sexta-feira, 9 de abril de 2021

Quem faz parte da família real britânica e como ela funciona?


Príncipe Philip em foto de julho de 2020, sorrindo e olhando para o lado

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Príncipe Philip em foto de julho de 2020; ele morreu nesta sexta-feira (09/04) aos 99 anos

O príncipe Philip, duque de Edimburgo, morreu nesta sexta-feira (09/04) aos 99 anos de idade.

Ele foi casado com a rainha Elizabeth 2ª por 73 anos e foi o consorte mais longevo da realeza britânica.

Vamos recapitular pontos básicos para entender a família real britânica.

Quem faz parte da família real?

A rainha é a chefe de Estado do Reino Unido desde 1952, quando seu pai, o rei George VI, morreu. Ela está no poder há mais tempo do que qualquer outro monarca britânico, e é também chefe de Estado de 15 outros países da Commonwealth (a Comunidade Britânica, que reúne antigas colônias).

A rainha, de 94 anos, e seu falecido marido, o príncipe Philip, têm quatro filhos (Edward, Andrew, Anne e Charles), oito netos e nove bisnetos.

Elizabeth e Philip caminhando em direção ao altar, em foto preto e branco

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Ainda princesa, Elizabeth casou com o príncipe Philip em 1947

São também membros da família real britânica:

  • O príncipe de Gales (príncipe Charles), 72, casado com a duquesa da Cornuália (Camilla) — ele é o filho mais velho da rainha e é o próximo na linha de sucessão ao trono;
  • O duque de Cambridge (príncipe William), casado com a duquesa de Cambridge (Catherine) — ele é o filho mais velho do príncipe de Gales e de Diana, princesa de Gales;
  • O duque de Sussex (príncipe Harry) é irmão de William e casado com a duquesa de Sussex (Meghan); no ano passado, o casal anunciou seu afastamento dos deveres da família real, e hoje vive com o filho pequeno, Archie, em Los Angeles (EUA).

Como entrar para a realeza?

Alguém que se casa com um membro da realeza torna-se também membro da família real, ganhando um título.

Por exemplo, Lady Diana Spencer se tornou princesa de Gales quando se casou com o príncipe Charles em 1981.

No entanto, para se tornar rei ou rainha, é preciso ter nascido na família real.

O príncipe Charles é o primeiro na linha de sucessão; seu filho mais velho, o príncipe William, é o segundo; e o filho mais velho de William, o príncipe George, é o terceiro.

Árvore genealógica com fotos e nomes dos membros da família real
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Como são os casamentos reais?

As cerimônias costumam acontecer em lugares tradicionais e grandiosos, atraindo multidões à sua volta.

A rainha e o príncipe Philip se casaram em 1947 na milenar Abadia de Westminster, em Londres.

Mais de seis décadas depois, em 2011, multidões foram às ruas em volta da abadia para celebrar o casamento de William e Catherine Middleton, que então se tornaram o duque e a duquesa de Cambridge.

Kate e William na carruagem, com trajes de casamento
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No dia do casamento, o duque e a duquesa de Cambridge foram levados de carruagem da Abadia de Westminster para o Palácio de Buckingham

Outros membros da realeza, como o príncipe Harry e Meghan Markle, já se casaram na St. George's Chapel, no Castelo de Windsor, que existe há mais de 900 anos.

Bebês reais

Vários membros da realeza nasceram no hospital St. Mary's, em Londres.

Foi lá que a princesa Diana deu à luz ao príncipe William e ao príncipe Harry, e que a duquesa de Cambridge teve seus três filhos: príncipe George, hoje com 7 anos; princesa Charlotte, 5; e o príncipe Louis, 2.

Diana e Charles segurando juntos e olhando para William, bebê, fora do hospital

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O príncipe William nasceu em 1982 no hospital St Mary's, em Londres

O que a família real faz?

O governo britânico é chamado de governo da Sua Majestade, mas a rainha praticamente não tem poder político.

Ela se reúne com o primeiro-ministro uma vez por semana, como um lembrete de seu lugar no governo, mas o primeiro-ministro não precisa de sua aprovação para decisões.

A rainha e outros membros da realeza também cumprem compromissos oficiais — estes muitas vezes representando-a. Por exemplo, o duque e a duquesa de Cambridge realizaram uma visita oficial à República da Irlanda em março passado.

