Preciso. Exato. Ciente do valor, do peso e da forma de cada palavra, cada expressão, cada verso.
O pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), antítese da ideia de que poesia é resultado de uma inspiração mágica, tornou-se um dos maiores poetas da língua portuguesa justamente porque perseguiu, com afinco, determinação e rigor, a inalcançável beleza da perfeição.
Fazia versos como quem matematiza. Rimava como quem resolve das palavras uma equação.
Especulado como candidato ao Prêmio Nobel de Literatura, o poeta tinha vários outros reconhecimentos, entre eles o Prêmio Neustadt, o Prêmio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana e o Prêmio Camões.
Profissionalmente, Cabral foi diplomata. De 1945 a 1990, período em que serviu ao Itamaraty, viveu em 14 cidades diferentes: Barcelona, Londres, Brasília, Sevilha, Marselha, Madri, Genebra, Berna, Assunção, Dacar, Quito, Tegucigalpa, Porto e Rio de Janeiro
Sua estreia na literatura ocorreu em 1942, com a publicação de Pedra do Sono. A produção poética se tornaria uma constante até o fim de sua vida. Entre as principais obras do pernambucano destacam-se O Engenheiro de 1945, Psicologia da Composição com a Fábula de Anfion e Antiode, de 1947, O Cão Sem Plumas, de 1950, O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaripe de Sua Nascente à Cidade do Recife, de 1953, Uma Faca Só Lâmina, de 1955, A Educação Pela Pedra, de 1966, Museu de Tudo, de 1975, e Tecendo a Manhã, de 1999. Além, é claro, do seu maior sucesso: Morte e Vida Severina, publicado originalmente em 1955.
"Ele é um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos. Sua obra é mais vasta e muito mais diversa do que imaginam aqueles que pensam que ele é apenas o autor de Morte e Vida Severina", diz à BBC News Brasil o poeta e professor de literatura Frederico Barbosa.
Barbosa destaca que essa obra mais conhecida de Cabral costuma ser "mal lida", vista "apenas como um panfleto sobre a miséria do sertão". Mas que o poeta "deixa muito claro que [essa pobreza] não vem da natureza, vem das precárias distribuições de renda e terra".
"João Cabral é certamente um dos maiores poetas do nosso país. Eu considero talvez o maior", enfatiza à reportagem a tradutora, pesquisadora e professora de literatura Sandra Mara Stroparo, docente na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), o escritor e professor Miguel Sanches Neto diz à BBC News que o autor de Morte e Vida Severina "é um poeta único na tradição de língua portuguesa, marcada pela exacerbação do eu".
"Contra a tendência lírica, ele construiu uma poesia objetual, em terceira pessoa, em que o outro e as coisas ocupam o centro da experiência lírica", analisa.
"É um poeta em que o crítico literário e de cultura se manifesta, e não uma individualidade. Outro aspecto disruptivo é ser moderno usando formas fixas, herança da geração de 45", acrescenta Sanches Neto, citando o grupo da terceira geração do modernismo.
"Com isso, matou a inspiração ou a genialidade como fatores poéticos. Nesse sentido, é um poeta único."
Seu estilo marcado pelo rigor técnico e pela busca da exatidão fez com que ele acabasse sendo chamado de "engenheiro".
Mas de forma alguma isso pode ser confundido com insensibilidade ou frieza. "A obra poética de João Cabral destaca-se pela busca de uma forma rigorosa e estruturada, refletindo seu conhecimento sobre temáticas sociais. O regionalismo é central, com ênfase na vida e nas dificuldades do povo nordestino, especialmente em relação à seca, que simboliza a luta e a resistência", comenta à reportagem o professor Vicente de Paula da Silva Martins, docente na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).
O poeta e tradutor André Capilé, professor de Literatura Brasileira na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica à BBC News Brasil que há na literatura de Cabral "um plano de concisão e investimento na palavra mais precisa, mais justa, em termos de composição" e este estilo veio em um momento em que "a poesia brasileira ia ficando muito pastosa, muito prolixa”.
“Ele nos traz de novo uma espécie de grande aterramento do espaço da palavra", diz.
