ por R$ 835 milhões para construir e administrar sete hospitais de campanha.
Operação Favorito - 14 de maio
Desdobramento da Lava Jato, a Operação Favorito resultou na prisão do ex-deputado estadual Paulo Melo e o empresário Mário Peixoto, entre outras pessoas.
Peixoto e Melo, que já foram sócios, acabaram presos a partir de indícios de que o grupo do empresário estava interessado em negócios em hospitais de campanha.
O alvo seriam as unidades montadas pelo estado — com dinheiro público — no Maracanã, São Gonçalo, Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Campos e Casimiro de Abreu.
Depois de atrasos sucessivos, apenas as duas primeiras foram abertas parcialmente.
Entre os muitos detalhes que chamam a atenção na investigação sobre o assassinato do marido da pastora e deputada federal Flordelis (PSD) — do qual ela teria sido a mandante, segundo a polícia — um dos pontos sobre os quais ainda pairam dúvidas é como ela conseguiu adotar mais de 50 crianças quando o processo de adoção no Brasil é rigoroso e há uma enorme fila de pretendentes no cadastro de adoção.
A verdade é que, embora tenha ficado conhecida como "mãe de 55 filhos" e chamasse de "filhos adotivos" as crianças que viveram ou vivem na casa administrada por ela no Rio de Janeiro, Flordelis não chegou de fato a adotar oficialmente todos eles. Ela tem também três filhos biológicos do primeiro casamento, já adultos.
Não está claro quantos dos seus "filhos" foram oficialmente adotados, mas inquéritos e processos judiciais, além da própria autobiografia da deputada, mostram que grande parte das crianças não tinha situação regular.
Ela, na verdade, teve diversos problemas com a Vara da Infância e da Juventude porque a situação das crianças não estava regularizada — e chegou a ser fugitiva da polícia por causa disso antes de ganhar espaço na mídia.
A própria pastora contou em sua autobiografia e em inúmeras entrevistas — como no programa do apresentador Rodrigo Faro, na Record — que passou um ano fugindo da polícia com as crianças, sendo acusada de sequestro.
A situação irregular adiciona mais um mistério a um caso que, de acordo com as investigações da polícia, já é cheio de elementos peculiares.
Entenda o caso e como as crianças foram parar sob a supervisão de Flordelis.
O assassinato de Anderson do Carmo
Morto a tiros em junho de 2019 em um episódio que à época Flordelis afirmou ser um assalto, Anderson do Carmo era casado com a pastora desde 1994.
Os dois haviam se conhecido alguns anos antes, quando Flordelis tinha 30 anos e tocava uma igreja com a mãe na favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O templo era frequentado por muitos jovens e crianças.
Em sua casa na rua Guarani, umas das vielas da favela, Flordelis — que era recém-divorciada e tinha três filhos biológicos — começou a acolher jovens e crianças da comunidade que viviam em situação de vulnerabilidade.
Apesar ter uma situação de vida estável (morava com os pais, trabalhava como jovem aprendiz, tinha se formado em um dos colégios públicos mais tradicionais do Rio) em pouco tempo Anderson, que tinha 14 anos, passou a morar na casa da rua Guarani e se tornou um dos cinco acolhidos que Flordelis tratava como filhos — seus "filhos adotivos".
Segundo um relato de sua mãe, Maria Edna do Carmo, à polícia, a primeira namorada de Anderson foi Simone, uma das filhas biológicas de Flordelis. O namoro durou pouco, no entanto, e Anderson logo começou um relacionamento com a própria Flordelis.
Os dois se casaram em 1994, o que só foi possível porque Anderson não tinha sido oficialmente adotado.
O casamento durou 25 anos, até 2019, quando Anderson foi morto com 30 tiros na porta de casa.
No entanto, a Operação Lucas 12 do Ministério Público do Rio de Janeiro e da Polícia Civil apontou Flordelis como mandante do homicídio e prendeu cinco filhos da deputada que estariam envolvidos no crime.
"Flordelis financiou a compra da arma, convenceu pessoas a realizar esse crime, avisou sobre a chegada da vítima ao local e tentou ocultar provas. Não resta a menor dúvida de que ela foi a autora intelectual, a grande cabeça desse crime", afirmou o delegado Allan Duarte, responsável pela investigação, em entrevista coletiva na segunda (24).
