quinta-feira, 19 de novembro de 2020

ENTREVISTA: ‘PARTIDOS BRASILEIROS NÃO ESTÃO PREPARADOS PARA TRABALHAR QUESTÃO RACIAL EM ELEIÇÕES’

Cientistas políticos Luiz Augusto Campos e Carlos Machado falam de livro em que apontam partidos como principais gargalos para a eleição de negros.




OS PARTIDOS POLÍTICOS são o principal entrave à eleição de candidatos negros, afirmam os cientistas políticos Luiz Augusto Campos e Carlos Machado, que há cinco anos se debruçam sobre a relação entre raça e o sistema político e eleitoral brasileiro. E é sobre os partidos que há – e deve haver – pressão social para que surjam mudanças.

O resultado das pesquisas está compilado em “Raça e eleições no Brasil”, da editora Zouk, anunciado como a primeira obra no país a se dedicar exclusivamente ao assunto e já em pré-venda. Sobre os achados das pesquisas que resultaram no livro, Campos e Machado conversaram com o Intercept às vésperas da eleição municipal.

É nas eleições proporcionais, como as de vereadores, que está o foco da pesquisa. “A lógica aí é meio parecida à desses esquemas de pirâmide. A base empurra o topo, mas, na verdade, não tem nenhuma chance de se eleger”, Campos compara. “No sistema proporcional, uma candidatura tem que ter uma quantidade muito expressiva de votos para se eleger. E, para isso, tem que acumular uma série de recursos dos mais diversos.”

O que são eleições proporcionais?
  • As eleições proporcionais são usadas no Brasil para eleger vereadores e deputados estaduais, distritais e federais. A definição dos eleitos depende de um número chamado de quociente eleitoral, que é a divisão dos votos válidos pelo número de cadeiras em disputa no Poder Legislativo. É a partir do quociente eleitoral, e não necessariamente dos votos de um candidato, que se definem os eleitos. Este vídeo do G1 ajuda a entender melhor.

Recursos, aí, incluem dinheiro para campanha, acesso ao tempo na propaganda de televisão ou até mesmo segurança pessoal. Assim, pouco adianta que a maioria dos candidatos seja negra, como ocorreu pela primeira vez em 2020. Eles provavelmente serão a minoria entre os eleitos.

“Um número muito limitado de candidatos concentra a oportunidade de aparecer ao eleitor, seja em horário de televisão, santinho ou mesmo de circular no espaço urbano onde as eleições vão acontecer. Essa disputa profundamente desigual reflete desigualdades sociológicas entre brancos e negros”, Campos explica. As elites partidárias são, quase sempre, brancas – e são elas que controlam, no Brasil, a definição das candidaturas e a distribuição dos recursos para as campanhas.

A desigualdade é tão explícita que o Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, responsável por definir as regras para as eleições no Brasil, resolveu obrigar os partidos a dividirem o dinheiro do fundo eleitoral (que financia as campanhas políticas) de maneira proporcional à quantidade de candidatos brancos e não-brancos.

Para os cientistas, é um primeiro passo, mas “enquanto a gente não falar em cota nas listas partidárias [de candidatos], não vamos conseguir garantir que partidos grandes, em pleitos específicos, lancem candidatos [não brancos]”, avalia Campos.

Livro é tido como o primeiro no país a tratar exclusivamente do tema.

“O estado brasileiro é gerido por uma representação política composta basicamente por homens brancos, e produz políticas públicas que atuam, para o bem e para o mal, sobre a população negra. É ela o principal alvo do braço repressivo do estado. Então temos uma espécie de democracia que funciona de uma maneira racializada e invertida, com homens brancos discutindo, debatendo e produzindo serviços e repressão para homens negros e mulheres negras”, ele afirma.

“Não há nenhuma garantia de que os representantes eleitos irão espelhar o que é a sociedade. Isso demanda um componente, que eu tendo a ver como mais democrático, que é pressão popular para que isso ocorra. O processo que temos visto nos últimos anos, a luta dos movimentos sociais, do movimento negro, para cobrar uma maior presença de candidaturas negras, de financiamento [para elas], isso tudo diz respeito a esse processo. O aspecto democrático decorre disso, não da simples realização das eleições, que escondem várias desigualdades”, diz Machado.

