terça-feira, 6 de abril de 2021

O Brasil do macho desgovernado: ele urra e usa um celular no lugar do tacape





Expondo nas redes seu descontentamento com os costumes ou a política nacional, o macho desgovernado exige que seus atos preconceituosos sejam entendidos como direitos.


1 – Sabendo que está sendo filmado e depois de dar um “tchauzinho” para a câmera, o desembargador Eduardo Siqueira chama um policial municipal de “analfabeto” e rasga a multa que acabara de receber por caminhar sem máscara no litoral de Santos, São Paulo. 

2 – Todo trabalhado no verde e amarelo, o empresário José Sabatini grava um vídeo empunhando um revólver. Fala grosso e ameaça o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Filho da puta! Vagabundo!” 

3 – O vereador José Alberto Bastos Vieira Junior, o Inspetor Alberto, do partido Pros do Ceará, publica um vídeo disparando dez tiros contra uma foto do petista. Diz que, assim, “sai toda a raiva”. 

4 – Um homem não identificado chuta as cruzes que o Comitê de Resistência e Solidariedade de Toledo, Paraná, colocou no Parque Ecológico Diva Paim Barth. Homenageavam as mais de 200 pessoas que morreram de covid-19 na cidade e as mais de 300 mil que morreram no Brasil. Ele sabe que um integrante do Comitê o filma, mas segue derrubando as cruzes e finaliza o ato dramaticamente, rasgando uma faixa que pedia por mais vacinas.

OS QUATRO CASOS são meramente ilustrativos, mas bastante eloquentes. Eles dizem respeito a um fenômeno que tem ganhado ainda mais força no Brasil, mas não só aqui: a síndrome do macho desgovernado, aquele que faz questão de amplificar em som, fúria e redes sociais, um descontentamento que, acredita, é muito precioso e se sobrepõe ao de todos os outros. Para isso, aciona recursos como o grito, a palavra de ordem, a carteirada, a ameaça, a bala. Mais: recorre geralmente à publicização de seus atos, uma mostra de que o macho desgovernado, MD, não quer meramente destruir ou ameaçar – ele também quer viralizar e conquistar a possível chance de “mitar”.

A extrema instabilidade comportamental do MD não tem idade, ela perpassa gerações e atinge também homens mais jovens daqueles vistos nos exemplos acima. É o caso do exemplo 5: o deputado federal Daniel Silveira, 38 anos, chega para fazer exame de corpo de delito após ser preso pela Polícia Federal. Uma policial pede para que, dentro do recinto, ele use a máscara. Daniel, falando muito grosso, vai aumentando o tom da voz enquanto se dirige até o guichê no qual a policial está. Mistura máscara com petismo, respeito, vagabundagem e, claro, dá uma carteirada: “Sou deputado federal, e daí?”. Passados dois minutos do vídeo, ele se dirige ao colega que o filma. Avisa que a gravação pode ser encerrada.

O amor que o macho desgovernado possui pelo flash é um traço contemporâneo de algo há muito existente: a necessidade de sublinhar marcadores de uma masculinidade prezada socialmente e entendida como superior. “Ela é sempre uma construção sociocultural, não é natural e justamente por isso só se estabelece quando é performada. Essa performance é constantemente atualizada e, hoje, está ainda mais atrelada à exposição midiática”, diz o professor Ricardo Sabóia, pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco, UPFE, que nos últimos anos vem desenvolvendo estudos sobre masculinidades, inclusive no ambiente das redes sociais. Sintetizando: em vez de urrar e segurar um tacape, o macho desgovernado urra e segura um celular.

Sabóia aponta que esse fenômeno está atrelado a outro, fundamental: a reação a uma série de arranjos e decisões que perpassam a política, a justiça e o campo midiático e são pertinentes a avanços nos direitos das mulheres, população LGBTQIA+, etc. A sensação, para os rapazes que repousam no conforto da masculinidade mais valorizada socialmente, é a da perda de espaço – ou seja, da perda de poder. “É como se uma ameaça estivesse por todos os lados: mulheres, gays, homens ‘que não são homens’. É assim que vão ser valorizados e reforçados valores tradicionais ligados a esse homem hegemônico, é quando se reforça quem está no poder e quem deve continuar a exercê-lo”, continua o pesquisador.

Essa percepção é compartilhada pela antropóloga Isabela Kalil, coordenadora do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual, Neu, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, que faz um importante apontamento sobre a questão: no Brasil, não é possível discutir patriarcado sem discutir escravidão. Assim, o escancaramento do que ela chama de masculinismo tem relação com a criminalização da homofobia e o fortalecimento de maiorias minorizadas no debate público, mas não só. Ele também está associado à consolidação de ações democratizantes como, por exemplo, a política de cotas para negros e negras, indígenas, pobres. No contexto em que tais ações são institucionalizadas, “passou a ser condenável expressar abertamente, em público, o machismo, o racismo, a homofobia. Mas quando você tem um líder que abertamente faz isso, dá licença para que outras pessoas façam o mesmo”, diz.

