quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

O que pode mudar com saída do Brasil de 'aliança antiaborto'





Mulher segura teste de gravidez

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

O aborto é permitido no Brasil em três casos: gravidez por estupro, risco à vida da mulher e feto anencéfalo

O governo brasileiro confirmou seu desligamento da Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família, uma aliança conservadora formada por 37 países e que se posiciona pelo direito à vida, contra o aborto e pelo reconhecimento da família como base da sociedade.

Em nota, os ministérios das Relações Exteriores, da Saúde, das Mulheres, dos Direitos Humanos e da Cidadania afirmaram que o governo considera que o documento possui "entendimento limitativo dos direitos sexuais e reprodutivos e do conceito de família".

Segundo as pastas, esse entendimento pode comprometer a plena implementação da legislação nacional sobre o tema, incluindo os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).

Ao mesmo tempo, o governo comunicou à Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e à Comissão Interamericana de Mulheres da OEA (Organização dos Estados Americanos) a decisão de se associar ao Compromisso de Santiago e à Declaração do Panamá - entendimentos criados para a promoção da igualdade e da equidade de gênero

O que é o Consenso de Genebra?

O grupo foi criado pelo ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump em outubro de 2020, quando 32 países assinaram a declaração em uma cerimônia virtual.

O entendimento foi reafirmado em 2021 e, antes da saída do Brasil, já contava com 37 nações integrantes.

O grupo buscava uniformizar a atuação de governos conservadores em votações sobre a temática dos direitos reprodutivos, educação sexual, legalização do aborto e defesa da família em órgão internacionais


A declaração de sete pontos enfatiza, entre outras coisas, a união dos países em torno da ideia de que o aborto não "deve ser promovido como método de planejamento familiar" e que "quaisquer medidas ou mudanças relacionadas ao aborto dentro do sistema de saúde só podem ser determinadas em nível nacional ou local de acordo com o processo legislativo nacional".

O texto cita em vários momentos o comprometimento das nações em promover o "mais alto padrão de saúde", além de segurança e direitos iguais para as mulheres, mas sem incluir o aborto.

Os signatários ainda reafirmam que "não há direito internacional ao aborto, nem qualquer obrigação internacional por parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto".

A iniciativa foi liderada pelos Estados Unidos ao lado de Brasil, Egito, Hungria, Indonésia e Uganda.

Na cerimônia virtual de assinatura do documento, em 2020, o Brasil foi representado pelos então ministros das Relações Exteriores e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo de Jair Bolsonaro, Ernesto Araújo e Damares Alves.

Em 2021, após a eleição de Joe Biden, os EUA deixaram a iniciativa e, a partir dali, o Brasil assumiu maior protagonismo entre o grupo.

Marcha pela legalização do aborto na América Latina no Rio de Janeiro em 2018

CRÉDITO,FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

Legenda da foto,

Marcha pela legalização do aborto na América Latina no Rio de Janeiro em 2018

O que pode mudar com o desligamento da declaração?

A BBC News Brasil consultou pessoas envolvidas com o tema - favoráveis e contrárias à assinatura do Consenso de Genebra - para entender quais podem ser os impactos da saída do Brasil.

Para a antropóloga Lia Zanotta Machado, professora da Universidade de Brasília (UnB) e defensora da ampliação do acesso ao aborto no país, o desligamento será positivo para a ampliação dos direitos femininos.

"A saída representa um alívio para que os direitos das mulheres e a interrupção da gravidez dentro do que postulam o Código Penal e o STF (Supremo Tribunal Federal) voltem a ser encaminhados no Brasil sem todas as dificuldades impostas nos últimos anos", diz.

"Estar fora da aliança contra o aborto é estar fora dos movimentos ultraconservadores, que são conservadores não só nos costumes, mas também em termos de justiça social."

Segundo Zanotta, após se juntar ao grupo, o governo brasileiro passou a aprovar diversas portarias que dificultaram o acesso das mulheres ao aborto mesmo nos casos em que o procedimento é permitido - quando a gravidez é decorrente de estupro, quando há risco à vida da gestante ou quando há um diagnóstico de anencefalia do feto.

Entre elas está a portaria GM/MS nº 2.561, de 23 de setembro de 2020, que estabelecia a necessidade de o médico comunicar o aborto à autoridade policial responsável.