Kate e William descendo do avião

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Em compromisso oficial, o duque e a duquesa de Cambridge foram recentemente à República da Irlanda

Muitos são patronos de instituições de caridade e alguns criaram suas próprios iniciativas, como um programa de incentivo para jovens do duque de Edimburgo.

Membros da família real também têm laços estreitos com as forças armadas. O príncipe William serviu na Força Aérea Real e o príncipe Harry, no Exército.

Harry sentado em terreno árido, mirando uma metralhadora para fora da janela e sorrindo para foto

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Servindo no Exército, o príncipe Harry foi para o Afeganistão

Membros da realeza sempre desempenham compromissos oficiais?

Não. No ano passado, o príncipe Harry e Meghan, duquesa de Sussex, anunciaram que abriram mão de seus deveres como membros da família real, planejando trabalhar para se tornarem financeiramente independentes.

O Palácio de Buckingham confirmou que o casal abriu mão de nomeações militares honorárias e patrocínios reais, que serão redistribuídos aos funcionários da família real.

Harry e Meghan sorrindo e caminhando lado-a-lado

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O duque e a duquesa de Sussex agora vivem nos EUA com o filho pequeno, Archie

O duque de York, príncipe Andrew, se afastou dos deveres reais em 2019 depois de dar uma entrevista à BBC na qual falou de sua amizade com Jeffrey Epstein, condenado por abusos sexuais.

Como a família real é sustentada?

Todos os anos, o governo do Reino Unido repassa à rainha um único pagamento, chamado de Sovereign Grant ("Subsídio Soberano").

A quantia se baseia em 25% da receita do Crown Estate de dois anos antes. A Crown Estate é uma empresa comercial independente — inclui a posse do parque real de Windsor e do autódromo de Ascot, em Berkshire, mas é composta principalmente de propriedades residenciais e comerciais.

O Sovereign Grant, que foi de £ 85,9 milhões para 2020-21, financia deveres reais oficiais e os palácios reais.

O príncipe Charles tem também uma receita advinda do Ducado da Cornuália — um vasto portfólio de propriedades e investimentos financeiros, que rendeu £ 22,3 milhões no ano passado.

Onde moram os membros da Família Real?

Em sacada, membros da família real olham para cima

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Em 2019, membros da família real comemoraram o aniversário da rainha no Palácio de Buckingham

A residência oficial da rainha é o Palácio de Buckingham, em Londres.

Ela geralmente passa os fins de semana e o mês da Páscoa no Castelo de Windsor, em Berkshire. Durante a pandemia de coronavírus iniciada em 2020, ela morou lá — e foi em Windsor que o príncipe Philip morreu.

O príncipe Charles e a duquesa da Cornuália vivem em Clarence House, a menos de 800m do Palácio de Buckingham.

O príncipe William e Catherine, duquesa de Cambridge, também vivem nas proximidades, no Palácio de Kensington.
BBC

Professor Edgar Bom Jardim - PE

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Quem era Salomé, a menina que Santo Agostinho transformou em 'mulher sem-vergonha'



A dança de Salomé, de Benozzo Gozzoli

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A dança de Salomé, de Benozzo Gozzoli

Entre os arquétipos femininos da Antiguidade aclamados pela cultura pop nos últimos anos estão Cleópatra, as Amazonas e Afrodite.

Mas Salomé, uma heroína adorada até o início do século 20, caiu em relativo esquecimento. Uma injustiça que deve ser reparada!

Os Evangelhos nos contam sobre o assassinato de João Batista no final de um famoso banquete por volta do ano 29 em que se diz que Salomé dançou. O objetivo da festa era comemorar o aniversário de Herodes Antipas, o tio-avô da jovem e tetrarca, ou seja, governador de alguns territórios no sul do Oriente Médio em nome dos romanos.

A dança de Salomé ocorreu numa das fortalezas de Antipas, em Maqueronte, que o escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880), em 'Herodíade', um dos "Três contos" publicados em 1877, muito acertadamente situa a leste do Mar Morto.

Antipas havia prendido e encarcerado João Batista, um pregador popular cujas violentas tiradas contra a ordem estabelecida poderiam ter incitado uma revolta.

João Batista também foi considerado culpado de insultos contra Herodíade, esposa de Antipas.

Herodíade não se cansava de exigir que o insolente profeta fosse morto.