Nesse sentido, o presidente Jair Bolsonaro engatou marcha-a-ré na tentativa de conter um urgente novo pacto civilizatório brasileiro, assentado no reconhecimento de uma cidadania mais plena e mais ampla. Um pacto que foi não somente interrompido antes ainda de se consolidar, mas que recebeu e recebe porrada por todos os lados. Sentindo-se acuados e com a “liberdade” limitada, muitos homens passaram a chutar, bater no peito e a falar grosso: queriam (aliás, querem) que seus atos homofóbicos, racistas, misóginos, preconceituosos, sejam entendidos antes de tudo como direitos. A eles, precisa ser garantida a continuidade de dizer ou performar o que vier na telha. Não gostou? Vá se foder pra lá. E se me chamar de preconceituoso, homofóbico ou racista, enfio a mão, te ameaço em rede social ou te meto um processo.

Isso nos leva ao sexto exemplo do macho desgovernado, este se distanciando imageticamente do MD mais velho que vocifera vestido de verde e amarelo e carrega arma. É o boy de terno bem cortado, que investe na barba e curte expressões em latim como Deus vult, que significa “Deus quer”, lema das Cruzadas (a Idade Média, aquele tempo onde o macho branco cristão era respeitado e não tinha esse papo de homem transgênero, por exemplo).

6 – O assessor governamental Filipe Martins faz um sinal com a mão; um sinal que pode ser lido tanto como o supremacista “white power” quanto como “dar o cu”. Aproveitava a visibilidade das câmeras apontadas para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do Democratas, que discursava naquele momento logo à frente dele. Posteriormente, o macho desgovernado ameaçou processar várias pessoas e afirmou que estava apenas “ajeitando a lapela”.

Vale observar mais um ponto relacionado a Filipe Martins e a macheza das redes: quando estas foram coalhadas de críticas por conta do vídeo mostrando seu gesto, diversos homens, vários deles pobres, vários deles negros, saíram em defesa do assessor governamental. Nesse sentido, o “corporativismo de gênero” (no Recife, chamamos de “brodagem”) parece falar mais alto que as questões de classe e raça. “Há uma grande solidariedade entre os homens e uma partilha de perspectivas construídas em torno dessa solidariedade”, diz Ricardo Sabóia. Outro ponto, este levantado por Isabela Kalil, diz respeito a uma crítica comum: a ideia do supremacista branco que não pode ser preto ou pardo. “Isso é problemático porque se a gente opera nessa lógica, reiteramos o mesmo argumento racista da pureza de raça. Ao branco estaria então permitido ser supremacista?”.

Vale lembrar que o ideal a masculinidade agressiva não é compartilhado apenas entre eles, mas também entre mulheres conservadoras que valorizam o macho que se coloca à frente de todas as coisas. Tem mais: esse modelo viril clichê se impõe sobre outras masculinidades. É aquela coisa da performance: não basta ter nascido macho, tem que deixar isso bem claro através de certa agressividade. Qualquer valor ou comportamento entendidos como “femininos” (o cuidado, a atenção, a delicadeza e mesmo a educação), se percebidos nos homens, vai levá-los automaticamente a perder o ISO 9.000 concedido pelo macho desgovernado. Aí, dá-lhe homofobia em diversos níveis, desde a violência física até “piadas” como “calça apertada” (como jocosamente Bolsonaro, sugerindo afeminamento, se refere ao governador de SP, João Doria).

7 – Novembro de 2020, o Brasil contava com 163 mil mortos para a covid-19 e quase seis milhões de casos confirmados. Em uma cerimônia no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro declara: “Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas (…) Temos que buscar mudanças, não teremos outra oportunidade. Vem a turminha falar ‘queremos um centro’, nem ódio pra lá nem ódio pra cá. Ódio é coisa de marica, pô. Meu tempo de bullying na escola era porrada.”

(Não se preocupe em entender. O presidente Jair Bolsonaro ultrapassa qualquer entendimento).

O farol sobre a farda

Guardando diferenças importantes em relação a todos os casos acima, mas com semelhanças que o fazem pertinente aqui, está o caso do policial Wesley Soares, morto no dia 28 de março após atirar com um fuzil nos colegas PMs. A diferença fundamental é que, apesar de não haver ainda uma investigação final sobre o que levou o PM ao ato extremo, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia afirma que ele passava por um surto psicótico. Wesley, assim, sintetizava ali um mal que perpassa estruturalmente a Polícia Militar brasileira e vem sendo tratado como problema menor: transtornos mentais relacionados a uma profissão exercida sob enorme pressão e risco de morte permanente (e também mal paga). O assunto foi abordado no Intercept em janeiro, quando Leonardo Martins expôs o caso de um policial que tentou cometer suicídio três vezes desde que passou a fazer parte da PM de São Paulo. No entanto, os psiquiatras da corporação diziam que seu desesperado pedido para não voltar a trabalhar era pura “imaturidade” (pois é, tem muito macho desgovernado usando jaleco e com diploma na parede).

