terça-feira, 3 de março de 2020

Coronavírus: por que há mais homens que mulheres infectados

Homem fumandoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionUm estudo revelou que a taxa de mortalidade por coronavírus entre os homens é de 2,8%, contra 1,7% nas mulheres
No início de fevereiro, quando as autoridades chinesas já estavam combatendo o surto de coronavírus há um mês, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças da China (CCDC) realizou seu primeiro estudo com base em dados de pacientes.
A amostra era composta por 138 pessoas que haviam sido hospitalizadas com covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. A idade média era de 56 anos — e 54,3% deles eram homens.
Semanas depois, quando o mesmo centro conduziu um estudo mais amplo, analisando os prontuários médicos de 72.314 pacientes, os dados mostraram uma conclusão semelhante.
Dos casos confirmados, 51% eram homens — mas o que chamou a atenção dos especialistas é que a taxa de mortalidade também era maior para o sexo masculino: 2,8% para os homens, e 1,7% para as mulheres.
MédicoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionAté o momento, ainda não há vacina contra o novo coronavírus
Parte da conclusão dos médicos é que a infecção pelo novo coronavírus "tem maior probabilidade de afetar homens mais velhos com algum tipo de doença prévia".
Mais de 82 mil casos da doença foram registrados ao redor do mundo, e 2,8 mil pessoas morreram — sendo a maior parte na China.

Questão hormonal?

Para Sabra Klein, do departamento de microbiologia molecular e imunologia da Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, o estrogênio — hormônio sexual feminino — pode ser a explicação para as diferentes respostas à doença.
"O estrogênio pode estimular aspectos da imunidade que são importantes para eliminar uma infecção viral e responder bem às vacinas", diz a cientista à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
Com base nessas informações, Klein levanta a hipótese de que o estrogênio seja um fator que contribui para a maior imunidade do sexo feminino no surto atual de coronavírus.
Mas como o surto é recente, ainda não há pesquisas que demonstrem isso de forma definitiva.
"Vários estudos realizados com camundongos infectados pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave (Sars) mostraram que o estrogênio contribuiu sem dúvida para a maneira como as fêmeas controlavam melhor a infecção do que os machos."
Isso também aconteceu com o vírus da gripe comum.
Pessoa lavando as mãosDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionComo medida preventiva, as autoridades de saúde pedem para as pessoas lavarem as mãos constantemente
Em uma pesquisa realizada em células coletadas da mucosa do nariz de homens e mulheres, os pesquisadores descobriram que o estrogênio reduz bastante a quantidade de vírus da gripe que se replica nas células infectadas.
Isso sugere um possível efeito protetor do estrogênio no combate ao vírus.
Para Janine Austin Clayton, diretora associada de pesquisa em Saúde da Mulher no Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, essa pesquisa mostrou "a importância de estudar as células de homens e mulheres e considerar o sexo como uma variável biológica ao coletar e analisar os dados das células".
Além disso, as mulheres tendem a apresentar maior imunidade do que os homens após infecções virais, incluindo a gripe, o que poderia deixar a população feminina mais preparada para uma epidemia como esta.

Fatores culturais e sociais

Ambas as cientistas concordam, no entanto, que há vários fatores sociais e culturais que também podem estar fazendo com que a taxa de mortalidade dos homens seja mais alta.
Homem com máscaraDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionO coronavírus é uma grande família de vírus, mas sabe-se que apenas seis (o novo seria o sétimo) infectam seres humanos
Na China, onde 99% dos casos foram registrados até agora, a porcentagem de homens que fumam, de acordo com dados coletados pelo jornal americano The New York Times, é superior a 50%, em comparação com 2% das mulheres.
E como o coronavírus ataca os pulmões, causando pneumonia, o tabagismo aumenta o risco de complicações quando há uma infecção pelo novo coronavírus.
Os pacientes infectados apresentam vários sintomas, incluindo falta de ar, febre, tosse seca e dor muscular.
Austin Clayton lembra ainda que não devemos esquecer as diferenças de gênero, ou seja, as diferenças entre homens e mulheres em relação a comportamentos e papéis sociais. Fatores que não têm nada a ver com a biologia.
Uma grande diferença de gênero se traduz, por exemplo, no percentual de homens e mulheres que vão ao médico quando estão doentes.
Coronavírus no microscópioDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionÉ assim que o coronavírus é visto no microscópio
"De acordo com um estudo dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, as mulheres americanas são 33% mais propensas que os homens a procurar um médico quando se sentem mal", explica.

