segunda-feira, 15 de junho de 2020

Aulas online obrigam milhões de alunos a usar app de empresa desconhecida que criou TV Bolsonaro



UMA EMPRESA com sede numa sobreloja sem identificação na Região dos Lagos do Rio de Janeiro é a responsável por aplicativos usados por 7,7 milhões de alunos e professores de São Paulo, Paraná, Amazonas, Pará e Piauí para aulas à distância. A empresa, desconhecida mesmo no meio em que atua, é ligada a políticos bolsonaristas e a um acusado de participar de uma rede de prostituição de menores de idade.

Contratados a toque de caixa por conta da pandemia, os aplicativos têm problemas: apresentam defeitos de transmissão de som e imagem e não funcionam em celulares mais antigos. Mais grave, entregam à IP.TV, a empresa que os desenvolveu, uma série de dados pessoais de estudantes menores de idade e seus professores. E, em um dos apps, os alunos são expostos diretamente a mentiras e teorias da conspiração bolsonaristas.

A empresa, que em três meses saiu da obscuridade para se tornar a principal fornecedora de tecnologia para aulas à distância da rede estadual do país, entrou no negócio por acaso.

Até a pandemia, que tornou o ensino à distância fundamental, a IP.TV tinha em seu currículo um único produto de sucesso. Trata-se do Mano, um aplicativo de streaming de vídeos criado em 2018 para que a campanha de Jair Bolsonaro a presidente pudesse driblar os vetos de redes sociais a notícias falsas. À época, o garoto-propaganda do Mano foi Flávio Bolsonaro, atualmente senador pelo Republicanos do Rio de Janeiro e enrolado em investigações que o colocam como parceiro de milicianos.


O principal canal do Mano é justamente a TV Bolsonaro, criada para espalhar as mentiras e teorias da conspiração que alimentam a fanática claque do presidente de extrema direita. Quem frequenta o canal encontra um cardápio ininterrupto de programas com discursos, propagandas do governo e depoimentos de usuários que reproduzem notícias falsas e fazem apologia ao uso de armas e à ditadura militar.

A TV Bolsonaro está no menu oferecido a estudantes de Amazonas, Pará e Piauí que têm entre quatro e 17 anos de idade, ao lado de vídeos das aulas da rede de ensino público. Para terem acesso ao conteúdo didático, eles precisam baixar e usar aplicativo da IP.TV, em que são bombardeados pelos conteúdos bolsonaristas.

Já para os alunos de São Paulo e Paraná (nesse caso, como uma opção ao Mano), a IP.TV desenvolveu aplicativos específicos para exibir conteúdos didáticos. Em ambos, os estudantes ao menos estão livres de ver a TV Bolsonaro como sugestão de conteúdo.

Os governos dizem ter conhecido a IP.TV a partir de recomendações um do outro. Em São Paulo, o governo afirma que a IP.TV doou o app, chamado Centro de Mídias SP. A empresa o autoavaliou em R$ 3 milhões. Um valor obviamente exagerado, segundo três programadores a quem pedimos avaliações do sistema.

Tela inicial do Mano, a principal criação da IP.TV, com o canal da TV Bolsonaro em destaque. É com essa tela que estudantes de Paraná, Amazonas, Pará e Piauí se deparam ao abrir o app que usam nas aulas online.

Dados de 8 milhões de pessoas

A IP.TV tem capital social de apenas R$ 10 mil e sede num maltratado prédio no centro de Rio Bonito, na Região dos Lagos da Grande Rio. Estivemos lá no final de maio, mas não encontramos nada (como uma placa de identificação) que dissesse que ali havia uma empresa. Nem ninguém. Os vizinhos tampouco tinham ouvido falar nela. Quando perguntamos a respeito, a IP.TV argumentou que a maioria de seus funcionários trabalha de casa e que em Rio Bonito está apenas a sua “pequena sede administrativa”.

No site, a empresa informa que produz “soluções de transmissão digital”. Se é verdade, até hoje elas foram poucas. Fizemos uma busca na App Store (a loja do sistema iOS, dos celulares da Apple) e no Google Play (a dos aparelhos que usam Android) e encontramos apenas cinco produtos da IP.TV – justamente o Mano e as plataformas de aulas à distância usadas em São Paulo (uma para anos iniciais e outra para ensinos fundamental e médio), Paraná e Amazonas.