Catedral de Rouen

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Tímpano da Catedral de Rouen, em que Salomé pode ser vista dançando durante o banquete de Antipas e, à direita, entregando a cabeça de São João Batista a Herodíade

Mas Antipas não estava certo disso, porque sabia que João Batista era um homem justo e santo, como podemos ler no Evangelho segundo São Marcos.

O aniversário de Antipas ofereceu a Herodíade o momento propício para atingir o que queria. A esposa do tetrarca compareceu à festa acompanhada da filha Salomé, fruto de um casamento anterior.

Durante o banquete, a filha de Herodíade começou a dançar e agradou a Herodes e seus convidados. O tetrarca, como um gesto de gratidão, lhe fez uma promessa: "Tudo o que você me pedir, eu darei a você, mesmo metade do meu reino."

Então, Salomé, sob a influência de sua mãe, reivindicou "em um prato, a cabeça de João Batista".

O tetrarca não se atreveu a recusar, para não ficar mal diante de seus convidados. Ele imediatamente enviou um guarda para decapitar João Batista em sua cela. E Salomé recebeu a cabeça, que deu à sua mãe.

A princesa Salomé nasceu no ano 18 e, portanto, tinha apenas 11 ou 12 anos naquela época.

O termo grego pelo qual ela é definida no Evangelho é "korasion", um diminutivo neutro de "korè" (menina). A palavra "korasion" não apenas evoca uma garota, mas também a priva de toda feminilidade.

A dança de Salomé não era, portanto, uma dança erótica, a menos que suponhamos que os evangelistas recorressem à ironia.

Ou seja, a hipótese de que uma mulher sedutora estrelasse aquela dança parece improvável, de acordo com as escrituras.

Na origem do mito da dança de Salomé, talvez não houvesse nada mais do que a performance de uma menina por ocasião do aniversário de seu tio-avô.

Banquete de Herodes, de Lucas Cranach o Velho (1531), Hartford, Connecticut

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Banquete de Herodes, de Lucas Cranach o Velho (1531), Hartford, Connecticut

Salomé, uma menina transformada em uma mulher 'sem-vergonha'

Salomé sofre uma metamorfose como figura erótica três séculos após a escrita dos Evangelhos, no Sermão 16 (Pela decapitação de São João Batista) de Santo Agostinho.

Aqui, Salomé mostra os seios no decurso de uma dança frenética: "Às vezes inclina-se de lado e mostra seu flanco perante os espectadores; às vezes, na presença destes homens, mostra os seios".

Dessa forma, Salomé se tornou uma adolescente sem-vergonha e fatal. Como outras figuras semelhantes nas sociedades patriarcais, ela personifica o perigo feminino contra o qual os homens devem se proteger.

A famosa dança pode muito bem ter ocorrido. No entanto, como aponta o historiador americano Harold W. Hoehner, os Evangelhos não atribuem nenhuma conotação erótica à performance de Salomé.

Santo Agostinho tornou-se assim um promotor do destino excepcional de Salomé, cuja condenação logo se tornou uma fantasia. A dança da menina foi um grande sucesso desde a Idade Média.

No tímpano do pórtico de São João, na catedral de Rouen, que Flaubert conhecia bem, a acrobática Salomé se contorce com a cabeça baixa e as pernas levantadas.

No século 15, o pintor italiano Benozzo Gozzoli retrata uma adolescente orgulhosa que não hesita em atrair Antipas com os olhos.

Salomé por Franz von Stuck, 1906

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Salomé por Franz von Stuck, 1906

Atordoado, o tetrarca tem a mão direita imobilizada sobre o coração, enquanto, com a outra, agarra uma faca de cozinha erguida sobre a mesa do banquete, um símbolo fálico discreto que sugere sua excitação.

Salomé também é retratada, repleta de confiança, por Lucas Cranach, o Velho (1531): ela não parece impressionada com a cabeça ensanguentada que carrega no prato, como o troféu de sua vitória, enquanto Antipas faz um gesto de desgosto.

Cranach destaca a oposição entre a beleza orgulhosa de Salomé e o tetrarca, retratado como uma grande figura com um olhar pesado. O artista também brinca com o contraste entre a elegância da jovem virgem e o rosto do profeta decapitado, mesclando erotismo e crueldade em uma obra que pode ser qualificada como sádica.