Doenças prévias

Outros fatores que têm impacto direto na taxa de mortalidade dos homens infectados pelo novo coronavírus são a existência de doenças prévias e a idade.
Há uma incidência maior de diabetes tipo 2 entre os homens — e a pressão arterial deles costuma ser mais alta que a das mulheres.
"Nos seres humanos, embora as diferenças na imunidade possam ser um fator que contribui para responder à questão de por que as taxas de mortalidade são mais baixas nas mulheres do que nos homens, também devemos levar em conta doenças associadas a um risco maior de morte por coronavírus", diz Klein.
Por exemplo, as doenças cardiovasculares são um fator de risco "associado a piores resultados no atual surto de coronavírus, e os homens podem apresentar mais doenças cardíacas do que as mulheres nas faixas etárias em que as pessoas morrem".
De fato, as taxas de mortalidade aumentam gradualmente de acordo com a idade: para pessoas com 40 anos, é de 0,4%; de 50 anos, 1,3%; de 60 anos, 3,6%; de 70 anos, 8%; e de 80 ou mais, 14,8%.
A pesquisa do CCDC diz que cerca de 80,9% das novas infecções por coronavírus podem ser classificadas como leves, 13,8% como graves e apenas 4,7% como críticas, o que inclui insuficiência respiratória, falência múltipla dos órgãos e sepse.
No entanto, também há um inconveniente em ter um sistema imunológico mais forte.
"Embora a melhor resposta imune das mulheres contribua para uma eliminação mais rápida dos micróbios, essas respostas robustas também podem contribuir para uma maior suscetibilidade a doenças inflamatórias e autoimunes entre as mulheres", diz Janine Austin Clayton à BBC News Mundo.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Quem eram as ganhadeiras, mulheres escravizadas e libertas homenageadas por vencedora do Carnaval do Rio

LavadeirasDireito de imagemRAPHAEL DAVID/RIOTUR
"Ô lava a roupa lavadeira do Abaeté/ Na sombra da aroeira/ Até quando Deus quiser/ Na sombra da aroeira/ Deixa o tempo passar/ Na sombra do angelim/ Espera a roupa quarar", dizem os versos da canção "Com a Alma Lavada", do grupo baiano Ganhadeiras de Itapuã.
Assim cantavam as ganhadeiras na lagoa do Abaeté, no bairro de Itapuã, em Salvador. A história dessas mulheres escravizadas e libertas, que prestavam diversos serviços nas cidades brasileiras, e de suas descendentes foi contada no desfile da Viradouro, que venceu o Carnaval do Rio neste ano.
A escola desenvolveu a narrativa a partir das músicas do grupo baiano e mostrou na avenida um pouco do cotidiano dessas mulheres.
"Era um dia maravilhoso que a gente passava, as companheiras cantavam de lá (de um lado da lagoa), a gente respondia de cá", diz Maria, uma das Ganhadeiras, num especial da TVE Bahia disponível na internet.
As músicas que o grupo canta hoje foram ensinadas por suas ancestrais e passadas a outras gerações até o grupo Ganhadeiras de Itapuã ser criado formalmente, e as canções, gravadas.
Usando como base algumas das fontes que a dupla de carnavalescos Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon adotaram em sua pesquisa, a BBC News Brasil conta quem eram as chamadas "escravas de ganho" e as libertas que trabalhavam com elas na Salvador dos séculos 18 e 19, como viviam, o que faziam e como algumas de suas herdeiras acabaram formando um grupo musical.
Ala das baianas da Viradouro veio representando as ganhadeiras quituteiras, que vendiam iguarias, quitutes e doces típicosDireito de imagemRIOTUR
Image captionAla das baianas da Viradouro veio representando as ganhadeiras quituteiras, que vendiam iguarias, quitutes e doces típicos