A motivação, segundo a investigação, seriam questões financeiras e intrigas familiares — Flordelis acreditava que um divórcio mancharia sua reputação como pastora.
"Quando ela fala com um dos filhos (em mensagens de celular) sobre os planos de matar Anderson, ela disse: 'Fazer o quê? Se eu separar dele, vou escandalizar o nome de Deus'", disse o promotor Sérgio Luiz Lopes Pereira, do Ministério Público.
A defesa da deputada diz que fui surpreendida com as acusações e que a deputada "jamais foi mandante desse crime bárbaro".
"A deputada está muito aborrecida e chateada com tudo que está ocorrendo porque tem com ela a inocência", afirmou o advogado Anderson Rollemberg no dia da coletiva.
"Ela é cantora gospel, líder religiosa e parlamentar federal. A questão dela sempre foi dar o melhor para os necessitados. Por isso tinha mais de 50 filhos. Na opinião da defesa, está havendo um grande equívoco no desfecho desta investigação", disse ainda o advogado.
A chegada das crianças
Ainda nos anos 1990, Flordelis começou a acolher outros jovens e crianças além dos três filhos biológicos e cinco primeiros jovens que abrigou em sua casa.
Um desses foi Daniel dos Santos Souza, que era apresentado por Flordelis e Anderson como filho biológico, mas que na verdade foi entregue para o casal ainda bebê.
Segundo as investigações da Delegacia de Homicídios, Flordelis recebeu o bebê de uma jovem cuja gravidez não era aceita pela família. Prontuários médicos da maternidade Santa Helena, em Duque de Caxias, apontam que ele nasceu ali em 18 de janeiro de 1998, filho biológico de Janaina Barbosa.
Segundo a polícia, em sua certidão de nascimento, no entanto, consta que seus pais são Janaina e Anderson, apesar de Daniel nunca ter passado por um processo oficial de adoção.
"Quando alguém passa por um processo de adoção na Justiça, o nome dos pais adotivos fica registrado nos documentos da criança, mas com a indicação da adoção aprovada pela Justiça. Registrar uma criança como seu filho, sem que ele seja seu filho biológico, sem passar pela Vara da Infância e Juventude, é considerado falsificação de documento e é ilegal", explica a advogada de família Mariana Turra Pontes.
Ao lado dos filhos biológicos e dos primeiros "adotados", Daniel formava na família o que a investigação apontou como sendo a "primeira geração" de filhos — um grupo de oito pessoas que, segundo a polícia, tinha tratamento diferenciado por parte dos pais.
A "primeira geração", apontam as investigações, tinha acesso a cômodos melhores, melhor alimentação e mais proximidade com Anderson e Flordelis.
As outras crianças foram chegando de diversas formas. Flordelis conta em sua biografia e já disse em várias entrevistas que 37 deles foram acolhidos de uma vez após sobreviverem aos ataques feitos por grupos de extermínio contra crianças que dormiam na Estação Central do Brasil.
Outros foram entregues diretamente por pais que não tinham condição de criar os filhos, segundo o livro sobre a vida da Flordelis. A pastora também chegou a buscar algumas das crianças após receber notícias de que elas estavam em situação de vulnerabilidade.
De fugitiva a deputada
A própria Flordelis conta em sua autobiografia que começou a ter problemas com a Justiça ainda nos anos 1990, por causa da situação irregular das crianças — ela chegou a ser acusada de ser "sequestradora de crianças".
Com o crescimento da família e os problemas com a Justiça, Flordelis e Anderson se mudaram diversas vezes fugindo das fiscalizações da Vara da Infância de da Juventude.
Para criar os "filhos", ela teve ajuda de um ONG que começou a chamar a atenção da mídia para a situação da pastora. Flordelis começou então a ganhar notoriedade e ajuda para cuidar das crianças.
Em 1999, ela e Anderson fundaram sua primeira igreja juntos, na zona norte do Rio, transferido no ano seguinte para São Gonçalo.
Em 2001, o Ministério Público do Rio de Janeiro entrou com uma ação contra Flordelis pelo fato de ela não ter dado o devido andamento ao processo de adoção de uma das crianças. Alguns anos depois, com a adoção oficial da menina, o processo foi extinto.