"Sua linguagem é simples, mas rica em metáforas originais, conectando a natureza como um agente ativo na vida humana. Cabral se via como um engenheiro das palavras, transmitindo mensagens claras e objetivas. Além disso, aborda a condição humana, a solidão e a busca por sentido", complementa Martins.
Barbosa situa o livro A Educação Pela Pedra como a obra-prima cabraliana e "um dos maiores livros de poesia que já foram escritos no mundo".
"É um livro de um poeta já maduro que consegue fazer uma obra matemática com idas e vindas, algumas relações escondidas que ainda não foram devidamente estudadas e reveladas, as relações entre os poemas, os versos. Cada poema do livro tem duas partes, essas partes se relacionam e se relacionam com outras partes de outros poemas", detalha.
"É algo que ainda está por ser devidamente analisado, devidamente dissecado."
O professor Martins comenta que nesse livro "o poeta utiliza a pedra como símbolo da resistência nordestina, estabelecendo uma relação entre forma e temática que enriquece sua obra".
"Sua linguagem, repleta de imagens concretas e musicalidade, reflete um compromisso com a identidade cultural brasileira. Além disso, a intertextualidade com poetas contemporâneos enriquece o diálogo literário, ressaltando sua influência", acrescenta.
"A voz de Cabral é crucial para a literatura do século 20, propondo novas formas de entender a realidade brasileira e solidificando seu legado na poesia contemporânea."
Ecos cabralinos
Essa forma sui generis de fazer poesia se tornou seu principal legado. Sanches Neto diz que João Cabral "não deixou discípulos, porque os gênios são figuras solitárias". Pode ser verdade.
Mas verdade também é, que como apontam diversos críticos, a poesia brasileira tem outros exemplos que seguem a trilha aberta pelo pernambucano. Sebastião Uchoa Leite (1935-2003), por exemplo.
Mais recentemente, nomes como o do admirador confesso Frederico Barbosa, também recifense. A eles, se juntam ainda os cariocas Paulo Henriques Britto e Felipe Fortuna, o mineiro de Juiz de Fora Edimilson de Almeida Pereira e o paulistano Arnaldo Antunes.
"Há, depois de João Cabral, muitos ecos de sua poética os quais se perpetuaram e continuam dando bons frutos. O modo como manipula a palavra autoriza-nos mesmo a dizer que o próprio concretismo bebe nessas fontes criadoras do autor de Morte e Vida Severina. Mas há outros aspectos que alimentam a poesia brasileira posterior a ele: o exercício da metalinguagem, os processos experimentalistas que incidem sobre o léxico até o limiar da palavra na era digital e o formalismo que não cerceia, mas liberta de qualquer obrigação em nome de oferecer, também pela ocupação do espaço, inusitadas maneiras de produzir sentido", afirma à BBC News Brasil o professor de literatura Emerson Calil Rossetti, criador do canal no YouTube Elite da Língua.
"Para dar um toque mais 'moderno' e talvez subversivo ao meu exemplo, citaria uma referência ainda fora do cânone tradicional: a obra de Arnaldo Antunes que, emergindo da linguagem potencialmente expressiva, edifica-se numa arquitetura em que os sentidos poéticos jamais colidem com a racionalidade da forma, antes tiram dela o exato proveito para o deleite de quem lê, vê e ouve as composições do tribalista", acrecenta Rossetti.
Martins comenta que Fortuna "dialoga com o estilo" de Cabral ao refletir "seu rigor formal e concisão". "Ambos os poetas incorporam elementos cotidianos que provocam reflexões profundas", argumenta.
"Fortuna utiliza questionamentos que evocam a voz inquisitiva de Cabral, transformando objetos comuns em símbolos de temas universais, como a vida e a morte. A dualidade entre preservação e efemeridade, presente em suas obras, destaca a complexidade da experiência humana. Por fim, o tom filosófico das criações [dos dois] convida o leitor a ponderar questões existenciais, revelando uma sensibilidade compartilhada na exploração da realidade."