Luiz Augusto Campos é professor de sociologia e ciência política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde também coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o Gemaa.

Carlos Machado é professor de Ciência Política no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o projeto de extensão Ubuntu: Frente Negra de Ciência Política e o Núcleo de Pesquisa Flora Tristán: representações, conflitos e direitos.

Leia os principais trechos da entrevista.

Campos (à esquerda} e Machado: cinco anos de pesquisas sobre o assunto.Foto 1: Anna Venturini | Foto 2: Arquivo Pessoal/Carlos Machado

Intercept – A pesquisa de vocês identificou o acesso a partidos políticos fortes e ao financiamento de campanha como os dois principais gargalos para a ascensão política de candidaturas pretas e pardas viáveis. Vamos começar pela questão dos partidos: vocês apontam que os mais consolidados dão menos espaço a candidaturas não-brancas, que com isso acabam relegadas a partidos menores e eleitoralmente mais fracos. Como isso se dá na prática?

Luiz Augusto Campos – A gente precisa de mais pesquisas, mas nossa hipótese é que partidos mais consolidados tendem a ter elites políticas mais consolidadas, mais fortes interna e externamente, que tendem a ser brancas. Tem também uma lógica da própria atuação estratégica do partido: os gestores querem que seus candidatos sejam eleitos. Para isso, tendem a buscar padrões de candidatos que tenham mais “chances eleitorais”, entre aspas. Quando eles olham para o passado em busca disso, veem basicamente homens brancos sendo eleitos. E aí tendem a reproduzir esse padrão racializado.

Carlos Machado – Olhando para resultados de eleições anteriores, temos uma restrição muito grande de candidatos e candidaturas negras competitivas. Então naturalmente é difícil ver esse perfil [de candidaturas] tendo possibilidade de conseguir obter votação e ser eleito.

Existe relação entre democracia e desigualdade racial? A alegada meritocracia que a sociedade brasileira valoriza se repete no acesso aos partidos, às candidaturas? Isso impede que o sistema político reflita a diversidade social brasileira?

Campos – A desigualdade racial inibe o desenvolvimento da democracia brasileira de várias formas. Primeiro, de formas mais institucionais. Se temos um universo de candidatos que não competem em pé de igualdade, então há um viés discriminatório racial muito evidente, que reduz o grau de democracia do nosso regime representativo. Para além disso, o estado brasileiro é gerido por uma representação política composta basicamente por homens brancos. Esse mesmo estado produz políticas públicas e atua, para o bem e para o mal, sobre a população negra. Quando a gente pega o braço protetivo do estado, os serviços de educação e de saúde, a gente está falando de serviços que são usufruídos em grande medida pela população negra. Mas a população negra também é o principal alvo do braço repressivo do estado. Então temos uma espécie de democracia que funciona de uma maneira racializada e invertida, com homens brancos discutindo, debatendo e produzindo serviços e repressão para homens negros e mulheres negras.

Machado – Há um componente adicional. A ideia de representação política [da democracia brasileira] implica que se consiga definir um conjunto de representantes da sociedade, mas não há nenhuma garantia de que esses representantes irão espelhar o que é a sociedade. Isso demanda um componente, que eu tendo a ver como mais democrático, que é pressão popular para que isso [a representação da diversidade social brasileira na política] ocorra. O processo que temos visto nos últimos anos, a luta dos movimentos sociais, do movimento negro, para cobrar uma maior presença de candidaturas negras, de financiamento [para elas], isso tudo diz respeito a esse processo. O aspecto democrático decorre disso, não da simples realização das eleições, que escondem várias desigualdades.

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Vocês identificaram não apenas uma desigualdade geral na distribuição de financiamento de campanha entre brancos e não-brancos, mas que ela cresce justamente dentre as candidaturas mais competitivas e com mais chances eleitorais. Como isso funciona?