Ameaça feminina em dobro

Em 1877, quando publicou "Herodíade", Flaubert lembrou o contorcionista no tímpano da Catedral de Rouen. Ele também se inspirou em suas próprias experiências, especialmente na companhia dos dançarinos Kuchuk Hanem e Azizeh, que conheceu no Egito.

A personagem de Salomé expressa tanto a atração quanto o terror causado pelo poder de sedução. A queda do santo simboliza a castração do homem alienado pelo desejo.

Um desejo que enfeitiça e impede qualquer julgamento, despertado pela simples visão de partes do corpo feminino: "Aproximou-se um braço nu, um braço jovem e encantador."

O físico da jovem está fragmentado. Seus vários enredos ou características ajudam a despertar o desejo do espectador: "Os arcos de seus olhos, a calcedônia de suas orelhas, a brancura de sua pele".

A dança dos sete véus, de Gaston Bussière (1925)

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A dança dos sete véus, de Gaston Bussière (1925)

As roupas também são detalhadas, destacando a carne que a torna ainda mais atraente: "Um véu azulado que cobre o peito e a cabeça", "sapatinhos de beija-flor".

Flaubert expressa uma espécie de fetichismo pelos sedutores adornos femininos orientais. Esta imagem foi posteriormente utilizada no cinema, na dança de Brigid Bazlen encarnando Salomé no filme "O Rei dos Reis" (1961), de Nicholas Ray.

Embora o título da história se refira apenas a Herodes, a obra é construída sobre uma duplicação da ameaça feminina por meio das figuras intimamente relacionadas da mãe, verdadeira mestre de cerimônias, e sua filha, não menos formidável, como executora da vontade materna.

É assim que Antipas cai nas redes dessas duas mulheres fatais: a manipuladora e a feiticeira.

Idolatria em baixa

Depois de Flaubert, Salomé ainda povoou o imaginário ocidental por algumas décadas. Em 1891, o escritor irlandês Oscar Wilde inventou o tema da dança dos sete véus para sua obra Salomé, posteriormente trazida para a música pelo compositor e maestro alemão Richard Strauss (1905). A figura de Salomé atingiu então o seu apogeu artístico.

Mais tarde, foi encarnada no cinema por algumas atrizes sulfurosas como Rita Hayworth ("Salomé", de William Dieterle, 1953) ou Brigid Bazlen ("O Rei dos Reis", de Nicholas Ray, 1961). E em 1988, Imogen Millais-Scott desempenhou perfeitamente o papel de uma lolita atrevida em "Salomé" de Ken Russell.

Mas na segunda metade do século 20, o fascínio do público pela dançarina bíblica desaparece em favor de novos ícones femininos ou feministas mais contemporâneas e positivas.

Salomé não é mais um ídolo de nosso tempo.

*Christian-Georges Schwentzel é professor de História Antiga na Universidade de Lorraine (França)

Este artigo foi publicado originalmente no site The Conversation. Clique aqui para ler o artigo original em espanhol.

Professor Edgar Bom Jardim - PE

terça-feira, 6 de abril de 2021

O Brasil do macho desgovernado: ele urra e usa um celular no lugar do tacape





Expondo nas redes seu descontentamento com os costumes ou a política nacional, o macho desgovernado exige que seus atos preconceituosos sejam entendidos como direitos.


1 – Sabendo que está sendo filmado e depois de dar um “tchauzinho” para a câmera, o desembargador Eduardo Siqueira chama um policial municipal de “analfabeto” e rasga a multa que acabara de receber por caminhar sem máscara no litoral de Santos, São Paulo. 

2 – Todo trabalhado no verde e amarelo, o empresário José Sabatini grava um vídeo empunhando um revólver. Fala grosso e ameaça o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Filho da puta! Vagabundo!” 

3 – O vereador José Alberto Bastos Vieira Junior, o Inspetor Alberto, do partido Pros do Ceará, publica um vídeo disparando dez tiros contra uma foto do petista. Diz que, assim, “sai toda a raiva”. 

4 – Um homem não identificado chuta as cruzes que o Comitê de Resistência e Solidariedade de Toledo, Paraná, colocou no Parque Ecológico Diva Paim Barth. Homenageavam as mais de 200 pessoas que morreram de covid-19 na cidade e as mais de 300 mil que morreram no Brasil. Ele sabe que um integrante do Comitê o filma, mas segue derrubando as cruzes e finaliza o ato dramaticamente, rasgando uma faixa que pedia por mais vacinas.