Mesmo com o histórico nebuloso, os governos de cinco estados acharam razoável colocar nas mãos da IP.TV os dados de quase 8 milhões de alunos. Sem cadastro, os estudantes não conseguem assistir às aulas. Além disso, para instalar os apps, é necessário autorizar o acesso a dados tão pessoais como o álbum de fotos do celular e de conexão de rede wifi. É provável que o acesso a essa montanha de dados explique por que a empresa doou aplicativos a governantes desesperados para solucionar os problemas criados pelo coronavírus.


Para usar os aplicativos, professores e estudantes são obrigados a concordar com as políticas de privacidade, que incluem o acesso da IP.TV a dados das secretarias de educação, com informações como nome, e-mail, ano e série cursados. Além do álbum de fotos, os apps também podem ter acesso ao microfone do celular e a trocas de mensagens em grupos de bate-papo, que podem ficar guardadas por até seis meses. O Mano ainda pode exibir publicidade aos usuários – apesar de a IP.TV garantir que isso nunca foi feito.

De acordo com a política de privacidade, os aplicativos retêm “a menor quantidade possível de dados pessoais, comunicações privadas e registros de acesso”. A empresa afirma ainda que eles serão excluídos após o fim do uso e que “não será realizado qualquer tratamento de dados pessoais excessivo ou fora dos limites” – uma definição vaga, que abre margem para abusos como o uso comercial dos dados de crianças e adolescentes.

Cabe notar que os termos de uso e permissões dos aplicativos para ensino à distância eram idênticos aos do Mano (criado com um objetivo totalmente diferente). Eles só foram modificados depois que políticos de oposição do Paraná reclamaram da invasão de privacidade de crianças, jovens e professores. No entanto, foram mudanças sutis – as únicas realmente relevantes retiraram a coleta de dados de localização do usuário e a veiculação de anúncios.

A programadora Ana Carolina da Hora, que desenvolve aplicativos educativos desde 2013, considera os termos de uso da IP.TV “bastante invasivos”. “Com os dados das secretarias de educação é possível identificar os alunos, que em sua maioria são menores de idade. Por isso, seria necessário que fosse claro o acordo feito entre quem criou o aplicativo com as escolas e os responsáveis desses alunos, o uso que será feito desses dados e a necessidade de pedir as informações e guardá-las”, ela nos disse.

‘O Intercept teve acesso a mais de dez conversas de estudantes menores de 18 anos do Paraná com conteúdos impróprios’.

Perguntamos à IP.TV o que ela faz com os dados sobre os estudantes e professores. A resposta, lacônica, joga a responsabilidade sobre as secretarias estaduais de Educação, “que têm a prerrogativa de escolher os dados que serão enviados, como eles serão expostos e a sua interrupção”. Questionamos, então, as secretarias da Educação dos cinco estados. Nenhuma delas respondeu a nossas perguntas sobre o uso dos dados.

Para Rafael Zanatta, advogado e pesquisador do Lavits, a Rede Latino Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade, é “evidente” que a empresa faz tratamento de dados que permitem identificar os alunos. “Isso está sendo, de certo modo, chancelado pelas secretarias, que transmitem os dados de menores de idade mesmo com brechas como a possibilidade de uso publicitário. Muito provavelmente, isso tende a ser contestado judicialmente e ter revisão judicial sobre o compartilhamento, que pode ser considerado ilegal”, afirma.

Para o advogado, a empresa está se aproveitando do cenário da covid-19 para receber bancos de dados de órgãos públicos que, depois, podem ser usados para desenvolver outros produtos e garantir lucro. “Eles podem criar algum tipo de inteligência ou de valor a partir dos dados de utilização dos aplicativos”.


O Aula Paraná e o Centro de Mídias, aplicativos da IP.TV usados no Paraná e em São Paulo, também têm um histórico de falhas e um problema crônico de falta de moderação nas mensagens. O Intercept teve acesso a mais de dez conversas de estudantes menores de 18 anos do Paraná com conteúdos impróprios.

O Mano, que é usado pelos alunos do Amazonas, Piauí e Pará, tem vários canais com conteúdo produzido por terceiros, como a TV Bolsonaro, além de fóruns de bate-papo e um sistema de notificações para avisar os cerca de 260 mil assinantes quando começam transmissões ao vivo.