Machado – O fato de termos um sistema de representação proporcional [nas câmaras municipais, assembleias legislativas e distrital e Câmara dos Deputados] às vezes dá a leitura de que estamos elegendo pessoas que não tiveram uma votação elevada. Mas não é verdade. Quando a gente olha para a competição política no sistema proporcional e de listas abertas que a gente tem, vê que uma candidatura tem que ter uma quantidade muito expressiva de votos para se eleger. E, para isso, tem que acumular uma série de recursos dos mais diversos, seja numa concepção social, como o acesso a determinadas redes de relacionamento social, ou a recursos de campanha, como você citou. É a partir disso que a gente consegue localizar quem de fato vai ter chances de se eleger. Nem toda pessoa que está na disputa política tem chances de se eleger, mas apenas as que façam parte de um perfil que acumule uma quantidade maior desses elementos e que vão depois se reproduzir em votos. Quando a gente está falando da desigualdade na distribuição de recursos, está pensando no impacto da desigualdade de competição entre as candidaturas. Um grande problema na leitura do sistema político brasileiro é entender que as candidaturas deveriam ter [condições de concorrer] em algum grau de igualdade, que não existe. Isso vai sendo expresso durante o contexto da campanha.

‘Temos uma espécie de democracia racializada, com homens brancos debatendo e produzindo serviços e repressão para homens e mulheres negras’.

Campos – Em termos mais práticos, outra característica do sistema eleitoral brasileiro é que a gente tem muito candidato para pouca vaga. Se a gente pega as eleições municipais do Rio de Janeiro, temos 1.800 candidatos a vereador disputando 55 vagas. Ou seja, é uma concorrência gigantesca. Além disso, como o Machado mencionou, esses candidatos não têm a mesma quantidade de tempo na TV ou de recursos [para campanha] – ao contrário, há uma desigualdade enorme. Isso faz com que a competição aconteça só entre candidaturas viáveis, algo entre 20% e 30% do total. Ou seja, nesse exemplo do Rio de Janeiro, algo em torno de 400, 500 candidaturas. O resto [dos candidatos] praticamente não participa da competição eleitoral, tem uma chance próxima de zero. E os negros são maioria nesse resto. Na competição de fato, entre as candidaturas viáveis, aí homens negros são minoria – e mulheres negras mais ainda.

Vocês apontam que a defasagem de negros eleitos é maior que a de candidatos negros. Isso revela, segundo a pesquisa, que entre a nomeação de um candidato e a eleição dele segue a existir um ‘filtro mais potente para a restrição de não-brancos do que aquele operado para a apresentação nas listas partidárias’. Em outras palavras, que nossa democracia permite candidaturas negras mas segue a bloquear a eleição de negros. Como isso se dá?

Machado – São múltiplos fatores, mas acho que o aspecto central é a compreensão de em quais partidos políticos essas candidaturas estão. Não adianta só ser candidato, é preciso ser candidato por um partido que tenha chances na eleição. E não só isso: o candidato precisa estar no topo da lista dos mais votados daquele partido. É estratégico compreender em quais partidos os perfis de candidatos não-brancos estão. De forma geral, os partidos que poderíamos ver como menos refratários a essas candidaturas são os de pequeno porte. Neles, você pode ter grande quantidade de candidaturas [de negros], mas que no final das contas não serão eleitas. Por isso, temos que olhar para os partidos de maior porte, em que as [proporções de] candidaturas não-brancas são reduzidas. Há variação ao longo dos anos, mas ainda assim, em 2018, os partidos maiores permanecem tendo maioria de candidaturas brancas, que também têm mais acesso aos recursos de campanha. E em 2018 a maior parcela dos gastos de campanha – ao menos os registrados – é de recursos públicos.

‘Um número muito limitado de candidatos concentra quase que totalmente o acesso ao eleitor’.

