*Atualizada às 11h de quarta-feira (02/2).
O congolês Moïse Kabamgabe chegou ao Brasil em 2011 junto com seus três irmãos. Eles vieram em busca de segurança, em razão do conflito entre as etnias Hema e Lendu na República Democrática do Congo.
Mais de 10 anos depois, Moïse se tornou vítima da violência no Brasil. Em 24 de janeiro, o jovem foi espancado até a morte em um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro (RJ).
Segundo relatos de familiares da vítima, o congolês foi agredido por cobrar duas diárias, que somavam R$ 200, de serviços prestados no estabelecimento.
"A gente chegou aqui e os brasileiros sempre foram pessoas boas. Mas, hoje, não sei mais", disse a mãe do rapaz, Ivana Lay, em relato ao jornal "O Globo" publicado nesta terça-feira (01/2).
A Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) apura o caso sob sigilo. Em breve comunicado à BBC News Brasil, informou que analisou câmeras de segurança instaladas no local em que o rapaz foi agredido e disse que está ouvindo testemunhas.
Na terça-feira, três homens foram presos. De acordo com o G1, eles devem responder por homicídio duplamente qualificado, impossibilidade de defesa e meio cruel.
Em entrevista ao programa SBT Rio, um dos presos afirmou que os agressores não queriam tirar a vida de ninguém e declarou que o rapaz não foi espancado por ser "negro ou de outro país". O suspeito argumentou que agiram para defender um homem que Moïse supostamente teria tentado agredir.
A defesa da família do congolês afirma que os suspeitos devem adotar uma versão na qual dizem que agiram em legítima defesa para tentar reduzir uma possível condenação.
A reportagem não conseguiu contato com as defesas dos suspeitos do crime até a atualização deste texto.
A busca por segurança
A família de Moïse pertence à etnia Hema. O conflito étnico com o povo Lendu já causou mortes violentas, desnutrição e outras inúmeras dificuldades para o Congo, o maior país da África subsaariana.
Conforme parentes do rapaz, o pai dele tinha envolvimento com a política do país e se preocupava com a segurança da família. Em razão disso, decidiu que os filhos precisavam sair do Congo.
Moïse e os irmãos conseguiram status de refugiados no Brasil. Quando chegaram por aqui, logo foram acolhidos pela comunidade congolesa e foram recebidos por familiares que haviam chegado anteriormente.
Os garotos foram matriculados em escolas públicas, começaram a aprender o idioma e logo se adaptaram à vida em solo brasileiro.
"Aqui, a gente tem muita solidariedade como congolês quando alguém chega e não conhece nada. A gente busca alguma forma para abrigar, acompanha a pessoa e ajudar na documentação até a pessoa conseguir fazer as coisas sozinha e trabalhar", diz o congolês Placide Ikuba, que chegou ao país em período próximo ao de Moïse e conhecia o rapaz.
Segundo o parente de Moïse que conversou com a BBC News Brasil, sob a condição de anonimato, a violência no Brasil sempre assustou, mas parecia algo distante.
"A gente já tinha visto crimes na televisão e muita barbaridade, mas a gente não acreditava que fosse acontecer algo assim na nossa família", desabafa o familiar.
Em 2014, a mãe do jovem congolês, Ivana Lay, também chegou ao Brasil. Ela e os quatro filhos acreditavam em um futuro melhor por aqui.
A morte do jovem
Na comunidade de congoleses, Moïse era considerado um jovem muito querido.
"Ele era um moleque que estava sempre com a gente, era muito cativo e muito querido na comunidade. Ele era um moleque muito legal, que gostava de estar sempre com os amigos", diz Nsuka Kaluba, ex-presidente da comunidade de congoleses no Rio de Janeiro.
O jovem fazia vários serviços informais para sobreviver, um deles era no quiosque. Segundo a mãe dele, o rapaz já havia trabalhado na barraca anteriormente e conhecia todos no local.
"Ele era trabalhador e muito honesto. Ganhava pouco, mas era dele. No final, chegava com parte do dinheiro e me dava para ajudar a pagar o aluguel. E reclamava, dizendo que ganhava menos que os colegas", disse ela em entrevista ao Globo.
No dia do crime, segundo familiares, Moïse falou para um amigo que iria pegar o dinheiro atrasado no quiosque.
De acordo com parentes do rapaz, ele passou a ser agredido logo que cobrou pelo serviço prestado em dias anteriores.
Um vídeo que mostra a agressão ao jovem foi divulgado pela imprensa nesta terça-feira. No registro é possível ver que a situação começou por volta das 22h25, quando um homem pega um pedaço de pau e Moïse pega uma cadeira. Pouco depois, outros dois homens chegam, jogam o rapaz no chão e ele começa a receber diversos tipos de agressão.
Na filmagem é possível ver o jovem levando socos, chutes e até golpes com pedaços de pau. Cerca de 10 minutos depois, os agressores amarram as mãos e os pés do rapaz com um fio. Em determinado momento, quando o rapaz está caído no chão, tentam reanimá-lo.
Segundo parentes do rapaz, ele só foi socorrido pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) cerca de 40 minutos depois, quando já estava morto.
A Polícia Militar informou, em nota à BBC News Brasil, que não foi acionada para atender o caso de agressão contra o jovem. Segundo a entidade, uma equipe passava pelo local quando avistou uma viatura do Samu e foi verificar. No local, o serviço médico já havia atestado a morte dele.
"Ele saiu de uma disputa de etnias e violência que não têm limites, e ninguém esperava que isso fosse acontecer no Brasil, que recebeu a família de braços abertos", diz o advogado Álvaro Quintão, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (OAB-RJ).
Quintão, junto com a OAB-RJ, tem representado a família e apoiado nas questões jurídicas do caso.
"O que fizeram foi uma barbaridade. Espancaram de forma covarde até a morte", diz. "A gente vê no vídeo que não há nenhuma proporcionalidade na agressão, que mesmo depois de desacordado ele continuou apanhando. Não há nada que possa caracterizar legítima defesa ali", declara.
O advogado ressalta que os envolvidos podem ter a pena aumentada se for comprovado que o crime teve característica racista e xenofóbica.
Segundo Quintão, não havia necessariamente, a princípio, relação entre o espancamento do rapaz e xenofobia ou racismo.
"Mas após o início das agressões, o fato de ele ser negro e não ser brasileiro, ser africano, fez com que as pessoas ignorassem aquele espancamento", declara.
"Havia pessoas assistindo aquilo e o quiosque continuou funcionando normalmente depois que ele morreu, como se nada tivesse acontecido. Aí temos a dose de racismo estrutural. Era apenas mais um corpo negro morto, uma situação banalizada pela sociedade", acrescenta.
Dias após o crime, a comunidade congolesa no Brasil lamentou a morte do jovem por meio de uma nota e disse que o caso não manifesta somente "o racismo estrutural na sociedade brasileira, mas claramente demonstra a xenofobia dentro das suas formas contra o estrangeiro".
No sábado (29/1), familiares e amigos protestaram contra a morte do jovem em frente ao quiosque. Eles cobraram que os responsáveis pelo crime sejam punidos. Nas redes sociais, milhares de pessoas passaram a compartilhar a imagem de Moïse pedindo que o caso não seja esquecido.
- Vinícius Lemos
- Da BBC News Brasil em São Paulo
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