Mas o fato de Wesley ter dirigido durante cerca de 5 horas de Itacaré até a capital Salvador e escolhido um dos pontos turísticos por excelência da cidade, o Farol da Barra, é algo extremamente significativo no seu ato. O PM quis levar a sua insatisfação ao centro político do estado e, uma vez nele, ao centro de atenção. O rosto pintado de verde e amarelo, performático, sugeria o compartilhamento de valores como o patriotismo, a honra, a força, a ordem. Valores absorvidos socialmente, mas de entendimentos bastante individuais – no caso de Wesley, alguns relatos vindos dos próprios colegas indicam diversas divergências sobre estes valores, o que o consternava profundamente. Sugere-se assim que existência e explicitação de opiniões diferentes, de perspectivas políticas diferentes, passaram a ser gatilhos para o PM.

Coordenador do Virtus, Programa Institucional em Defesa Social, Segurança Pública e Direitos Humanos criado na UFPE, o professor Sandro Sayão diz que não podemos enxergar ou conceber o policial com um ente em separado da sociedade. “E nossa sociedade, embora as narrativas românticas existentes que nos dizem pacíficos e amorosos, é uma sociedade perversa, preconceituosa e extremamente violenta.”

Para ele, o caso de Wesley é o ápice do PM que deixou de ser visto como trabalhador para passar a ocupar o lugar do herói (como deixaram ver as postagens oportunistas da deputada federal Bia Kicis, aliás acompanhadas por um MD raiz, o também deputado bolsonarista Eduardo Bolsonaro). “Isso é perverso para o policial. Herói não precisa de curso, herói não precisa de formação, herói não precisa de equipamentos, de capacitação. Os discursos que destacam a figura do policial como herói são populistas, chamam atenção dos mais românticos e superficiais e acalentam o ego, principalmente de um contexto profissional repleto de tensões, como o contexto do trabalho em segurança pública. Reforçar essa ideia é algo imensamente perverso. Isso porque convoca homens e mulheres, a serem o que no fundo não são. Ou seja, convoca seres humanos a negarem suas próprias fragilidades e necessidades”, comenta Sayão.

Atualmente, segundo o pesquisador, em um universo de 800 mil policiais no Brasil, 30% tem problemas de saúde/sofrimento mental. “Eles atuam no âmbito de um governo que celebra a barbárie, e esse aumento da barbárie também é insuportável para os próprios policiais.”

Ao mesmo tempo, lembra Sayão, esses homens lidam com algo singular, que é o poder. Essa mescla entre desinvestimento e incentivo de uma cultura da virilidade exarcebada – que é marca do governo Bolsonaro, mas não é uma novidade no país – provoca tragédias diárias. Ele lembra o caso do policial Flávio Oliveira, que matou, dentro de uma viatura, o colega Adriano Batista após uma discussão sobre cotas raciais. O assassinato aconteceu no Recife, em agosto de 2015.

Um outro ponto que não pode deixar de ser trazido para o cultivo da violência naquela que, no mundo, é a polícia que mais morre e é também a polícia que mais mata, é a naturalização do assassinato dos pobres e negros. Chegamos assim ao nosso último exemplo, cujo teor difere dos demais pela própria natureza do registro: o vídeo que mostra a morte de um adolescente, de apenas 15 anos, baleado de maneira particularmente banal em fevereiro de 2015.

8 – Alan de Sousa Lima e mais dois amigos conversavam enquanto acontecia uma operação da 9º BPM, de Rocha Miranda, na favela da Palmerinha, zona norte do Rio. Estavam montados em bicicletas, riam e faziam piadas, o que chamou atenção dos policiais. Eles atiraram no grupo e Alan, que estava com o celular na mão, terminou filmando a própria morte. Chauan Cesário, 19, levou um tiro no peito, mas sobreviveu. Os policiais envolvidos na ação afirmaram que os adolescentes estavam armados – o que foi desmentido após o vídeo cair nas redes sociais. Em 2017, o sargento Ricardo Vagner Gomes foi condenado a 27 anos e seis meses de prisão.

São muitos os machos desgovernados – e eles estão mais à vontade do que nunca. Tanto ao ponto de, mesmo sem querer, se tornarem protagonistas dos registros daqueles que eles matam.

Fabiana Moraes

Fonte: theintercept.com

Professor Edgar Bom Jardim - PE

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