Consultamos três programadores sobre a IP.TV e o valor que a empresa atribui ao aplicativo. Segundo eles, seria razoável cobrar R$ 3 milhões caso o programa tivesse que ser criado do zero. Não é o caso dos apps vendidos pela empresa, pois o modelo, o Mano, já estava pronto e só foi adaptado. É mais fácil pagar algumas centenas de dólares por ano em programas usados no exterior ou buscar programas gratuitos, como as opções oferecidas pelo Google.

“O custo de desenvolvimento de aplicativos depende do tamanho das equipes e da necessidade de um servidor para realizar a transmissão das aulas. Se ele não é necessário, R$ 3 milhões está muito acima do mercado. O mais indicado seria uma solução mais conhecida do mercado, como o Zoom ou algum de fonte aberta, que não tem custo”, afirma Thiago Baptista, desenvolvedor de aplicativos há dez anos no Rio de Janeiro e com experiência em serviços para órgãos públicos que já trabalhou para governos.

Outros dois programadores que ouvimos, Sidney Silva, que trabalha em São Paulo, e Thiago Hackbarth, de Brasília, concordam que o mais apropriado seria optar por soluções gratuitas. Nenhum deles conhecia a IP.TV.

Do Amazonas para o Brasil

O primeiro estado a contratar a IP.TV para transmissão de aulas foi o Amazonas, em 2015. A empresa já tinha raízes no estado desde 2007, quando outras duas firmas com quem ela compartilha sócios firmaram contratos com o governo local: a VAT Tecnologia da Informação e Techlog Serviços de Gestão e Sistemas Informatizados.

Do Amazonas, a IP.TV migrou para outros estados nos anos seguintes, quando firmou contratos com Piauí, em novembro de 2016, e Pará, em dezembro de 2017. A esses governos, a empresa fornece tecnologia de ensino à distância para uso pontual, como no caso de alunos que vivem em regiões muito afastadas. Com a pandemia, ela ofereceu o seu aplicativo para uso em massa. Com as administrações de São Paulo e Paraná, ela assinou contratos no mesmo dia: 8 de abril de 2020.

O caso paulista é emblemático. O governo do tucano João Doria abriu chamamento público para escolher um sistema para ensino à distância. A IP.TV apareceu dizendo ter desenvolvido tecnologia já usada em outros estados. A assessoria de comunicação do governo de São Paulo nos disse, por telefone, que contratou a empresa pelo “excelente serviço [prestado] no Amazonas”. O secretário de Educação de São Paulo, Rossieli Soares, ocupou o mesmo cargo no Amazonas entre 2012 e 2016, quando a IP.TV já operava no estado.

O app tem problemas como de qualidade de transmissão de vídeo e áudio.

O governo do Pará também justificou sua escolha pela presença da IP.TV no Amazonas. Já o Paraná afirmou que contratou a IP.TV porque o “critério técnico apontou uma plataforma de suporte educacional consolidada há mais de dez anos” – o que carece de confirmação. Segundo o contrato, a empresa afirmou que o app para ensino à distância custava R$ 3 milhões, mas seria entregue de graça para o governo.

Na rede pública paulista, 3,5 milhões de alunos utilizam o app criado pela empresa. Ou usariam, se ele funcionasse. O app tem problemas como de qualidade de transmissão de vídeo e áudio, não permite o compartilhamento de arquivos, e usuários relatam dificuldades para se registrar, como apontam avaliações no Google Play.

“A imagem é muito ruim o áudio também e o chat trava sai do ar e tem muitas aulas por dia e cansativo e a interface é muito ruim (sic)”, postou uma usuária em 5 de maio. Já o Mano, usado em outros estados, costuma receber boas avaliações – mas sobre o conteúdo bolsonarista que veicula. “Excelente opção de compartilhamento e conversas de pessoas direitas e de direita , sempre em apoio ao nosso presidente Bolsonaro (sic)”, escreveu uma usuária em 21 de abril.

No Paraná, a IP.TV foi contratada sem licitação por R$ 300 mil. Dias depois, segundo o governo, a própria empresa pediu para alterar o contrato e não receber nada pelo aplicativo – o que é, no mínimo, curioso.