Campos – Tem uma metáfora muito usada em que a eleição é um livre mercado de candidatos em que os eleitores são os consumidores. Ou seja, como [na eleição] se a gente entrasse em um “supermercado político” e pudesse escolher os melhores candidatos do mesmo jeito que escolhemos produtos de acordo com nossas preferências. Só que essa metáfora ignora que esse mercado político é profundamente desigual. Um número muito limitado de candidatos monopoliza, concentra quase que totalmente o acesso ao eleitor, ou seja, o acesso à oportunidade de aparecer, seja em horário de televisão, santinho ou mesmo de circular no espaço urbano onde as eleições vão acontecer. Essa disputa profundamente desigual reflete desigualdades sociológicas entre brancos e negros.

E candidatos mais ricos tendem a ser brancos. Atualmente, a riqueza pessoal se tornou muito importante nas eleições, porque o candidato pode investir uma parte substantiva dos seus recursos pessoais [na própria campanha]. Mas há desigualdades próprias do sistema político. Por exemplo, candidatos que já foram eleitos no passado têm vantagens absurdas em relação aos demais.

Um dado do livro: em 2014, partidos pequenos como PTN, PSL (que naquela época não era o partido do Bolsonaro) e PSDC tiveram mais negros candidatos, proporcionalmente, que PSB e PT – que, como PSDB, MBD e DEM, dão a brancos algo como 70% de suas candidaturas. É um dado que parece se chocar com a percepção natural que temos de ver a agenda de partidos de esquerda como naturalmente alinhada ao movimento negro. Existe o elemento ideológico no bloqueio a candidaturas de não-brancos?

Machado – Tem um elemento ideológico, mas o elemento central é o tamanho do partido. Porque você citou partidos pequenos de direita, mas também há vários partidos pequenos de esquerda que vão ter exatamente esse perfil. Por isso, acho que falar de ideologia aí é complicado. Tanto é que é interessante notar que o PSL, quando deixa de ser um partido pequeno, em 2018, vemos um crescimento de candidaturas brancas muito evidente ante 2016. E, quando olhamos para os partidos de maior porte, o PT indubitavelmente é o que tem mais abertura para candidaturas não-brancas, com uma diferença percentual sensível ante os demais. Os partidos sofrem influência e pressão para a inclusão [de candidaturas e de representação] de diferentes setores da sociedade. O PT é mais aberto a isso do que outros partidos de maior porte.

E partidos de esquerda em geral, imagino, são mais permeáveis ao movimento negro.

Machado – Exato. E não apenas ao movimento negro, mas aos movimentos sociais de forma mais ampla. Pois há uma questão: às vezes a entrada da candidatura negra [num partido] não necessariamente representa uma vinculação com o movimento negro. Há um estudo muito interessante da Flavia [Mateus] Rios que vê a conexão entre movimento negro e partidos políticos meio cambaleante nos últimos anos. Quando se olha para esses partidos de direita e de menor porte, como PSL, PSC, PSDC, PR, PRB, todos têm uma veia religiosa forte. Então, a entrada de candidaturas neles não se dá via pressão de movimentos sociais, mas pelo perfil religioso [do candidato]. Isso leva ao cuidado necessário para não estereotipar o que é a participação política da população negra. Você tem diferentes perfis, à direita e à esquerda, que compõem o que é a população negra na política, inclusive com essa pegada mais religiosa nesses partidos que eu estou citando.

‘A restrição da representação política no Brasil em termos raciais, de gênero e de classe configura uma restrição democrática’.

Campos – Acho que tem outro elemento aí que é importante destacar: no sistema brasileiro, o


Quando olhamos quem são os líderes partidários, as figuras eleitas para os parlamentos, estamos falando de representantes com uma idade média superior a 40 anos, normalmente acima de 50 anos. São pessoas que tiveram sua formação num ambiente de crença na ideia de uma democracia racial brasileira. Serão os mais jovens que terão acesso ao discurso, ainda é questionado, sobre desigualdades raciais. São as novas vozes e as novas ideias que vão ventilar a dinâmica política. Quando olhamos para a Câmara dos Deputados, a tensão sobre as questões raciais é muito pequena.