Em 2009, o filme Flordelis — Basta uma Palavra para Mudar, contando a história de sua vida e das adoções, teve a participação de diversas celebridades, que não cobraram cachê.
Nessa época Flordelis já se aventurava pela política, tendo concorrido a cargos em São Gonçalo, sem sucesso. Em 2018, no entanto, ela conseguiu se eleger como deputada federal pelo Rio de Janeiro, sendo a mulher mais votada no Estado.
Adoções irregulares
Com notoriedade pública cada vez maior, a pastora acabou conseguindo evitar que as crianças fossem retiradas pela Vara da Infância e da Juventude. Em entrevistas, ela afirmou que finalmente conseguiu "diálogo com um juiz" para um processo de "regularização" do situação dos filhos na Justiça, ganhando ao menos a guarda temporária de alguns deles.
Após o homicídio da Anderson, começou a vir à tona que, apesar de Flordelis ter conseguido evitar que as crianças fossem levadas, nem todos são oficialmente adotados — com um processo regular, aprovado pela Justiça.
A Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Niterói está investigando as diversas "adoções" feitas pela deputada depois que o Conselho Tutelar denunciou que uma adolescente de 17 na casa de Flordelis mora no local há seis anos sem nem ao menos ter certidão de nascimento.
Em um discurso em fevereiro, na Câmara dos Deputados, Flordelis afirmou que tentava conseguir um registro de nascimento para a jovem e que tinha sua guarda legal.
"Minha filha hoje só frequenta uma escola porque eu tive que ir lá implorar para minha filha entrar naquela escola, mesmo que de forma ilegal", disse a deputada no plenário.
Advogados de família explicam, no entanto, que a Justiça não concede a guarda legal de uma criança ou adolescente sem que seja emitido um documento para a pessoa — em caso de incerteza sobre a origem, os dados são presumidos.
O jornal O Globo revelou que os pais da adolescente afirmaram aos investigadores que a menina havia fugido de casa e que eles nunca deram consentimento para que ela fosse morar com a deputada.
Após o homicídio de Anderson, a mãe de outras três crianças que ficaram sob o cuidado de Flordelis também foi à Delegacia de Homicídios para contar que nunca conseguiu reaver as filhas após deixá-las com Flordelis.
Carla perdeu a guarda das crianças após ser presa por furto e deixou as crianças com Floderlis no tempo em que ficou presa. Ela diz, no entanto, que nunca teve a intenção de entregá-las definitivamente, e que descobriu que havia assinado uma adoção definitiva somente no Tribunal de Justiça.
"Em frente ao juiz comecei a chorar. Contei que não queria dar as minhas filhas. Flordelis se aproximou e disse que eu poderia encontrar minhas filhas depois e me daria um emprego", contou Carla à polícia. A vendedora de empadas afirmou na delegacia que nunca conseguiu rever as meninas após sair da prisão.
Já Flordelis diz em sua autobiografia que a mãe biológica das crianças teria dito a ela que amava as meninas mas que "não as queria mais".
A neta de Flordelis, Rayane dos Santos Oliveira, que segundo a polícia também estaria envolvida no homicídio de Anderson, também não teria sido adotada de forma regular, revelou o jornal carioca Extra.
A história de Rayane, que teria sido encontrada em uma lixeira na Central do Brasil, era com frequência contada por Flordelis em suas pregações. A menina foi registrada como filha de Simone, uma das filhas biológicas de Flordelis.
A adoção de Rayane por Simone, no entanto, não seria permitida por lei, já que a diferença de idade entre as duas é de apenas 13 anos.
"Há uma série de requisitos para a adoção", explica a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva. "Um deles é que a diferença de idade mínima entre o pretendente e o adotado seja de 16 anos", diz Tavares da Silva, que é fundadora e presidente nacional da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões).
Como funciona a adoção
Em sua atuação como deputada, uma das principais bandeiras de Flordelis era o que chamava de "desburocratização da adoção".
"O Brasil tem 44 mil crianças e adolescentes atualmente vivendo em abrigos, mas cerca de 9 mil habilitadas para adoção. Temos que mudar essa realidade", afirmou em maio de 2019 ao jornal Folha de S.Paulo.
O processo de adoção no Brasil é rigoroso, explicam advogados de família ouvidos pela BBC News Brasil, porque é preciso garantir o bem-estar das crianças.
