"Ô lava a roupa lavadeira do Abaeté/ Na sombra da aroeira/ Até quando Deus quiser/ Na sombra da aroeira/ Deixa o tempo passar/ Na sombra do angelim/ Espera a roupa quarar", dizem os versos da canção "Com a Alma Lavada", do grupo baiano Ganhadeiras de Itapuã.
Assim cantavam as ganhadeiras na lagoa do Abaeté, no bairro de Itapuã, em Salvador. A história dessas mulheres escravizadas e libertas, que prestavam diversos serviços nas cidades brasileiras, e de suas descendentes foi contada no desfile da Viradouro, que venceu o Carnaval do Rio neste ano.
- Presença maior de negros na mídia tem ‘mais a ver com consumo do que representatividade', diz Nei Lopes
- Iemanjá tem cor? Por que a divindade de origem africana se transformou em 'mulher branca' no Brasil
- A luta esquecida dos negros pelo fim da escravidão - BBC Brasil
A escola desenvolveu a narrativa a partir das músicas do grupo baiano e mostrou na avenida um pouco do cotidiano dessas mulheres.
"Era um dia maravilhoso que a gente passava, as companheiras cantavam de lá (de um lado da lagoa), a gente respondia de cá", diz Maria, uma das Ganhadeiras, num especial da TVE Bahia disponível na internet.
As músicas que o grupo canta hoje foram ensinadas por suas ancestrais e passadas a outras gerações até o grupo Ganhadeiras de Itapuã ser criado formalmente, e as canções, gravadas.
Usando como base algumas das fontes que a dupla de carnavalescos Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon adotaram em sua pesquisa, a BBC News Brasil conta quem eram as chamadas "escravas de ganho" e as libertas que trabalhavam com elas na Salvador dos séculos 18 e 19, como viviam, o que faziam e como algumas de suas herdeiras acabaram formando um grupo musical.
Escravizadas e libertas ganhadeiras
No Brasil escravista, surgiu no cenário urbano a figura dos escravizados de ganho, que prestavam serviços na cidade. Eles davam a maior parte do dinheiro que ganhavam para seus senhores, mas ficavam com uma parcela — um pouco do lucro ou o excedente das vendas.
Podiam guardar esses recursos para usar como quisessem — e até comprar sua alforria. No entanto, historiadores dizem que isso não era comum, pois as alforrias custavam caro e dependiam da concordância dos proprietários.
Em sua tese de mestrado, intitulada A Mulher Negra da Bahia do Século 19, a pesquisadora Cecília Moreira Soares diz que o trabalho das mulheres escravizadas de ganho gerava bastante dinheiro para os proprietários, que podiam viver no ócio. Citando viajantes europeus que registraram o que viam na Salvador do século 19, ela diz que os senhores recuperavam em três anos o valor pago por esses escravos.
"E os viajantes criticavam a ganância dos senhores, que tornava 'tristíssima a condição dos que eram obrigados a ganhar diariamente uma certa quantia'", escreve a pesquisadora.
"Apesar disso, o tipo de relação certamente interessava às escravas, se não do ponto de vista econômico, porque viver longe do senhor tornava-as mais livres de seu controle. Além disso, o ganho era uma das principais portas para a conquista da alforria."
Entre as ganhadeiras, diz Soares, havia também "mulheres negras livres e libertas que lutavam para garantir o seu sustento e o de seus filhos".
No desfile da Viradouro estava representada uma mulher que os carnavalescos dizem ser uma das primeiras ganhadeiras de Itapuã a conquistar a alforria, Preta Maria.
"A líder genuína passou a vender nas ruas junto com suas camarás (irmãs de alma). Negra liberta, por isso de pés calçados, Preta Maria ajudou muitos escravos a conquistar a liberdade por meio do sistema de ganho", diz o texto que descreve o desfile entregue aos jurados.
As atividades das libertas e escravizadas eram as mesmas: lavar roupas, trabalhar como amas-de leite, vender quitutes, peixes, tecidos, objetos.