Campos – O partido, como está claro em tudo que estamos falando, é muito importante na política do Brasil. A ideia de que os partidos são fracos, não importam, é um dos grandes mitos sobre a democracia brasileira. Não se pode ser candidato sem estar filiado a um partido. E cabe às lideranças partidárias formar as listas de candidatos, e não existe nenhuma lei que obrigue [a realização de eleições] prévias ou decisões democráticas interna no partido. Essas lideranças tendem a operar contrabalançando as premissas ideológicas do partido com a racionalidade instrumental de quem quer eleger mais candidatos. E aí, como já foi colocado, tendem a reproduzir visões e decisões passadas. Uma delas, muito recorrente, é de que raça não dá voto. Se pode até investir em candidaturas negras, ocasionalmente, mas tratar da temática racial é algo que historicamente tirou voto. Essa é uma impressão decorrida uma história de poucas candidaturas negras, uma impressão preconceituosa.

De que forma a raça tira voto? Pelo simples fato dos candidatos serem negros, ou pelo fato de colocarem a questão racial em discussão? 

Campos – A gente não aborda isso [no livro], mas existem algumas pesquisas qualitativas que acompanham as candidaturas que tentam tematizar a questão racial. O que sai desses trabalhos é que, em primeiro lugar, candidatos negros com algum potencial, viáveis eleitoralmente, acabam sendo confrontados com a questão racial em algum momento da campanha. Ou seja, eles não podem, como os brancos, se furtar a essa questão. E, quando abordam a questão, quase sempre isso gera um nível de exigência sobre eles muito maior do que o que existe as candidaturas brancas. Você tem desde candidatos de partidos de direita com discursos antirracistas fortes sendo atacados pelo eleitorado da legenda a candidaturas de esquerda com discursos antirracistas igualmente forte e sendo atacados por deixarem em segundo plano questões de classe. Ou seja, o nível de exigência sobre o discurso de candidaturas negras quanto à questão racial é historicamente muito maior do que sobre candidaturas brancas, que podem simplesmente ignorá-lo em suas campanhas. Então, quando as lideranças partidárias olham para essa história, tendem a pensar: “Olha, não vamos meter a mão neste vespeiro”.

Nessas últimas eleições, casos como o do Douglas Belchior têm vindo à tona com mais frequência. Partidos de esquerda, por exemplo, costumam ter uma preocupação maior do que os de direita com o papel que os recursos de campanha, o financiamento e o capital empresarial têm nas eleições, o que é salutar. Mas, se você não leva em conta também a raça, está ignorando o fato de que grande parte das candidaturas negras são, também, pobres, de universos periféricos, muito violentos e que, sem acesso a recursos mínimos de campanha, estão colocando a vida em risco. Os partidos brasileiros não estavam, e em alguma medida não estão, preparados para raciocinar sobre como trabalhar com raça nas eleições e incorporar a dimensão racial internamente e nas campanhas também. Então, o partido é um importante gargalo nisso tudo.

Machado – Tenho visto, nas eleições de 2020, muitas campanhas enfatizando o fato de que não têm dinheiro e por isso utilizam voluntários para garantir a realização [da campanha]. É interessante porque isso vai completamente na contramão do que é o processo político hoje, em que os partidos políticos têm buscado nos últimos anos intensificar a profissionalização. E esse perfil em que se busca o voluntariado está principalmente nas candidaturas não-brancas. Então, me preocupo se elas vão conseguir vingar, de fato.

Disputar assim contra uma estrutura partidária organizada, focada na eleição, é completamente desigual. Isso enfatiza não só a importância do partido político, mas as implicações da profissionalização partidária. Diz respeito a entender o que é um limite e o que é uma possibilidade. Entender que você não vai realizar uma revolução, mas tem que cobrar e estar presente nestes espaços [partidários]. Por isso, sempre me preocupa muito uma ação em que não se pensa estrategicamente. Se não for possível ganhar agora, tem que pensar estrategicamente como as ações que estão sendo tomadas agora podem ajudar no futuro na eleição das candidaturas [não-brancas]. Mas tem que ser pensado de forma profissional, porque a política é profissional. Ela não opera mais em uma lógica de esforço coletivo. Isso já passou, há muitos anos. A gente está falando de um contexto e de um nível de profissionalização que não permite mais esse tipo de estrutura.