Escravizadas e libertas ganhadeiras

No Brasil escravista, surgiu no cenário urbano a figura dos escravizados de ganho, que prestavam serviços na cidade. Eles davam a maior parte do dinheiro que ganhavam para seus senhores, mas ficavam com uma parcela — um pouco do lucro ou o excedente das vendas.
Podiam guardar esses recursos para usar como quisessem — e até comprar sua alforria. No entanto, historiadores dizem que isso não era comum, pois as alforrias custavam caro e dependiam da concordância dos proprietários.
Em sua tese de mestrado, intitulada A Mulher Negra da Bahia do Século 19, a pesquisadora Cecília Moreira Soares diz que o trabalho das mulheres escravizadas de ganho gerava bastante dinheiro para os proprietários, que podiam viver no ócio. Citando viajantes europeus que registraram o que viam na Salvador do século 19, ela diz que os senhores recuperavam em três anos o valor pago por esses escravos.
"E os viajantes criticavam a ganância dos senhores, que tornava 'tristíssima a condição dos que eram obrigados a ganhar diariamente uma certa quantia'", escreve a pesquisadora.
"Apesar disso, o tipo de relação certamente interessava às escravas, se não do ponto de vista econômico, porque viver longe do senhor tornava-as mais livres de seu controle. Além disso, o ganho era uma das principais portas para a conquista da alforria."
Censo de mulheres libertas de Freguesia de Santana, feito em 1849 e citado na tese de mestrado da pesquisadora Cecilia SoaresDireito de imagemREPRODUÇÃO
Image captionCenso de mulheres libertas de Freguesia de Santana, feito em 1849 e citado na tese de mestrado da pesquisadora Cecilia Soares
Entre as ganhadeiras, diz Soares, havia também "mulheres negras livres e libertas que lutavam para garantir o seu sustento e o de seus filhos".
No desfile da Viradouro estava representada uma mulher que os carnavalescos dizem ser uma das primeiras ganhadeiras de Itapuã a conquistar a alforria, Preta Maria.
"A líder genuína passou a vender nas ruas junto com suas camarás (irmãs de alma). Negra liberta, por isso de pés calçados, Preta Maria ajudou muitos escravos a conquistar a liberdade por meio do sistema de ganho", diz o texto que descreve o desfile entregue aos jurados.
As atividades das libertas e escravizadas eram as mesmas: lavar roupas, trabalhar como amas-de leite, vender quitutes, peixes, tecidos, objetos.
O grupo das Ganhadeiras de Itapuã canta sobre isso em As Ganhadeiras: "As ganhadeiras nascidas na praia de Itapuã/ Vendendo peixinhos baratos, pescados pela manhã/ Quem quer comprar os peixinhos, eu trago aqui pra escolher/ Deus lhe ajude a pescar pra você vender", cantam elas.
Os peixes e outras mercadorias eram vendidas nas ruas por essas mulheres, que circulavam com tabuleiros e cestas "habilmente equilibradas sobre as cabeças", como descreve Soares, ou em feiras e mercados em ruas de comércio. Também vendiam tecidos e bugigangas, mas isso era menos comum.
Essas atividades não eram tão estranhas a mulheres vindas da África, diz a pesquisadora, "pois em muitas sociedades africanas delegava-se às mulheres as tarefas de subsistência doméstica e circulação de gêneros de primeira necessidade".
Carro alegórico mostrando aguadeirosDireito de imagemDIVULGAÇÃO/LEANDRO LUCAS E RENATA XAVIER
Image captionNo início do século 19, a maioria dos moradores de Salvador dependia dos escravizados aguadeiros, que levavam água das fontes às casas
"Muitas ganhadeiras africanas eram provenientes da costa Ocidental da África, onde o pequeno comércio era tarefa essencialmente feminina, garantindo às mulheres papéis econômicos importantes."
E eram boas no que faziam: "Já no final do século 18, Vilhena (Luis dos Santos Vilhena, autor de A Bahia no Século 18) notou que elas praticamente monopolizavam a distribuição de peixes, carnes, verduras e até produtos de contrabando", escreve Soares.
As lavadeiras, às quais se referem muitas das músicas das Ganhadeiras de Itapuã, faziam seu trabalho num clima descontraído, descreviam viajantes. "Os encontros periódicos entre essas pessoas criavam e solidificavam laços de amizade e solidariedade, ajudando na construção de um universo social relativamente autônomo da negra dentro da escravidão", diz a pesquisadora.
Mariinha, presidente do grupo das Ganhadeiras, conta que cresceu numa casa de ganhadeiros. "Quando nasci, meu pai já vendia peixe, era um ganhador, minha mãe lavava roupa no Abaeté, era ganhadeira. Era um modo de viver", diz ela em documentário feito por uma aluna da Universidade Federal da Bahia em 2015.
Ela diz que os homens eram pescadores e as mulheres vendiam o produto. "Ajudavam os pescadores a puxar rede, chegavam em casa com a gamela, tratavam o peixe, assavam, enrolavam na folha de banana e levavam para vender nas feiras", diz ela.
Nas cidades, os homens escravizados ganhadores eram sapateiros, barbeiros, carregadores.
Pintura de Jean-Baptiste Debret mostra escravos de ganho trabalhando nas ruas do Rio de JaneiroDireito de imagemACERVO ESPAÇO OLAVO SETUBAL/ ITAÚ CULTURAL
Image captionServiços de barbeiros, cabelereiros, vendedoras - retratados nesse pintura de Jean-Baptiste Debret - eram formas de juntar dinheiro para a alforria

