Aos 50 anos e morando em Londres – onde chegou como refugiada há quase três décadas – Hibo Wardere aproveita a data para intensificar sua luta contra as mutilações genitais femininas, ainda praticadas em cerca de 30 países. “É importante o mundo todo saber o que ainda está acontecendo, porque isso foi ignorado durante séculos”, diz a ativista em entrevista exclusiva para a RFI.
Uma prática que, estima-se, começou no período faraônico e atravessa o século 21. No último mês de janeiro, uma adolescente morreu no Egito por complicações após ter sido submetida a uma cirurgia de mutilação genital. Na semana passada, os pais da vítima, identificada como Nada Abdul Maksoud, e o médico aposentado que realizou o procedimento, foram presos, assim como uma tia da menina.
“Este médico tem 70 anos e nem usou anestesia. Esta adolescente deve ter sofrido muito, foi uma morte horrível. Quem faz a cirurgia nem se importa com o sofrimento da paciente. Só pensa no dinheiro. Trabalham como bárbaros”, afirma a ativista somaliana.
Em 2008, a prática foi proibida no país, onde passou a ser considerada crime em 2016, depois que uma jovem de 17 anos sangrou até a morte após a mutilação. Apesar disso, e de campanhas de alerta, o Egito vem sendo motivo de preocupação nos últimos anos por ter uma das mais altas taxas de mulheres submetidas a este tipo de cirurgia. Um relatório da Unicef divulgado em 2017 estimou que 85% das mulheres egípcias entre 15 e 49 anos tiveram suas partes íntimas cortadas. Atualmente 26 nações africanas e do Oriente Médio têm legislações específicas contra a prática.
“O Egito é um exemplo de onde não se obedece a lei. Então, continua-se a mutilar meninas. Anos atrás, uma jovem morreu e o médico foi condenado à prisão domiciliar, apenas. Não foi para cadeia. Na maioria dos países onde a mutilação é ilegal ninguém obedece a lei. Só quando alguém morre e isso vira notícia na mídia internacional é que as autoridades locais fazem alguma coisa”, lembrou Hibo Wardere.
Crueldade em nome da ‘pureza’
A cirurgia consiste em cortar os lábios vaginais e até mesmo o clitóris. Depois, costura-se as partes íntimas, deixando apenas um pequeno orifício, suficiente para a urina passar. A Unicef divulgou um levantamento apontando que em cada quatro sobreviventes da mutilação apenas uma foi operada por um profissional de saúde. No Egito e Sudão, por exemplo, quase 8 em 10 meninas foram operadas por médicos.
“Medicalizar a prática não a torna segura, moral ou defensável”, disse Henrietta Fore, diretora executiva da Unicef. Críticos ao procedimento dizem que nem sempre são utilizados equipamentos esterilizados. Não são raras as vezes em que os cortes são feitos com facas, navalhas, tesouras, vidros ou pedras afiadas.
As mulheres são privadas do prazer sexual após a mutilação. Os defensores do procedimento acham que esta é uma forma de garantir que as meninas continuem puras até o casamento e sejam respeitadas em suas comunidades. O mais espantoso é que normalmente quem mais incentiva a prática são as mulheres da família: mães, tias e avós são induzidas a apoiar o procedimento que é visto como uma forma de encontrar “bons maridos”.
“As mães fazem isso com as filhas. Não são as filhas que querem ser mutiladas. Porque as mães vêm de comunidades onde isso é comum e para elas é normal. Não fazem por maldade, porque não gostam de suas filhas. É uma maneira das jovens serem aceitas, respeitadas, consideradas virgens, limpas e de confiança. Se não fizerem isso, serão rejeitadas, vistas como imorais e ninguém da comunidade vai querer se casar com elas”, explica Hibo Wardere à RFI.
A ativista contou ainda que nasceu em uma comunidade pequena da Somália onde praticamente todas as mulheres da idade dela tiveram as partes íntimas mutiladas. A somaliana, que hoje usa sua experiência para se dedicar a combater a prática, também lembrou que o valor pago pela família do noivo aos pais da noiva, na véspera do casamento, costuma ser maior se a pretendente garantir que é virgem, tendo a cirurgia como prova.
O prejuízo da atrocidade
Neste dia Internacional da Tolerância Zero para a Mutilação Genital Feminina, a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou que seriam necessários 1,4 bilhão de dólares por ano, no mundo todo, para tratar todos os impactos causados nas mulheres mutiladas. “A operação não é apenas um abuso catastrófico dos direitos humanos que prejudica significativamente a saúde física e mental de milhões de meninas e mulheres. É também uma drenagem dos recursos econômicos vitais de um país”, avalia Ian Askew, diretor do Departamento de Saúde e Pesquisa Sexual e Reprodutiva da OMS.