Perguntamos como a empresa se financia, já que abriu mão de receber dos governos. Em nota, ela respondeu que recebe recursos de “várias empresas privadas que licenciam sua plataforma tecnológica contratualmente” e se referiu a “grandes empresas de telecomunicação, instituições privadas de ensino e produtoras de conteúdo”. Perguntamos quais os nomes desses clientes. A IP.TV se recusou a informar, alegando que iria “ferir direito de terceiros” e o “aspecto mercadológico e concorrencial do setor”.

Raízes bolsonaristas

Para entender como uma empresa pequena e desconhecida se tornou a principal solução de ensino à distância no país, é preciso olhar para a relação de poder de seus sócios.

Apesar de ter sede no Rio de Janeiro, a história da IP.TV remonta ao Amazonas. O proprietário da empresa, Eduardo Patrício Giraldez, é sócio de Waldery Areosa Ferreira Junior, empresário do ramo da educação e acusado de participar de uma rede de prostituição de menores de idade junto com o pai. Os dois são sócios da Hexágono Soluções em Tecnologias da Informação, sediada em Manaus. Giraldez hoje mora nos Estados Unidos e defende o sistema de homeschooling, ou educação domiciliar, outra bandeira comum da extrema direita.

Um dos 11 sócios da IP.TV, Cláudio Dutra é elo entre a empresa de Rio Bonito e Amazonino Mendes, ex-governador do Amazonas. Dutra é sócio de Marcelo Potomati, que compartilha dois negócios com Amazonino e quatro com o filho do ex-governador, Armando Mendes, conhecido no estado como Armandinho. Entre eles, a rádio Mix de Manaus, uma das mais ouvidas do estado, que é administrada por Potomati e Armandinho.

A emissora é uma grande divulgadora do Mano: sua programação online está no aplicativo, que é citado em postagens em redes sociais da rádio com hashtags como #Mano e #SuperAppMano. A IP.TV disse que os negócios de um dos sócios com o grupo de Amazonino “não dizem nenhum respeito à empresa”.

Marcelo Potomati (o primeiro, da esquerda para a direita) é sócio de um dos donos da IP.TV. Ele também é dono da rádio Mix de Manaus junto com o filho de Amazonino Mendes, o Armandinho (de camiseta preta, ao centro). 

A VAT já teve um contrato suspeito com o governo do Amazonas, assinado quando Jorge Melo, aliado de Amazonino, era governador do estado. Melo e o vice foram cassados por compra de votos em 2016. Com isso, Amazonino voltou ao poder: foi eleito para cumprir os 14 meses de mandato que restavam. O político tentou a reeleição em 2018, pelo PDT, mas não se elegeu. No primeiro turno, apoiou Ciro Gomes. No segundo, Bolsonaro. “O candidato que vou dar minha mão, vou dar meu braço, com toda a força, é o Bolsonaro”, declarou em vídeo. A aliança ganhou um apelido no Amazonas: Bolsonino.

A IP.TV tinha a sua operação restrita ao Amazonas até 2018, quando o Mano foi usado para a campanha de Jair Bolsonaro. O primeiro a divulgar amplamente o aplicativo foi Flávio Bolsonaro. Num vídeo que chegou à internet quatro meses após o lançamento do app, em julho de 2018 – não por acaso, quando esquentava a campanha eleitoral –, o senador disse o seguinte:

A empresa nega ter relação com os Bolsonaro. De acordo com a IP.TV, “o Mano está aberto para a instalação e adesão de qualquer figura de destaque em nossa sociedade (em qualquer ramo de atividade), bem como para qualquer pessoa que simplesmente deseje ter um canal na plataforma”.

A empresa diz, ainda, “que não tem viés político-partidário e nem apoia nenhum agente político ou candidato”. “Também ressalta que não possui vínculos com a família Bolsonaro, a qual não ajudou a financiar ou desenvolver o aplicativo”, prossegue em nota enviada ao Intercept.

Não sabemos o que a empresa vai fazer com os dados dos milhões de alunos e professores a que teve acesso e nem como está sendo o contato deles com o conteúdo bolsonarista veiculado no Mano. Com contratos feitos às pressas, os governos estaduais também não parecem saber. A pequena empresa sediada em uma sobreloja pode estar bem intencionada, oferecendo uma solução tecnológica de graça. Mas o preço, nesse caso, são os dados e informações dos professores e alunos.

 

*Colaborou Pedro Prado.

Professor Edgar Bom Jardim - PE

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