Cantando samba de mar aberto

A origem do grupo musical está em encontros de moradores do bairro que começaram a acontecer em dois terreiros conhecidos da região, de Dona Cabocla e Dona Mariinha. "Nós queríamos juntar todos que se conheciam para fazer uma lembrança de Itapuã antiga. Aí uns lembravam de uma história, contavam, uma cantava um samba. A gente queria alegria, era o que a gente estava procurando", descreve Mariinha no documentário da Universidade Federal da Bahia.
Depois virou uma banda, cujo nome homenageia as escravizadas de ganho. O grupo tem de crianças a idosos e mistura os cantos de lavadeiras com a experiência de músicos jovens.
Tocam o que chamam de "samba de mar aberto", termo criado por Amadeu Alves, diretor musical das Ganhadeiras, que descreve o estilo como uma mistura de ciranda, cantigas, maracatu e outras influências que os músicos tiveram.
"O canto vem desde a infância, de meu pai e minha mãe. Onde eu nasci tem uma festa em agosto que era de 15 dias de samba. E lavando roupa. Quanto mais eu cantava mais a roupa escorregava na minha mão", diz Maria de Xindó, cantora e matriarca do grupo, num vídeo gravado pela escola de samba.
"Minha mãe dizia quando não acha o que caça, pega no que acha. Eu não achei emprego, fui lavar de ganho. Lavava para nove famílias, dez com a de casa. Criei minhas filhas assim. Não lavo mais porque as filhas não deixam. Hoje a escrava branca é a máquina de lavar. Agora vivo à disposição das Ganhadeiras de Itapuã".
Professor Edgar Bom Jardim - PE

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Os bastidores e resultados da corrida de cientistas brasileiros para sequenciar coronavírus em tempo recorde


Com jalecos e toucas, Claudia Gonçalves, Jaqueline Goes e Claudio Sacchi sorriem para foto de dentro de laboratórioDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionClaudia Gonçalves, Jaqueline Goes e Claudio Sacchi, parte da equipe brasileira que conseguiu sequenciar genoma de coronavírus em aproximadamente 48 horas após confirmação de diagnóstico
Na terça-feira de carnaval, enquanto foliões pulavam pelas ruas e músicos esquentavam a percussão por todo o país, um grupo de cientistas brasileiros se apressou para um outro tipo de agito.
Diante da notícia de que um caso suspeito de infecção por coronavírus em solo brasileiro poderia ser confirmado em breve, pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz (IAL) e do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP), ambas instituições públicas sediadas em São Paulo, correram contra o tempo para preparar equipamentos e laboratório com o objetivo de sequenciar o genoma do vírus coletado em paciente internado na capital paulista. O diagnóstico do homem de 61 anos foi confirmado na quarta-feira (26).