Este custo pode chegar a representar 30% de todo o gasto anual com saúde em alguns países. O cálculo foi feito com base em dados das 27 nações onde a prática é mais difundida: Benin, Burkina Faso, República Centro-Africana, Costa do Marfim, Camarões, Chade, Jibuti, Egito, Eritréia, Etiopia, Gana, Guiné, Gambia, Guiné-Bissau, Iraque, Quênia, Mali, Mauritania, Niger, Nigeria, Sudão, Senegal, Serra Leoa, Somalia, Togo, Tanzânia e Iêmen.
A OMS também está trabalhando em parceria com as nações que realizam mutilações genitais femininas para aumentar a conscientização sobre os impactos nocivos da prática entre seus profissionais de saúde e envolvê-los em esforços de prevenção. “Se os países investirem para acabar com a mutilação genital feminina, poderão impedir que suas meninas sejam submetidas a essa prática prejudicial e promover a saúde, os direitos e o bem-estar de mulheres e meninas”, disse Christina Pallitto, cientista da OMS. Ela ainda exaltou exemplos de muitos países e comunidades como prova de que é possível abandonar a prática.
Se o procedimento fosse abolido agora, a OMS estima que até 2050 os países economizariam mais de 60% dos gastos com saúde. Por outro lado, se a situação não mudar, acredita-se que esses custos subam 50% no mesmo período, com o crescimento populacional e o aumento do número de meninas passando pelo procedimento.
“Os altos custos com saúde dos países aumentam por causa dos trágicos impactos pessoais em mulheres e meninas. Os governos têm uma responsabilidade moral de ajudar a acabar com essa prática prejudicial ”, afirmou o Dr. Prosper Tumusiime, Diretor Interino de Cobertura Universal de Saúde e o Curso de Vida no Escritório Regional Africano da OMS. “Isso machuca as meninas, impõe riscos de saúde ao longo da vida às mulheres e prejudica os sistemas de saúde que precisam tratá-las”, completou.
Apesar da falta de dados precisos, a Unicef estima que pelo menos 200 milhões de meninas e mulheres vivam tendo sido submetidas a este tipo de cirurgia em 30 países da África, Ásia e Oriente Médio, tendo 44 milhões delas menos de 15 anos de idade. E mais da metade vive em apenas três países: Indonésia, Egito e Etiópia.
Ainda de acordo com a Unicef, em muitos países a maioria das meninas foi operada antes de completar 5 anos. No Iêmen, 85% delas foram submetidas à prática nas primeiras semanas de vida. “Mais investimentos são urgentemente necessários para interromper essa prática e acabar com o sofrimento que ela causa”, concluiu Dr Ian Askew.
Jovens defendem o fim das mutilações genitais
Ainda de acordo com a nova análise da Unicef, nas últimas duas décadas, quase dobrou a proporção de meninas e mulheres em países onde tradicionalmente as mutilações são comuns que apoiam o fim da prática. As adolescentes são mais propensas do que as mulheres mais velhas a se opor à cirurgia.
“As mutilações estão enraizadas nas desigualdades de gênero e o primeiro passo para acabar com isso é mudar a mente das pessoas. Estamos progredindo. Atitudes estão mudando. Comportamentos estão mudando. E, em geral, menos meninas estão sendo cortadas”, disse Henrietta Fore.
A ativista Hibo Wardere diz que isso não está longe da realidade sul-americana. Revela que a prática vem sendo adotada em comunidades indígenas colombianas e, pela classificação dela, até no Brasil. “Vocês no Brasil têm isso, mas chamam por outro nome. Há moças jovens que fazem alterações estéticas na vagina, mas na verdade é uma mutilação genital. Só que criam nomes sofisticados, como labioplástica, design vaginal”, disse, reforçando que considera mutilação genital feminina qualquer modificação na área genital da mulher quando esta funciona perfeitamente. “Parece cirurgia plástica, mas é exatamente igual”, afirmou.
A OMS reforça que a mutilação genital feminina não traz benefício algum para a saúde feminina, apenas prejuízos. “As pessoas precisam se sentir livres para discutir a respeito. Não é só um problema para ser visto em nível cultural, religioso, político. É importante não ter vergonha de falar sobre o assunto”, conclui a somaliana que sobreviveu à cirurgia.
Professor Edgar Bom Jardim - PE
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