O texto também destacava que era preciso preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro, como fragmentos do embrião ou feto. Ela foi revogada pelo Ministério da Saúde nesta semana.

Para a antropóloga, o desligamento é também "um sinal verde" para que o STF possa desengavetar uma ação que pede a legalização total do aborto nas 12 primeiras semanas de gestação, a ADPF 442.

A saída do Brasil do grupo deve significar ainda uma mudança de posição em organismos internacionais - o que, para a especialista, "é um alívio".

"As extremas-direitas estão forçando posições cada vez mais conservadoras nos organismos internacionais, o que cria cada vez mais condições para impedir os direitos e a dignidade das mulheres", afirmou à BBC.

Mobilização contra o aborto em Brasília

CRÉDITO,ABR

Legenda da foto,

Mobilização contra o aborto em Brasília

Já para a advogada Angela Gandra Martins, ex-secretária Nacional da Família do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro, a saída do Brasil do Consenso trará prejuízos para o trabalho na área de direitos humanos e desenvolvimento familiar.

"O Consenso deu origem a uma plataforma de debate e intercâmbio em termos de direitos humanos, de forma positiva e compositiva", afirma a professora da Universidade Mackenzie, que participou dos esforços de coordenação e redação da declaração e afirma que vários marcos positivos foram alcançados pelos países do grupo.

Para ela, o desligamento deve impactar diretamente no funcionamento de uma série de projetos impulsionados pela aliança, principalmente daqueles relacionados à promoção do desenvolvimento familiar e da co-responsabilidade no lar como forma de apoio às mulheres. "Nós vamos voltar às políticas familiares de assistencialismo. Mas a família precisa de autonomia, não de assistencialismo", diz.

Além disso, a professora de Direito acredita que a decisão do novo governo pode levar à "estaca zero na autonomia humana". "Estão planejando acabar com tudo que o movimento pró-vida fez. Não exigir boletim de ocorrência para a realização de um aborto em caso de esturpo é uma incoerência jurídica", diz.

"Eles vão lutar por legalizar aborto no Brasil, mas vai haver muita oposição."

Gandra Martins ainda recusa a ideia de que o Consenso de Genebra seja uma "aliança antiaborto". Segundo ela, o documento trata de muitas questões além dessa, tal como a defesa da projeção da mulher na sociedade, a formação de novas famílias e a defesa da vida de forma geral.

"O aborto não é padrão de saúde - para muitas mulheres que abortaram, foi na verdade um déficit para a saúde", diz.

Para a deputada federal Chris Tonietto (PL), campeã de proposições de temas relacionados ao aborto na Câmara no período analisado que se define como pró-vida e pró-família, a mudança de governo e a retirada do Brasil da aliança é "um retrocesso gigantesco".

"O novo governo deixou claro, mais uma vez, que não envidará esforços para flexibilizar o aborto no país, além de ter demonstrado seu compromisso com o avanço da cultura da morte, o que contraria a vontade da esmagadora maioria da população brasileira", afirmou a deputada à BBC.

Algumas das últimas pesquisas feitas sobre o tema mostram um crescimento na aceitação da população em relação ao aborto da forma como ele está previsto na lei atualmente, ou seja, legal apenas em casos de estupro, risco à vida da gestante ou diagnóstico de anencefalia do feto, do que à ampliação do direito.

Uma pesquisa do Datafolha divulgada no início de junho mostrou que 39% dos brasileiros entrevistados consideram que a lei deve permanecer como está, enquanto 26% disseram acreditar que o aborto deve ser permitido em mais situações ou em todas as situações.

Por outro lado, 32% disseram concordar com a total restrição da interrupção da gravidez no país. Em dezembro de 2018, a taxa era de 41%.

Em termos globais, a edição de 2021 do estudo Global Views on Abortion, da Ipsos, classificou o Brasil como o quinto país menos favorável à legalização total do aborto em um conjunto de 27 nações analisadas.

Na pesquisa, 31% dos brasileiros disseram ser favoráveis à descriminalização do aborto sempre que for o desejo da mulher — a média nos países pesquisado foi de 46%.

  • Julia Braun
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Professor Edgar Bom Jardim - PE

0 >-->Escreva seu comentários >-->:

Postar um comentário

Amigos (as) poste seus comentarios no Blog