"Em média, os países estão conseguindo fazer o sequenciamento em 15 dias. Queríamos fazer em 24 horas, bater o recorde, mas não funcionou tudo (no processo). Fizemos em 48 horas, como o Instituto Pasteur (na França)", contou à BBC News Brasil Ester Cerdeira Sabino, pesquisadora e professora do IMT-USP.
"Nas epidemias anteriores, como da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) ou da Respiratória do Oriente Médio (Mers), você até sequenciava (o vírus), mas só tinha o dado alguns meses depois. Hoje, estamos conseguindo fazer o sequenciamento em tempo real, enquanto a epidemia acontece", aponta, atribuindo a rapidez a um barateamento e maior conhecimento das técnicas.
"A capacidade de sequenciar rapidamente, principalmente no início de uma epidemia, pode ajudar na tomada de decisões. Vamos supor que apareça outro caso em São Paulo: se você tem a sequência, você pode responder mais rapidamente se o vírus já está circulando a nível local independente de viagens no exterior (os chamados casos autóctones)."
Sabino diz que conquistas na ciência como essa são como "tijolos" que vão se juntando, então não é possível dizer de imediato que "construção" esses tijolos vão formar — mas pode ser desde uma vacina ao melhor planejamento de uma cidade diante de uma eventual epidemia. Identificar as características genéticas de um vírus como esse, além de comparar a cepa coletada no Brasil com as de outros países do mundo, é como juntar pistas cronológicas e geográficas no caminho de transmissão do patógeno. Também é uma forma de registrar mutações, pontos fracos e fortes do vírus.
Mão com caneta em cima de papel com letras A G C T indicando blocos de sequências genéticasDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionO material genético de um vírus dá pistas sobre seu trajeto de transmissão
Os resultados divulgados pela equipe brasileira nesta sexta-feira (28) indicam por exemplo que, das dezenas de amostras do novo tipo de coronavírus já analisadas em todo o mundo, a maior compatibilidade do material genético do vírus encontrado no paciente internado em São Paulo foi com um vírus sequenciado na Bavária, Alemanha. Isto é um indicativo, mas ainda não a confirmação, de que a cepa do vírus em questão teve origem na China, passou pela Alemanha, Itália, até chegar ao Brasil. A possível transmissão da Alemanha para a Itália é um hipótese nova trazida pela equipe brasileira.
A região da Lombardia, no norte da Itália, onde o paciente brasileiro infectado esteve, até agora não teve amostras sequenciadas por equipes ou institutos locais — ao menos não publicamente.
Já em relação ao primeiro sequenciamento genético do novo tipo de coronavírus, feito em janeiro por pesquisadores na China, o material analisado pelos brasileiros tem três mutações — duas em comum com o encontrado na Alemanha. O sequenciamento realizado em São Paulo foi comparado com 127 genomas completos do coronavírus sequenciados em 17 países diferentes.
"A terceira mutação é uma mutação única, não encontrada na sequência mais próxima, que é a sequência da Alemanha. Então, provavelmente é uma mutação que já aconteceu na transmissão para o paciente brasileiro", explica Jaqueline Goes de Jesus, bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) em nível de pós-doutorado no IMT-USP.
É normal que, quando o vírus está se "instalando" no corpo de um novo hospedeiro (como um paciente infectado), haja erros no processo de replicação de seu material genético. São mutações que, ao acaso, podem causar tanto uma vantagem adaptativa quanto deixar o patógeno menos infeccioso.
"Alguns vírus são mais estáveis e outros, como os respiratórios, acabam mutando muito. É o que acontece com o vírus da gripe: todo ano a gente tem uma vacina nova, porque há muitas mutações", explica Goes de Jesus.
As brasileiras, assim como os franceses do Pasteur, indicam que o novo tipo de coronavírus surgido na China ainda é bastante homogêneo — portanto, não precisou passar por muitas mutações para se adaptar e espalhar. Há indicações também de que, ao contrário do Sars ou Mers, este coronavírus tem grande capacidade de transmissão e baixa letalidade.

Como foi sequenciamento no Brasil

Na quarta-feira (26), após a confirmação por exames do diagnóstico de coronavírus, amostras do paciente brasileiro foram enviadas ao Instituto Adolfo Lutz, seguindo protocolo do Ministério da Saúde.
Assim, na quarta-feira de manhã, cinco pesquisadores começaram a colocar a mão na massa no sequenciamento, em um laboratório do instituto.
Em linhas gerais, há a extração do RNA do vírus; sua transformação no chamado DNA complementar; depois a replicação exponencial de cópias deste DNA, através da chamada reação em cadeia da polimerase. Isso tudo acontece a nível molecular dentro de um líquido transparente.
Em seguida, vem a fase da leitura do material genético. Nela, é usado um equipamento pequeno e com aparência de pen-drive, chamado de sequenciador.
No processo, os brasileiros contaram com a colaboração remota de pesquisadores das universidades de Birmingham, Edinburgh e Oxford, no Reino Unido.
A leitura do material foi finalizada na manhã desta sexta-feira e logo publicada no Virological.org, um fórum mundial de discussão para virologistas, epidemiologistas e especialistas em saúde publica.
"No passado, os cientistas gostavam de guardar esse tipo de dado até publicá-los em alguma revista científica. Mas hoje, o consenso é de que, durante uma epidemia, você não deve guardar as sequências, e sim torná-las públicas imediatamente", explica Ester Cerdeira Sabino.
Jaqueline Goes de Jesus diz que, tecnicamente, a sequência obtida já tem 96% de cobertura, o que configura um genoma completo. Mas a equipe pretende completar esse sequenciamento e estar de prontidão para a análise de eventuais novos casos confirmados no Brasil.
A pesquisadora faz parte de um projeto que tem justamente o objetivo de monitorar e responder em tempo real a epidemias, o Brazil-UK Centre for Arbovirus Discovery, Diagnosis, Genomics and Epidemiology (CADDE), que conta com recursos da Fapesp e do Medical Research Council (MRC). Nascido há um ano, o centro de pesquisas pretende trabalhar não só com coronavírus como o atual como também com arbovírus como dengue e chicungunha.
Professor Edgar Bom Jardim - PE