Existe essa percepção entre o movimento negro?

Machado – Vou falar aqui a partir de impressões. Um dos efeitos do avanço da extrema direita no Brasil foi obrigar a militância antirracista a refletir sobre representação política. Durante a redemocratização, por exemplo, havia uma expectativa muito forte de que o movimento negro acabaria, viraria partidos políticos, porque já éramos uma democracia, os partidos estariam ali para disputar o poder, os militantes do movimento negro iriam se filiar a determinadas legendas e isso iria diluir sua unidade. Isso não aconteceu, porque a abertura dos partidos ao movimento negro, à direita e à esquerda, foi muito seletiva. A militância antirracista sempre esteve presente nos partidos políticos, mas seu raio de atuação neles sempre foi bastante limitado. Isso fez com que durante os anos 1990, sobretudo, uma parte importante do movimento negro investisse mais na criação de organizações que incidissem diretamente sobre organismos estatais. Se pensarmos nas ações afirmativas raciais, elas são fruto de uma articulação complexa que não passou, inicialmente, pelo Congresso. Nossa lei de cotas raciais é de 2012, mas as primeiras experiências com elas vêm de 2001, 2002. Ou seja, vieram dez anos antes. A lei veio depois, e para chancelar uma realidade: 78% das universidades públicas brasileiras já adotavam as cotas quando a lei veio e disse que as federais deveriam fazê-lo.

A comunicação do movimento negro com os órgãos estatais era muito mais efetiva que via partidos políticos. Com a ascensão da extrema direita, esses espaços de comunicação vão se fechando – já vinham se fechando desde antes. Então, acho que o que estamos vivendo é, em parte, a pressão do movimento negro no “retorno ao partido”. Não retorno, propriamente, porque ele sempre esteve lá, mas uma pressão maior porque os tradicionais com o estado se fecharam.

É emblemático o caso da Fundação Palmares, dirigida por um negacionista do racismo que diz odiar o movimento negro.

Machado – O movimento negro sempre teve atuação partidária. A questão é em que espaço ele operou. Você pode não ter um representante [eleito], mas vai ter uma pessoa assessorando aquele um representante, falando: “Olha, essa pauta, essa temática é importante para a população negra”, fazendo o lobby. Essa política de pressão sempre existiu nos partidos e no parlamento. O engajamento, a pressão política maior no interior dos partidos políticos por mais candidaturas negras, reserva de recursos para as candidaturas negras, talvez evidenciem uma conexão do movimento negro com partidos políticos na dinâmica eleitoral. Porque ele já estava presente na dinâmica partidária. Mas tem toda uma complexidade, muitas candidaturas negras não são vinculadas ao movimento negro. Elas chegam aos partidos a despeito do movimento negro. Se o movimento negro está participando do engajamento agora, em 2020, é uma coisa ainda a ser verificada. Mas certamente o movimento negro voltou para o Congresso, está naquele espaço disputando novamente como mostram dados que apresentamos [no livro].

Campos – A gente não pode ignorar que as relações raciais no Brasil mudaram muito nos últimos dez ou 20 anos. As ações afirmativas são parte disso, não implicam somente uma mudança no debate, mas também a formação de gerações com curso superior – e ter curso superior é um ativo político básico em eleições, como a gente mostra no livro. Então agora se tem um público [de lideranças do movimento negro] para disputar espaços partidários e eleitorais. E a gente também não pode ignorar a ascensão política de lideranças negras não necessariamente comprometidas com pautas do movimento negro. Queremos investigar o papel de lideranças negras oriundas de comunidades de base evangélica, quase sempre pastores e pastoras, que têm relação com a temática antirracista, mas que não estão associados à visão tradicional que temos do movimento negro. Por tudo isso estamos muito curiosos para saber o que vai acontecer no meio de novembro.


Professor Edgar Bom Jardim - PE

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