OS QUATRO CASOS são meramente ilustrativos, mas bastante eloquentes. Eles dizem respeito a um fenômeno que tem ganhado ainda mais força no Brasil, mas não só aqui: a síndrome do macho desgovernado, aquele que faz questão de amplificar em som, fúria e redes sociais, um descontentamento que, acredita, é muito precioso e se sobrepõe ao de todos os outros. Para isso, aciona recursos como o grito, a palavra de ordem, a carteirada, a ameaça, a bala. Mais: recorre geralmente à publicização de seus atos, uma mostra de que o macho desgovernado, MD, não quer meramente destruir ou ameaçar – ele também quer viralizar e conquistar a possível chance de “mitar”.

A extrema instabilidade comportamental do MD não tem idade, ela perpassa gerações e atinge também homens mais jovens daqueles vistos nos exemplos acima. É o caso do exemplo 5: o deputado federal Daniel Silveira, 38 anos, chega para fazer exame de corpo de delito após ser preso pela Polícia Federal. Uma policial pede para que, dentro do recinto, ele use a máscara. Daniel, falando muito grosso, vai aumentando o tom da voz enquanto se dirige até o guichê no qual a policial está. Mistura máscara com petismo, respeito, vagabundagem e, claro, dá uma carteirada: “Sou deputado federal, e daí?”. Passados dois minutos do vídeo, ele se dirige ao colega que o filma. Avisa que a gravação pode ser encerrada.

O amor que o macho desgovernado possui pelo flash é um traço contemporâneo de algo há muito existente: a necessidade de sublinhar marcadores de uma masculinidade prezada socialmente e entendida como superior. “Ela é sempre uma construção sociocultural, não é natural e justamente por isso só se estabelece quando é performada. Essa performance é constantemente atualizada e, hoje, está ainda mais atrelada à exposição midiática”, diz o professor Ricardo Sabóia, pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco, UPFE, que nos últimos anos vem desenvolvendo estudos sobre masculinidades, inclusive no ambiente das redes sociais. Sintetizando: em vez de urrar e segurar um tacape, o macho desgovernado urra e segura um celular.

Sabóia aponta que esse fenômeno está atrelado a outro, fundamental: a reação a uma série de arranjos e decisões que perpassam a política, a justiça e o campo midiático e são pertinentes a avanços nos direitos das mulheres, população LGBTQIA+, etc. A sensação, para os rapazes que repousam no conforto da masculinidade mais valorizada socialmente, é a da perda de espaço – ou seja, da perda de poder. “É como se uma ameaça estivesse por todos os lados: mulheres, gays, homens ‘que não são homens’. É assim que vão ser valorizados e reforçados valores tradicionais ligados a esse homem hegemônico, é quando se reforça quem está no poder e quem deve continuar a exercê-lo”, continua o pesquisador.

Essa percepção é compartilhada pela antropóloga Isabela Kalil, coordenadora do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual, Neu, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, que faz um importante apontamento sobre a questão: no Brasil, não é possível discutir patriarcado sem discutir escravidão. Assim, o escancaramento do que ela chama de masculinismo tem relação com a criminalização da homofobia e o fortalecimento de maiorias minorizadas no debate público, mas não só. Ele também está associado à consolidação de ações democratizantes como, por exemplo, a política de cotas para negros e negras, indígenas, pobres. No contexto em que tais ações são institucionalizadas, “passou a ser condenável expressar abertamente, em público, o machismo, o racismo, a homofobia. Mas quando você tem um líder que abertamente faz isso, dá licença para que outras pessoas façam o mesmo”, diz.

Nesse sentido, o presidente Jair Bolsonaro engatou marcha-a-ré na tentativa de conter um urgente novo pacto civilizatório brasileiro, assentado no reconhecimento de uma cidadania mais plena e mais ampla. Um pacto que foi não somente interrompido antes ainda de se consolidar, mas que recebeu e recebe porrada por todos os lados. Sentindo-se acuados e com a “liberdade” limitada, muitos homens passaram a chutar, bater no peito e a falar grosso: queriam (aliás, querem) que seus atos homofóbicos, racistas, misóginos, preconceituosos, sejam entendidos antes de tudo como direitos. A eles, precisa ser garantida a continuidade de dizer ou performar o que vier na telha. Não gostou? Vá se foder pra lá. E se me chamar de preconceituoso, homofóbico ou racista, enfio a mão, te ameaço em rede social ou te meto um processo.