"O princípio maior que rege a questão é o interesse da criança", explica Tavares da Silva.
Há uma série de requisitos, explica Tavares da Silva: o pretendente à pai ou mãe precisa ser maior de idade, ter uma diferença mínima de 16 anos com a criança, e precisa demonstrar judicialmente que tem condições morais, psicológicas, educacionais para poder adotar.
"A adoção só pode ser deferida quando apresentar reais vantagens para o adotado", explica a advogada.
O processo de adoção costuma levar cerca de um ano, e é preciso que os pretendentes a pais consigam um habilitação na Justiça e que haja um tempo de convivência da criança com a família.
No entanto, a fila para o cadastro de adoção — ou seja, a espera para que os pais possam começar um processo de adoção — pode ser longa e demorar anos, dependendo da comarca em que os pais se encontram.
Flordelis jamais entrou nessa fila para o cadastro, porque seu objetivo era adotar crianças que já estavam com ela.
Embora não seja a norma, adotar de forma legal e oficial uma criança que já está sob sua guarda, porque foi entregue pelos pais, é uma possibilidade existente no Brasil — é a chamada adoção dirigida, explica a advogada Mariana Turra Ponte. "Mas é um processo bastante longo e complexo, e nem sempre a adoção é garantida", afirma.
"É uma jurisprudência que começa a se formar, a pessoa começa a cuidar, aos poucos vai conseguindo a guarda, até a adoção", diz Tavares da Silva.
Mas mesmo em casos em que a Justiça autoriza processos como esse, é algo totalmente incomum que alguém adote um número tão grande de crianças e adolescentes.
No caso dos filhos de Flordelis, não está claro quantas as crianças e jovens adotados de fato passaram por esse processo de regularização na Justiça, já que a deputada nunca tornou públicos os documentos. Como as investigações da polícia e do Ministério Público revelaram, há diversos casos entre as crianças em que a autorização da Justiça nunca foi dada.
O que pode acontecer com a deputada? E com os filhos?
Mesmo sendo considerada mandante do homicídio de Anderson pela polícia, Flordelis não foi presa porque tem, como deputada federal, imunidade prisional.
Ou seja, só pode ser presa caso ocorra um flagrante de um crime inafiançável. Na prática, a deputada não pode sofrer nenhum tipo de prisão preventiva ou temporária.
Esse direito é garantido pela Constituição Federal a parlamentares para impedir que prisões arbitrárias ou um uso político de prisões para perseguir ou retaliar os ocupantes destes cargos. Enquanto isso, a deputada está impedida de deixar o país ou se mudar para outra cidade. Também não pode ter contato com qualquer testemunha ou com os outros réus.
Para que um deputado seja preso ou afastado por decisão do Poder Judiciário, é preciso que a Câmara dê autorização. Uma cópia do inquérito com o resultado da investigação será enviada à Câmara para que sejam adotadas as medidas administrativas cabíveis.
"Se o Judiciário pedir o afastamento, vamos decidir", disse o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em entrevista à Rádio Guaíba. "Em relação ao processo, tenho que analisar para que a Câmara avalie que providências tomar."
Apesar da imunidade prisional conferida pelo mandato, Flordelis não tem direito ao chamado foro privilegiado, que determina que um caso envolvendo um parlamentar só pode ser julgado pelas instâncias judiciais superiores.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal decidiu que isso só ocorre quando o crime investigado tem relação com o mandato, o que não é o caso.
Cinco dos filhos de Flordelis e a neta Rayane já foram presos em meio à investigação sobre a morte de Anderson do Carmo, acusados pela polícia de envolvimento no crime.
Boa parte dos outros filhos já é adulta e já saiu da casa onde vivem as crianças em Niterói.
Em relação aos menores de idade, o Ministério Público pode entrar com um pedido de que a Justiça realoque as crianças caso as investigações em andamento pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente comprovem que houve irregularidade nas adoções e que o ambiente em que vivem os menores não é adequado.
Se Flordelis for presa em meio à investigação sobre o assassinato do marido, o Ministério Público também deve entrar com um pedido na Justiça para que seus filhos adotivos tenham uma tutela adequada. Caberá a um juiz decidir sobre o futuro das crianças.