Duas entidades de direitos humanos apresentaram na quarta-feira (27/11) uma representação contra o presidente Jair Bolsonaro perante o Tribunal Penal Internacional (TPI), corte localizada em Haia, na Holanda, pedindo uma "investigação preliminar" das ações do presidente por "incitação ao genocídio e ataques sistemáticos contra populações indígenas".
No documento, descrito como uma "advertência" contra a política de Bolsonaro para os índios brasileiros, as entidades Comissão Arns e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos pedem que o TPI investigue ações do atual governo que podem ameaçar a sobrevivência da população indígena.
O pedido de investigação foi entregue a Fatou Bensouda, chefe da Procuradoria do TPI, que funciona de modo independente ao tribunal em si e terá a atribuição de pedir informações ao Estado brasileiro e a outras organizações que considere relevantes. A partir dessas informações, poderá avaliar se dá ou não início a uma investigação contra o presidente.
"É uma advertência e não é uma denúncia ou um processo materializado", diz à BBC News Brasil o advogado José Gregori, que foi ministro da Justiça do governo de Fernando Henrique Cardoso e integra a Comissão Arns.
Ele afirma que o objetivo é alertar preventivamente o TPI sobre violações que estão colocando indígenas em perigo.
"O tribunal pode ver se há consistência ou não (para uma investigação), até mesmo considerar que é muito verde (cedo) ainda."
Belisário dos Santos Jr., também advogado da Comissão Arns, afirma à reportagem haver em vigor no país uma "política pública contrária às populações indígenas".
"O avanço (ilegal) de madeireiros e garimpeiros (em áreas indígenas) ocorre porque a política oficial não é de proteção", afirma Santos Jr. "É claro que as violações não são de agora. O que é de agora é um discurso, ações e omissões contrários à população indígena, levando a seu risco."
Ele cita como exemplo a morte a tiros do líder indígena Paulino Guajajara, no início de novembro, no Maranhão, e a tentativa do governo de submeter a Funai (agência de proteção indígena) e a demarcação de terras indígenas ao Ministério da Agricultura e "à liderança do agronegócio".
A BBC News Brasil consultou o Palácio do Planalto a respeito do tema e aguarda resposta.
O que é o TPI
O Tribunal Penal Internacional é uma corte independente que desde 2002 está encarregada de julgar indivíduos acusados de quatro crimes graves: crimes contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra e, desde 2018, crimes de agressão — em que políticos e militares podem ser responsabilizados por invasões ou ataques de grandes proporções.
Enquanto a Corte Internacional de Justiça é responsável por julgar disputas entre países, o TPI é encarregado de julgar apenas indivíduos.
"A existência do tribunal contribui para prevenir a ocorrência de violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, além de coibir ameaças contra a paz e a segurança internacionais", destaca documento do Itamaraty sobre o TPI. A criação do tribunal, estabelecida pelo Estatuto de Roma, de 1998, contou com o apoio do Brasil.
Desde sua criação, a corte do TPI analisou 27 casos e emitiu 34 mandados de prisão. A partir deles, 16 pessoas foram presas, três tiveram os casos encerrados após sua morte (por exemplo o ex-líder líbio Muamar Khadafi, morto em outubro de 2011) e outras 15 são consideradas foragidas — entre elas, personagens famosos internacionalmente, como Saif Khadafi, filho de Muamar e acusado de homicídios e perseguição na Líbia; Omar al-Bashir, presidente do Sudão até abril deste ano e acusado de homicídio, extermínio, tortura e estupros na região de Darfur; e o líder rebelde Joseph Kony, do Exército de Resistência do Senhor, grupo acusado de homicídios, escravidão sexual e estupro e outros atos desumanos em Uganda.
No caso da queixa contra Bolsonaro, porém, Gregori destaca que se trata de um pedido "preventivo", uma vez que a avaliação dos autores da denúncia é de que ações do presidente estariam colocando em perigo a sobrevivência dos indígenas.
"É como se fosse um cartão amarelo (para Bolsonaro)", diz o advogado. "Temos um sistema protetivo de direitos humanos para os índios que tem funcionado não de forma satisfatória, mas bem, e vemos sinais de que isso se modifica de forma que achamos prejudicial. O tribunal não reconhece apenas coisas materializadas, é também para denúncias de questões prévias. (...) Quando o fato já se consumou, é menos útil fazer uma advertência sobre a sobrevivência dos indígenas."
"O crime não é um genocídio puro, de 500 pessoas mortas no chão. O risco de genocídio por palavras, atos e omissões (do presidente) é o que motiva a comunicação" ao TPI, afirma Belisário dos Santos Jr. Ele diz que foram entregues à Procuradoria do TPI informações — sobre portarias e Medidas Provisórias, por exemplo — "anunciando um possível cometimento de crimes" por parte do atual governo.
O que diz o documento contra Bolsonaro
Na nota informativa entregue pelas entidades de diretos humanos à Procuradoria do TPI, os autores afirmam haver "atividades específicas de desmantelamento de políticas públicas protegendo direitos sociais e ambientais, junto a processos de demarcação de terras indígenas".
O texto cita também a "perseguição e demissão de servidores de departamentos sociais e ambientais por advertir contra políticas de desmantelamento ou por questionar versões oficiais dos fatos".
"Este documento mostra como o discurso sistemático do governo, minando as leis de proteção ambiental e desdenhando as populações indígenas, (...) está incentivando a violência contra essas populações e os defensores de direitos sociais e ambientais", diz o texto.
"Desde que o atual governo assumiu, diversos líderes indígenas foram mortos. Esse discurso também reflete o desdém do presidente por informações científicas quando elas não estão alinhadas a seus interesses. (...) Tudo nesta nota informativa leva a um contexto de extrema insegurança para direitos sociais e ambientais, com um aumento na violência, expansão do desmatamento e mais queimadas na região amazônica."
O documento cita o Artigo 15 do Estatuto de Roma, que embasa o TPI, pedindo "responsabilização por incitação ao cometimento de crimes contra a humanidade e apoio para o genocídio contra os povos indígenas e comunidades tradicionais do Brasil".
Segundo comunicado do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, é esperado que a Procuradoria do TPI solicite informações acerca do caso e, "ao fim dessa consulta, se entender que há base suficiente para iniciar uma investigação, irá apresentar um pedido de autorização de investigação à Câmara de Questões Preliminares". A etapa seguinte seria uma eventual investigação e instauração de inquérito.