Isso nos leva ao sexto exemplo do macho desgovernado, este se distanciando imageticamente do MD mais velho que vocifera vestido de verde e amarelo e carrega arma. É o boy de terno bem cortado, que investe na barba e curte expressões em latim como Deus vult, que significa “Deus quer”, lema das Cruzadas (a Idade Média, aquele tempo onde o macho branco cristão era respeitado e não tinha esse papo de homem transgênero, por exemplo).

6 – O assessor governamental Filipe Martins faz um sinal com a mão; um sinal que pode ser lido tanto como o supremacista “white power” quanto como “dar o cu”. Aproveitava a visibilidade das câmeras apontadas para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do Democratas, que discursava naquele momento logo à frente dele. Posteriormente, o macho desgovernado ameaçou processar várias pessoas e afirmou que estava apenas “ajeitando a lapela”.

Vale observar mais um ponto relacionado a Filipe Martins e a macheza das redes: quando estas foram coalhadas de críticas por conta do vídeo mostrando seu gesto, diversos homens, vários deles pobres, vários deles negros, saíram em defesa do assessor governamental. Nesse sentido, o “corporativismo de gênero” (no Recife, chamamos de “brodagem”) parece falar mais alto que as questões de classe e raça. “Há uma grande solidariedade entre os homens e uma partilha de perspectivas construídas em torno dessa solidariedade”, diz Ricardo Sabóia. Outro ponto, este levantado por Isabela Kalil, diz respeito a uma crítica comum: a ideia do supremacista branco que não pode ser preto ou pardo. “Isso é problemático porque se a gente opera nessa lógica, reiteramos o mesmo argumento racista da pureza de raça. Ao branco estaria então permitido ser supremacista?”.

Vale lembrar que o ideal a masculinidade agressiva não é compartilhado apenas entre eles, mas também entre mulheres conservadoras que valorizam o macho que se coloca à frente de todas as coisas. Tem mais: esse modelo viril clichê se impõe sobre outras masculinidades. É aquela coisa da performance: não basta ter nascido macho, tem que deixar isso bem claro através de certa agressividade. Qualquer valor ou comportamento entendidos como “femininos” (o cuidado, a atenção, a delicadeza e mesmo a educação), se percebidos nos homens, vai levá-los automaticamente a perder o ISO 9.000 concedido pelo macho desgovernado. Aí, dá-lhe homofobia em diversos níveis, desde a violência física até “piadas” como “calça apertada” (como jocosamente Bolsonaro, sugerindo afeminamento, se refere ao governador de SP, João Doria).

7 – Novembro de 2020, o Brasil contava com 163 mil mortos para a covid-19 e quase seis milhões de casos confirmados. Em uma cerimônia no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro declara: “Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas (…) Temos que buscar mudanças, não teremos outra oportunidade. Vem a turminha falar ‘queremos um centro’, nem ódio pra lá nem ódio pra cá. Ódio é coisa de marica, pô. Meu tempo de bullying na escola era porrada.”

(Não se preocupe em entender. O presidente Jair Bolsonaro ultrapassa qualquer entendimento).

O farol sobre a farda

Guardando diferenças importantes em relação a todos os casos acima, mas com semelhanças que o fazem pertinente aqui, está o caso do policial Wesley Soares, morto no dia 28 de março após atirar com um fuzil nos colegas PMs. A diferença fundamental é que, apesar de não haver ainda uma investigação final sobre o que levou o PM ao ato extremo, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia afirma que ele passava por um surto psicótico. Wesley, assim, sintetizava ali um mal que perpassa estruturalmente a Polícia Militar brasileira e vem sendo tratado como problema menor: transtornos mentais relacionados a uma profissão exercida sob enorme pressão e risco de morte permanente (e também mal paga). O assunto foi abordado no Intercept em janeiro, quando Leonardo Martins expôs o caso de um policial que tentou cometer suicídio três vezes desde que passou a fazer parte da PM de São Paulo. No entanto, os psiquiatras da corporação diziam que seu desesperado pedido para não voltar a trabalhar era pura “imaturidade” (pois é, tem muito macho desgovernado usando jaleco e com diploma na parede).

