terça-feira, 3 de março de 2020

150 anos do fim da Guerra do Paraguai: a história do conflito armado mais sangrento da América Latina


Ilustração de batalha na Guerra do ParaguaiDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionA Guerra do Paraguai (1864-1870) foi a mais sangrenta na história da América Latina
Na história da América Latina, não houve nenhum conflito armado em que lutaram e morreram tantos homens como na Guerra do Paraguai.
O Brasil, a Argentina e o Uruguai perderam cerca de 120 mil soldados. Mas a verdadeira tragédia foi enfrentada pelo país que, há um século e meio, terminou derrotado no conflito com esses três países aliados: o Paraguai.
Para o Paraguai, não foi só uma derrota militar, mas sim um massacre que alguns historiadores consideram um genocídio.
As cerca de 280 mil vítimas paraguaias representavam mais da metade da população do país.
A vasta maioria dos mortos era de homens — o Paraguai teve sua população masculina praticamente dizimada.
Contam os repórteres da época que, quando terminou a "Guerra Grande" — como a chamam os paraguaios —, havia no país quatro mulheres para cada homem (e, em algumas regiões, 20 mulheres por homem).
Um desastre demográfico que, segundo muitos historiadores, atrasou gravemente o desenvolvimento do país.
Cadáveres de paraguaios mortos na Guerra do ParaguaiDireito de imagemBIBLIOTECA NACIONAL DEL URUGUAY
Image captionO uruguaio Javier López fotografou cenas da guerra para a Casa Bate & Cía; nesta imagem, corpos de paraguaios mortos em batalha

O que aconteceu?

A pior guerra na história da América Latina teve origem em um conflito interno que surgiu no Uruguai e passou rapidamente para o nível regional (alguns dizem que por conta de interesses comerciais do Império Britânico).
Foi em 1864, poucas décadas após os países sul-americanos declararem suas independências das potências europeias, e quando as fronteiras das novas nações ainda estavam sendo definidas.
A faísca que desencadeou tudo foi uma disputa entre os partidos tradicionais do Uruguai: o Partido Nacional (ou Branco), que governava, e o Partido Colorado.
O governo de Bernardo Prudencio Berro, do Partido Branco, era o único aliado regional do Paraguai e lhe garantia uma saída ao mar (embora, na prática, antes da guerra, os paraguaios usassem principalmente o porto de Buenos Aires para chegar ao Atlântico).
Já os colorados, liderados pelo general Venancio Flores, tinham o apoio do Brasil.
Por isso, quando Flores, com a ajuda do Brasil, encabeçou uma revolução para derrubar Berro, o presidente paraguaio, o marechal Francisco Solano López, decidiu sair em defesa do governo uruguaio.
Solano López ordenou a captura de um barco mercante brasileiro e invadiu o Estado brasileiro do Mato Grosso, que o Paraguai e o Brasil disputavam.
A partir dali, ele pretendia enviar suas tropas até o Uruguai, mas para isso precisava atravessar a Província argentina de Corrientes.
Francisco Solano LópezDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionFrancisco Solano López foi nomeado Herói Máximo da Nação no Paraguai em 1936; o dia de sua morte, 1º de março, foi declarado Dia dos Heróis em sua memória
Foi assim que a Argentina entrou no conflito. O presidente do país, Bartolomé Mitre, era aliado dos colorados uruguaios, como o Brasil.
Por isso, ele negou o pedido de Solano López para atravessar Corrientes, e quando o marechal invadiu a Província, a Argentina se uniu ao Brasil e ao novo governo uruguaio contra o Paraguai.

As vítimas civis

Parte do motivo pelo qual a Guerra do Paraguai — ou Guerra da Tríplice Aliança — foi tão sangrenta foi o pacto que Argentina, Brasil e Uruguai fizeram para não encerrar o conflito até que Solano López fosse morto (o que ocorreu em 1º de março de 1870).
Isso fez com que a guerra se estendesse mesmo depois de o Paraguai ter sido invadido e arrasado, graças à enorme disparidade entre o tamanho e o poder de fogo entre as forças aliadas e as paraguaias.
Segundo o historiador paraguaio Fabián Chamorro, o dado mais "estremecedor" da guerra foi que a maioria das vítimas paraguaias não eram soldados (que eram cerca de 90 mil), mas sim a população civil, incluindo meninos, velhos e mulheres.
Milhares de meninos e adolescentes também morreram nas frentes de batalha, já que, diante do extermínio de suas tropas, Solano López começou a recrutar soldados cada vez mais jovens.
A historiadora alemã Barbara Potthast, que investigou em profundidade a Guerra do Paraguai, disse à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, que esses meninos e jovens haviam atuado como "uma barreira humana para que o exército (inimigo) não avançasse".
Menino soldado argentinoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionHavia meninos nos dois lados da Guerra do Paraguai — como este argentino que tocava tambor em um batalhão de infantaria
O caso mais tristemente célebre foi o da batalha de Campo Grande (ou Acosta Ñu, para os paraguaios), em 16 de agosto de 1869, na qual cerca de 20 mil soldados brasileiros lutaram contra aproximadamente 3.500 menores paraguaios, que morreram em sua maioria.
Por causa dessa batalha, o Dia da Criança no Paraguai se celebra em 16 de agosto.

Novo mapa

O pano de fundo da guerra, além do conflito político, foi a disputa territorial.
Antes do embate, o Paraguai tinha acordos territoriais com o Brasil e a Argentina.
Depois da guerra, o país perdeu grande parte do território que reivindicava — e que segundo Chamorro representava mais de 150 mil quilômetros quadrados, além de 25% do território paraguaio.
O Brasil incorporou áreas aos atuais Estados do Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina, e a Argentina conseguiu anexar as atuais Províncias de Formosa e Misiones.
Território do Paraguai antes e depois da guerra
Além disso, o Brasil ocupou o Paraguai por seis anos e exigiu uma indenização pela guerra.
"A guerra nos condenou a décadas e décadas de prostração econômica", disse à BBC News Mundo o historiador Fabián Chamorro.
"Devastou o país e, de certa forma, o Paraguai nunca se recuperou de tudo isso. Nunca teve um apoio da parte dos aliados para voltar a florescer economicamente, e demograficamente a catástrofe foi gigantesca", afirmou.
Uma das consequências indiretas da guerra, segundo Chamorro, foi que o Paraguai "não recebeu a migração de grande escala que receberam os vizinhos Argentina, Brasil e Uruguai".
"As consequências continuaram a ser sentidas por muito tempo, e periodicamente afloram no espírito paraguaio", conclui o historiador.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Coronavírus: por que há mais homens que mulheres infectados

Homem fumandoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionUm estudo revelou que a taxa de mortalidade por coronavírus entre os homens é de 2,8%, contra 1,7% nas mulheres
No início de fevereiro, quando as autoridades chinesas já estavam combatendo o surto de coronavírus há um mês, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças da China (CCDC) realizou seu primeiro estudo com base em dados de pacientes.
A amostra era composta por 138 pessoas que haviam sido hospitalizadas com covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. A idade média era de 56 anos — e 54,3% deles eram homens.
Semanas depois, quando o mesmo centro conduziu um estudo mais amplo, analisando os prontuários médicos de 72.314 pacientes, os dados mostraram uma conclusão semelhante.
Dos casos confirmados, 51% eram homens — mas o que chamou a atenção dos especialistas é que a taxa de mortalidade também era maior para o sexo masculino: 2,8% para os homens, e 1,7% para as mulheres.
MédicoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionAté o momento, ainda não há vacina contra o novo coronavírus
Parte da conclusão dos médicos é que a infecção pelo novo coronavírus "tem maior probabilidade de afetar homens mais velhos com algum tipo de doença prévia".
Mais de 82 mil casos da doença foram registrados ao redor do mundo, e 2,8 mil pessoas morreram — sendo a maior parte na China.

Questão hormonal?

Para Sabra Klein, do departamento de microbiologia molecular e imunologia da Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, o estrogênio — hormônio sexual feminino — pode ser a explicação para as diferentes respostas à doença.
"O estrogênio pode estimular aspectos da imunidade que são importantes para eliminar uma infecção viral e responder bem às vacinas", diz a cientista à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
Com base nessas informações, Klein levanta a hipótese de que o estrogênio seja um fator que contribui para a maior imunidade do sexo feminino no surto atual de coronavírus.
Mas como o surto é recente, ainda não há pesquisas que demonstrem isso de forma definitiva.
"Vários estudos realizados com camundongos infectados pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave (Sars) mostraram que o estrogênio contribuiu sem dúvida para a maneira como as fêmeas controlavam melhor a infecção do que os machos."
Isso também aconteceu com o vírus da gripe comum.
Pessoa lavando as mãosDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionComo medida preventiva, as autoridades de saúde pedem para as pessoas lavarem as mãos constantemente
Em uma pesquisa realizada em células coletadas da mucosa do nariz de homens e mulheres, os pesquisadores descobriram que o estrogênio reduz bastante a quantidade de vírus da gripe que se replica nas células infectadas.
Isso sugere um possível efeito protetor do estrogênio no combate ao vírus.
Para Janine Austin Clayton, diretora associada de pesquisa em Saúde da Mulher no Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, essa pesquisa mostrou "a importância de estudar as células de homens e mulheres e considerar o sexo como uma variável biológica ao coletar e analisar os dados das células".
Além disso, as mulheres tendem a apresentar maior imunidade do que os homens após infecções virais, incluindo a gripe, o que poderia deixar a população feminina mais preparada para uma epidemia como esta.

Fatores culturais e sociais

Ambas as cientistas concordam, no entanto, que há vários fatores sociais e culturais que também podem estar fazendo com que a taxa de mortalidade dos homens seja mais alta.
Homem com máscaraDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionO coronavírus é uma grande família de vírus, mas sabe-se que apenas seis (o novo seria o sétimo) infectam seres humanos
Na China, onde 99% dos casos foram registrados até agora, a porcentagem de homens que fumam, de acordo com dados coletados pelo jornal americano The New York Times, é superior a 50%, em comparação com 2% das mulheres.
E como o coronavírus ataca os pulmões, causando pneumonia, o tabagismo aumenta o risco de complicações quando há uma infecção pelo novo coronavírus.
Os pacientes infectados apresentam vários sintomas, incluindo falta de ar, febre, tosse seca e dor muscular.
Austin Clayton lembra ainda que não devemos esquecer as diferenças de gênero, ou seja, as diferenças entre homens e mulheres em relação a comportamentos e papéis sociais. Fatores que não têm nada a ver com a biologia.
Uma grande diferença de gênero se traduz, por exemplo, no percentual de homens e mulheres que vão ao médico quando estão doentes.
Coronavírus no microscópioDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionÉ assim que o coronavírus é visto no microscópio
"De acordo com um estudo dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, as mulheres americanas são 33% mais propensas que os homens a procurar um médico quando se sentem mal", explica.

Doenças prévias

Outros fatores que têm impacto direto na taxa de mortalidade dos homens infectados pelo novo coronavírus são a existência de doenças prévias e a idade.
Há uma incidência maior de diabetes tipo 2 entre os homens — e a pressão arterial deles costuma ser mais alta que a das mulheres.
"Nos seres humanos, embora as diferenças na imunidade possam ser um fator que contribui para responder à questão de por que as taxas de mortalidade são mais baixas nas mulheres do que nos homens, também devemos levar em conta doenças associadas a um risco maior de morte por coronavírus", diz Klein.
Por exemplo, as doenças cardiovasculares são um fator de risco "associado a piores resultados no atual surto de coronavírus, e os homens podem apresentar mais doenças cardíacas do que as mulheres nas faixas etárias em que as pessoas morrem".
De fato, as taxas de mortalidade aumentam gradualmente de acordo com a idade: para pessoas com 40 anos, é de 0,4%; de 50 anos, 1,3%; de 60 anos, 3,6%; de 70 anos, 8%; e de 80 ou mais, 14,8%.
A pesquisa do CCDC diz que cerca de 80,9% das novas infecções por coronavírus podem ser classificadas como leves, 13,8% como graves e apenas 4,7% como críticas, o que inclui insuficiência respiratória, falência múltipla dos órgãos e sepse.
No entanto, também há um inconveniente em ter um sistema imunológico mais forte.
"Embora a melhor resposta imune das mulheres contribua para uma eliminação mais rápida dos micróbios, essas respostas robustas também podem contribuir para uma maior suscetibilidade a doenças inflamatórias e autoimunes entre as mulheres", diz Janine Austin Clayton à BBC News Mundo.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Quem eram as ganhadeiras, mulheres escravizadas e libertas homenageadas por vencedora do Carnaval do Rio

LavadeirasDireito de imagemRAPHAEL DAVID/RIOTUR
"Ô lava a roupa lavadeira do Abaeté/ Na sombra da aroeira/ Até quando Deus quiser/ Na sombra da aroeira/ Deixa o tempo passar/ Na sombra do angelim/ Espera a roupa quarar", dizem os versos da canção "Com a Alma Lavada", do grupo baiano Ganhadeiras de Itapuã.
Assim cantavam as ganhadeiras na lagoa do Abaeté, no bairro de Itapuã, em Salvador. A história dessas mulheres escravizadas e libertas, que prestavam diversos serviços nas cidades brasileiras, e de suas descendentes foi contada no desfile da Viradouro, que venceu o Carnaval do Rio neste ano.
A escola desenvolveu a narrativa a partir das músicas do grupo baiano e mostrou na avenida um pouco do cotidiano dessas mulheres.
"Era um dia maravilhoso que a gente passava, as companheiras cantavam de lá (de um lado da lagoa), a gente respondia de cá", diz Maria, uma das Ganhadeiras, num especial da TVE Bahia disponível na internet.
As músicas que o grupo canta hoje foram ensinadas por suas ancestrais e passadas a outras gerações até o grupo Ganhadeiras de Itapuã ser criado formalmente, e as canções, gravadas.
Usando como base algumas das fontes que a dupla de carnavalescos Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon adotaram em sua pesquisa, a BBC News Brasil conta quem eram as chamadas "escravas de ganho" e as libertas que trabalhavam com elas na Salvador dos séculos 18 e 19, como viviam, o que faziam e como algumas de suas herdeiras acabaram formando um grupo musical.
Ala das baianas da Viradouro veio representando as ganhadeiras quituteiras, que vendiam iguarias, quitutes e doces típicosDireito de imagemRIOTUR
Image captionAla das baianas da Viradouro veio representando as ganhadeiras quituteiras, que vendiam iguarias, quitutes e doces típicos

Escravizadas e libertas ganhadeiras

No Brasil escravista, surgiu no cenário urbano a figura dos escravizados de ganho, que prestavam serviços na cidade. Eles davam a maior parte do dinheiro que ganhavam para seus senhores, mas ficavam com uma parcela — um pouco do lucro ou o excedente das vendas.
Podiam guardar esses recursos para usar como quisessem — e até comprar sua alforria. No entanto, historiadores dizem que isso não era comum, pois as alforrias custavam caro e dependiam da concordância dos proprietários.
Em sua tese de mestrado, intitulada A Mulher Negra da Bahia do Século 19, a pesquisadora Cecília Moreira Soares diz que o trabalho das mulheres escravizadas de ganho gerava bastante dinheiro para os proprietários, que podiam viver no ócio. Citando viajantes europeus que registraram o que viam na Salvador do século 19, ela diz que os senhores recuperavam em três anos o valor pago por esses escravos.
"E os viajantes criticavam a ganância dos senhores, que tornava 'tristíssima a condição dos que eram obrigados a ganhar diariamente uma certa quantia'", escreve a pesquisadora.
"Apesar disso, o tipo de relação certamente interessava às escravas, se não do ponto de vista econômico, porque viver longe do senhor tornava-as mais livres de seu controle. Além disso, o ganho era uma das principais portas para a conquista da alforria."
Censo de mulheres libertas de Freguesia de Santana, feito em 1849 e citado na tese de mestrado da pesquisadora Cecilia SoaresDireito de imagemREPRODUÇÃO
Image captionCenso de mulheres libertas de Freguesia de Santana, feito em 1849 e citado na tese de mestrado da pesquisadora Cecilia Soares
Entre as ganhadeiras, diz Soares, havia também "mulheres negras livres e libertas que lutavam para garantir o seu sustento e o de seus filhos".
No desfile da Viradouro estava representada uma mulher que os carnavalescos dizem ser uma das primeiras ganhadeiras de Itapuã a conquistar a alforria, Preta Maria.
"A líder genuína passou a vender nas ruas junto com suas camarás (irmãs de alma). Negra liberta, por isso de pés calçados, Preta Maria ajudou muitos escravos a conquistar a liberdade por meio do sistema de ganho", diz o texto que descreve o desfile entregue aos jurados.
As atividades das libertas e escravizadas eram as mesmas: lavar roupas, trabalhar como amas-de leite, vender quitutes, peixes, tecidos, objetos.
O grupo das Ganhadeiras de Itapuã canta sobre isso em As Ganhadeiras: "As ganhadeiras nascidas na praia de Itapuã/ Vendendo peixinhos baratos, pescados pela manhã/ Quem quer comprar os peixinhos, eu trago aqui pra escolher/ Deus lhe ajude a pescar pra você vender", cantam elas.
Os peixes e outras mercadorias eram vendidas nas ruas por essas mulheres, que circulavam com tabuleiros e cestas "habilmente equilibradas sobre as cabeças", como descreve Soares, ou em feiras e mercados em ruas de comércio. Também vendiam tecidos e bugigangas, mas isso era menos comum.
Essas atividades não eram tão estranhas a mulheres vindas da África, diz a pesquisadora, "pois em muitas sociedades africanas delegava-se às mulheres as tarefas de subsistência doméstica e circulação de gêneros de primeira necessidade".
Carro alegórico mostrando aguadeirosDireito de imagemDIVULGAÇÃO/LEANDRO LUCAS E RENATA XAVIER
Image captionNo início do século 19, a maioria dos moradores de Salvador dependia dos escravizados aguadeiros, que levavam água das fontes às casas
"Muitas ganhadeiras africanas eram provenientes da costa Ocidental da África, onde o pequeno comércio era tarefa essencialmente feminina, garantindo às mulheres papéis econômicos importantes."
E eram boas no que faziam: "Já no final do século 18, Vilhena (Luis dos Santos Vilhena, autor de A Bahia no Século 18) notou que elas praticamente monopolizavam a distribuição de peixes, carnes, verduras e até produtos de contrabando", escreve Soares.
As lavadeiras, às quais se referem muitas das músicas das Ganhadeiras de Itapuã, faziam seu trabalho num clima descontraído, descreviam viajantes. "Os encontros periódicos entre essas pessoas criavam e solidificavam laços de amizade e solidariedade, ajudando na construção de um universo social relativamente autônomo da negra dentro da escravidão", diz a pesquisadora.
Mariinha, presidente do grupo das Ganhadeiras, conta que cresceu numa casa de ganhadeiros. "Quando nasci, meu pai já vendia peixe, era um ganhador, minha mãe lavava roupa no Abaeté, era ganhadeira. Era um modo de viver", diz ela em documentário feito por uma aluna da Universidade Federal da Bahia em 2015.
Ela diz que os homens eram pescadores e as mulheres vendiam o produto. "Ajudavam os pescadores a puxar rede, chegavam em casa com a gamela, tratavam o peixe, assavam, enrolavam na folha de banana e levavam para vender nas feiras", diz ela.
Nas cidades, os homens escravizados ganhadores eram sapateiros, barbeiros, carregadores.
Pintura de Jean-Baptiste Debret mostra escravos de ganho trabalhando nas ruas do Rio de JaneiroDireito de imagemACERVO ESPAÇO OLAVO SETUBAL/ ITAÚ CULTURAL
Image captionServiços de barbeiros, cabelereiros, vendedoras - retratados nesse pintura de Jean-Baptiste Debret - eram formas de juntar dinheiro para a alforria

Cantando samba de mar aberto

A origem do grupo musical está em encontros de moradores do bairro que começaram a acontecer em dois terreiros conhecidos da região, de Dona Cabocla e Dona Mariinha. "Nós queríamos juntar todos que se conheciam para fazer uma lembrança de Itapuã antiga. Aí uns lembravam de uma história, contavam, uma cantava um samba. A gente queria alegria, era o que a gente estava procurando", descreve Mariinha no documentário da Universidade Federal da Bahia.
Depois virou uma banda, cujo nome homenageia as escravizadas de ganho. O grupo tem de crianças a idosos e mistura os cantos de lavadeiras com a experiência de músicos jovens.
Tocam o que chamam de "samba de mar aberto", termo criado por Amadeu Alves, diretor musical das Ganhadeiras, que descreve o estilo como uma mistura de ciranda, cantigas, maracatu e outras influências que os músicos tiveram.
"O canto vem desde a infância, de meu pai e minha mãe. Onde eu nasci tem uma festa em agosto que era de 15 dias de samba. E lavando roupa. Quanto mais eu cantava mais a roupa escorregava na minha mão", diz Maria de Xindó, cantora e matriarca do grupo, num vídeo gravado pela escola de samba.
"Minha mãe dizia quando não acha o que caça, pega no que acha. Eu não achei emprego, fui lavar de ganho. Lavava para nove famílias, dez com a de casa. Criei minhas filhas assim. Não lavo mais porque as filhas não deixam. Hoje a escrava branca é a máquina de lavar. Agora vivo à disposição das Ganhadeiras de Itapuã".
Professor Edgar Bom Jardim - PE