O grupo das Ganhadeiras de Itapuã canta sobre isso em As Ganhadeiras: "As ganhadeiras nascidas na praia de Itapuã/ Vendendo peixinhos baratos, pescados pela manhã/ Quem quer comprar os peixinhos, eu trago aqui pra escolher/ Deus lhe ajude a pescar pra você vender", cantam elas.
Os peixes e outras mercadorias eram vendidas nas ruas por essas mulheres, que circulavam com tabuleiros e cestas "habilmente equilibradas sobre as cabeças", como descreve Soares, ou em feiras e mercados em ruas de comércio. Também vendiam tecidos e bugigangas, mas isso era menos comum.
Essas atividades não eram tão estranhas a mulheres vindas da África, diz a pesquisadora, "pois em muitas sociedades africanas delegava-se às mulheres as tarefas de subsistência doméstica e circulação de gêneros de primeira necessidade".
"Muitas ganhadeiras africanas eram provenientes da costa Ocidental da África, onde o pequeno comércio era tarefa essencialmente feminina, garantindo às mulheres papéis econômicos importantes."
E eram boas no que faziam: "Já no final do século 18, Vilhena (Luis dos Santos Vilhena, autor de A Bahia no Século 18) notou que elas praticamente monopolizavam a distribuição de peixes, carnes, verduras e até produtos de contrabando", escreve Soares.
As lavadeiras, às quais se referem muitas das músicas das Ganhadeiras de Itapuã, faziam seu trabalho num clima descontraído, descreviam viajantes. "Os encontros periódicos entre essas pessoas criavam e solidificavam laços de amizade e solidariedade, ajudando na construção de um universo social relativamente autônomo da negra dentro da escravidão", diz a pesquisadora.
Mariinha, presidente do grupo das Ganhadeiras, conta que cresceu numa casa de ganhadeiros. "Quando nasci, meu pai já vendia peixe, era um ganhador, minha mãe lavava roupa no Abaeté, era ganhadeira. Era um modo de viver", diz ela em documentário feito por uma aluna da Universidade Federal da Bahia em 2015.
Ela diz que os homens eram pescadores e as mulheres vendiam o produto. "Ajudavam os pescadores a puxar rede, chegavam em casa com a gamela, tratavam o peixe, assavam, enrolavam na folha de banana e levavam para vender nas feiras", diz ela.
Nas cidades, os homens escravizados ganhadores eram sapateiros, barbeiros, carregadores.
Cantando samba de mar aberto
A origem do grupo musical está em encontros de moradores do bairro que começaram a acontecer em dois terreiros conhecidos da região, de Dona Cabocla e Dona Mariinha. "Nós queríamos juntar todos que se conheciam para fazer uma lembrança de Itapuã antiga. Aí uns lembravam de uma história, contavam, uma cantava um samba. A gente queria alegria, era o que a gente estava procurando", descreve Mariinha no documentário da Universidade Federal da Bahia.
Depois virou uma banda, cujo nome homenageia as escravizadas de ganho. O grupo tem de crianças a idosos e mistura os cantos de lavadeiras com a experiência de músicos jovens.
Tocam o que chamam de "samba de mar aberto", termo criado por Amadeu Alves, diretor musical das Ganhadeiras, que descreve o estilo como uma mistura de ciranda, cantigas, maracatu e outras influências que os músicos tiveram.
"O canto vem desde a infância, de meu pai e minha mãe. Onde eu nasci tem uma festa em agosto que era de 15 dias de samba. E lavando roupa. Quanto mais eu cantava mais a roupa escorregava na minha mão", diz Maria de Xindó, cantora e matriarca do grupo, num vídeo gravado pela escola de samba.
"Minha mãe dizia quando não acha o que caça, pega no que acha. Eu não achei emprego, fui lavar de ganho. Lavava para nove famílias, dez com a de casa. Criei minhas filhas assim. Não lavo mais porque as filhas não deixam. Hoje a escrava branca é a máquina de lavar. Agora vivo à disposição das Ganhadeiras de Itapuã".
0 >-->Escreva seu comentários >-->:
Postar um comentário
Amigos (as) poste seus comentarios no Blog