Mas o fato de Wesley ter dirigido durante cerca de 5 horas de Itacaré até a capital Salvador e escolhido um dos pontos turísticos por excelência da cidade, o Farol da Barra, é algo extremamente significativo no seu ato. O PM quis levar a sua insatisfação ao centro político do estado e, uma vez nele, ao centro de atenção. O rosto pintado de verde e amarelo, performático, sugeria o compartilhamento de valores como o patriotismo, a honra, a força, a ordem. Valores absorvidos socialmente, mas de entendimentos bastante individuais – no caso de Wesley, alguns relatos vindos dos próprios colegas indicam diversas divergências sobre estes valores, o que o consternava profundamente. Sugere-se assim que existência e explicitação de opiniões diferentes, de perspectivas políticas diferentes, passaram a ser gatilhos para o PM.

Coordenador do Virtus, Programa Institucional em Defesa Social, Segurança Pública e Direitos Humanos criado na UFPE, o professor Sandro Sayão diz que não podemos enxergar ou conceber o policial com um ente em separado da sociedade. “E nossa sociedade, embora as narrativas românticas existentes que nos dizem pacíficos e amorosos, é uma sociedade perversa, preconceituosa e extremamente violenta.”

Para ele, o caso de Wesley é o ápice do PM que deixou de ser visto como trabalhador para passar a ocupar o lugar do herói (como deixaram ver as postagens oportunistas da deputada federal Bia Kicis, aliás acompanhadas por um MD raiz, o também deputado bolsonarista Eduardo Bolsonaro). “Isso é perverso para o policial. Herói não precisa de curso, herói não precisa de formação, herói não precisa de equipamentos, de capacitação. Os discursos que destacam a figura do policial como herói são populistas, chamam atenção dos mais românticos e superficiais e acalentam o ego, principalmente de um contexto profissional repleto de tensões, como o contexto do trabalho em segurança pública. Reforçar essa ideia é algo imensamente perverso. Isso porque convoca homens e mulheres, a serem o que no fundo não são. Ou seja, convoca seres humanos a negarem suas próprias fragilidades e necessidades”, comenta Sayão.

Atualmente, segundo o pesquisador, em um universo de 800 mil policiais no Brasil, 30% tem problemas de saúde/sofrimento mental. “Eles atuam no âmbito de um governo que celebra a barbárie, e esse aumento da barbárie também é insuportável para os próprios policiais.”

Ao mesmo tempo, lembra Sayão, esses homens lidam com algo singular, que é o poder. Essa mescla entre desinvestimento e incentivo de uma cultura da virilidade exarcebada – que é marca do governo Bolsonaro, mas não é uma novidade no país – provoca tragédias diárias. Ele lembra o caso do policial Flávio Oliveira, que matou, dentro de uma viatura, o colega Adriano Batista após uma discussão sobre cotas raciais. O assassinato aconteceu no Recife, em agosto de 2015.

Um outro ponto que não pode deixar de ser trazido para o cultivo da violência naquela que, no mundo, é a polícia que mais morre e é também a polícia que mais mata, é a naturalização do assassinato dos pobres e negros. Chegamos assim ao nosso último exemplo, cujo teor difere dos demais pela própria natureza do registro: o vídeo que mostra a morte de um adolescente, de apenas 15 anos, baleado de maneira particularmente banal em fevereiro de 2015.

8 – Alan de Sousa Lima e mais dois amigos conversavam enquanto acontecia uma operação da 9º BPM, de Rocha Miranda, na favela da Palmerinha, zona norte do Rio. Estavam montados em bicicletas, riam e faziam piadas, o que chamou atenção dos policiais. Eles atiraram no grupo e Alan, que estava com o celular na mão, terminou filmando a própria morte. Chauan Cesário, 19, levou um tiro no peito, mas sobreviveu. Os policiais envolvidos na ação afirmaram que os adolescentes estavam armados – o que foi desmentido após o vídeo cair nas redes sociais. Em 2017, o sargento Ricardo Vagner Gomes foi condenado a 27 anos e seis meses de prisão.

São muitos os machos desgovernados – e eles estão mais à vontade do que nunca. Tanto ao ponto de, mesmo sem querer, se tornarem protagonistas dos registros daqueles que eles matam.

Fabiana Moraes

Fonte: theintercept.com

Professor Edgar Bom Jardim - PE