Autor do livro O Gosto dos Extremos: Tensão e Dualidade na Poesia de João Cabral de Melo Neto, de Pedra do Sono a Andando Sevilha, o professor de literatura Waltencir Alves de Oliveira, da UFPR, vê "a presença de princípios compositivos e modos de operar com a palavra poética” ao estilo cabralino até “mesmo em poetas que refutam a existência de um diálogo com sua poesia".
"Difícil, contudo, listar nomes de possíveis seguidores, uma vez que os modos de apropriação, citação e menção acionados pela poesia contemporânea podem tornar o diálogo com a tradição implícito, ou até mesmo escamoteado. Sobretudo porque, em alguns aspectos, pode se verificar mais um falar contra do que um falar com, em ambos os casos o poeta e sua poesia parecem ter se convertido em pedágio quase obrigatório para quem deseja passar e construir uma poesia original e com marcas singulares", diz ele, à BBC News Brasil.
"Dizendo, em outras palavras, novas facetas e interpretações dadas ao mesmo poeta foram assegurando a ele um lugar de destaque, possibilitando que vários matizes fossem se acrescentando a essa poesia a cada novo e nova poeta que, ao assimilá-lo o altera significativamente", completa Oliveira.
A professora Stroparo ressalta que sendo "muito da linguagem que ele criou" específico e especial, "muitos são tributários dele hoje". Tem ainda os poetas marginais [dos anos 1970], com suas reações negativas [frente a Cabral]. Eles gostavam de se posicionar dizendo que queriam uma linguagem mais fácil, mais direta. Era uma maneira de dizer 'eu sou anticabralino'", lembra ela.
"Mas acho que o principal nome da poesia contemporânea que a gente pode ligar ao João Cabral é o do poeta Paulo Henriques Britto. Considero-o a melhor junção da voz do [Carlos] Drummond [de Andrade] com a voz do Cabral, que aparece na sintaxe da poesia do Britto, nas escolhas formais da poesia do Britto", comenta a professora.
Capilé define Cabral como "uma influência incontornável dos anos 50 em diante" na poesia brasileira. "Em maior ou menor grau, ele sempre vai voltar como uma espécie de grande fantasma ao contemporâneo imediato", pontua.
Um fazer poético de que poucos são capazes
Menos do que apontar nomes, o poeta Barbosa ressalta que o legado de Cabral é "a ideia de que poesia não é emoção, não é sentimento, não vem de um frenesi".
"Mas que é algo muito elaboradora. O que é uma coisa óbvia, […] mas as pessoas tendem a desconsiderar isso e até hoje muita gente pensa que poesia é sentimento. João Cabral colocou a ideia da poesia como elaboração profunda, a busca de uma linguagem adequada. Muita gente ainda rejeita isso", salienta.
Para Rossetti, "é preciso ainda destacar a habilidade da poesia cabralina em se equilibrar com maestria entre a cultura popular e a erudita", um "feito que poucos poetas são capazes de realizar".
Oliveira conta que em seu livro a respeito da obra de Cabral buscou explicar essas características, mergulhando na "feição do poeta como autor que refutava o lirismo-amoroso, recusava a explicitação da subjetividade" e pleiteava "para si mesmo um lugar de recusa de um ideal poética, do qual, talvez a estética romântica fosse, segundo o próprio Cabral, a principal disseminadora".
Ele reconhece que livros, ensaios e entrevistas do próprio poeta "insistiam na afirmação, por vezes categórica por parte dele, de uma poesia cerebrina, racional e assentada sobre forte ideal construtivo", e isto acabou por "lhe render epítetos como 'poeta engenheiro', 'poeta arquiteto', 'geômetra', etc.".
"Sua influência persiste no século 21, dialogando com poetas contemporâneos e reafirmando sua relevância na literatura", resume Martins.
"Assim, Cabral consolida sua voz única, essencial para entender a poesia moderna e contemporânea. Assumindo o papel de historiador da literatura brasileira, afirmo que, no que diz respeito à autenticidade e originalidade, a literatura nacional pode ser compreendida em duas fases distintas: antes e depois de Cabral de Melo Neto."
- Edison Veiga
- De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil