Em menos de três semanas, Evo Morales se declarou vencedor das eleições, denunciou um golpe de Estado e renunciou à presidência da Bolívia.
"Houve um golpe civil, político e policial", afirmou o presidente durante o pronunciamento em rede nacional no qual anunciou sua renúncia no domingo.
A decisão foi tomada horas depois de o comandante das Forças Armadas da Bolívia, general Williams Kaliman, declarar que o presidente deveria deixar o cargo, no intuito de resolver o impasse da crise política que assola o país desde as controversas eleições presidenciais, em 20 de outubro.
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Para os militares, o fato de Morales ter comunicado que convocaria novas eleições não era suficiente para conter a crise, após uma auditoria da Organização dos Estados Americanos (OEA) ter identificado irregularidades no processo eleitoral.
Na noite da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) suspendeu a transmissão da contagem dos votos com 83% das urnas apuradas, quando o resultado indicava segundo turno entre Morales e seu adversário, Carlos Mesa.
No dia seguinte, o sistema de contagem de votos, chamado Transmissão de Resultados Eleitorais Preliminares (TREP), foi subitamente reativado com 95% das urnas apuradas, indicando uma vitória apertada de Morales no primeiro turno.
As suspeitas suscitadas pela interrupção da contagem dos votos por mais de 24 horas e a súbita guinada na tendência do resultado levaram a oposição a denunciar uma "fraude escandalosa".
Até as missões de observação eleitoral da OEA e da União Europeia pediram um segundo turno das eleições presidenciais.
Mas Morales insistiu que havia vencido as eleições e, em resposta às manifestações da oposição, convocou seus seguidores a "defender a democracia" nas ruas e impedir um "golpe de Estado".
Também aceitou que a OEA fizesse uma auditoria do processo eleitoral.
1. A auditoria
No mesmo dia da votação e com a oposição já falando em fraude, a própria missão de observação eleitoral da OEA apontou a interrupção da contagem dos votos como uma das "falhas substanciais" que minavam a "credibilidade e transparência necessárias" do processo eleitoral.
O governo solicitou à OEA uma auditoria para esclarecer quaisquer dúvidas. E vale lembrar que o candidato da oposição, Mesa, que denunciou a "fraude escandalosa", sempre rejeitou as condições em que a organização internacional iria revisar a contagem dos votos.
Mesa ficou em segundo lugar nas eleições de 20 de outubro e, desde o primeiro momento, afirmou que Morales não tinha alcançado a diferença necessária de votos para derrotá-lo no primeiro turno.
A auditoria acabou sendo devastadora para o governo. A OEA determinou que era estatisticamente improvável que Morales tivesse alcançado a vantagem de dez pontos percentuais que precisava para evitar um segundo turno das eleições.
A OEA também afirma ter encontrado cédulas de votação alteradas e com assinaturas falsificadas.
O relatório de 13 páginas da auditoria destaca ainda que, em muitos casos, os trâmites de segurança para o processamento dos votos não foram respeitados e houve manipulação de dados.
Morales respondeu no domingo com um comunicado à imprensa no qual, sem mencionar a OEA ou indicar uma data, convocou novas eleições.
No entanto, algumas horas depois, e com a pressão das Forças Armadas, decidiu renunciar.
2. O Exército e a polícia contra
O pronunciamento do general Williams Kaliman, em nome do alto comando das Forças Armadas da Bolívia, também parece ter sido decisivo para a renúncia.
"Sugerimos que o presidente do Estado renuncie ao mandato presidencial, permitindo a pacificação e manutenção da estabilidade para o bem da nossa Bolívia", afirmou Kaliman em comunicado.
O pedido a Morales, dizia a nota, foi feito levando em consideração "a escalada dos conflitos que atravessam o país, zelando pela vida e segurança da população, para garantir o império da condição política do Estado".
Além do posicionamento dos militares em favor da renúncia do presidente, deve-se acrescentar que desde a sexta-feira, quando a onda de violência nas ruas estava prestes a completar três semanas, um "motim policial" começou a se espalhar por todo o país.
Policiais de várias unidades, primeiro em Cochabamba (centro) e depois em todas as capitais de Departamentos (Estados), começaram a se rebelar e se juntaram aos protestos contra o governo.
E embora Morales continue desfrutando de um enorme poder de mobilização em sua base, diferentemente de outros governos "problemáticos" da região, sem os policiais nas ruas e sem o apoio militar, o presidente ficou em uma situação de evidente fragilidade.
3. Pressão nas ruas
A oposição a Morales apostou desde o primeiro momento na mobilização nas ruas para pressionar o presidente.
Com greves e paralisações em todo o país, a Bolívia se transformou em um grande campo de batalha entre apoiadores do presidente e seus opositores.
Mas, diferentemente das crises políticas que o país viveu ao longo dos mandatos de Morales, os protestos se tornaram mais fortes desta vez na cidade de La Paz, que já foi um dos redutos de Morales.
Universitários e integrantes da classe média saíram noite após noite para enfrentar a polícia, os poderosos sindicatos e "movimentos sociais" (entre eles, o de mineradores e plantadores de coca), que se posicionavam na sede do governo para defender o presidente.
Centenas de pessoas ficaram feridas — e três mortes teriam sido registradas, o que pode ser considerado um número baixo, dada a intensidade da violência dos embates e ao fato de que os mineradores usam dinamite nos protestos.
Foi assim que um presidente que estava no poder há quase 14 anos se viu cercado por membros da oposição, que deixaram de reivindicar um segundo turno das eleições presidenciais e passaram a exigir sua renúncia.
4. A radicalização da oposição
Faz tempo que a oposição deixou para trás a exigência de um segundo turno entre Morales e Mesa e vinha pedindo a renúncia do presidente.
O endurecimento da postura da oposição se deu pelo crescente protagonismo do presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho.
Sob a liderança de Camacho, os opositores já não se conformavam nem sequer com a renúncia de Morales — sobretudo após a divulgação do resultado da auditoria.
Camacho passou a exigir a demissão do presidente e de todo o seu governo, assim como de senadores e deputados, além dos magistrados do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional.
A ideia dele era deixar o país nas mãos de um conselho que possa designar um novo TSE para realizar novas eleições dentro de 60 dias.
"A OEA nos mostrou que a fraude era tão óbvia que, devido à resistência do povo boliviano, não podia ocultá-la. O presidente Evo Morales cometeu crimes", afirmou Camacho no domingo.
5. A re-re-reeleição
Se as denúncias de fraude e os protestos eclodiram com a apuração dos votos, a crise política que atinge a Bolívia vai mais além e passa pelo simples fato de o presidente ser candidato à reeleição — outra vez.
No poder desde 22 de janeiro de 2006, Morales foi o presidente boliviano que esteve no cargo por mais tempo na história do país.
Uma mudança constitucional aprovada em 2009, que estabeleceu a possibilidade de reeleição presidencial para dois mandatos consecutivos de cinco anos cada, permitiu que ele disputasse a reeleição em 2010 e 2014.
Nas eleições de outubro deste ano, Morales tentava garantir um quarto mandato que permitiria a ele governar até 2025.
Para alcançar esse objetivo, ele conseguiu em 2017 a liberação do Tribunal Constitucional para disputar a reeleição indefinidamente.
A decisão da Corte foi tomada um ano depois do referendo que rejeitou a possibilidade de Morales se candidatar a um novo mandato.
A oposição acusou o tribunal de passar por cima do resultado das urnas.
E foi assim que, graças ao Tribunal Constitucional e ao respaldo do TSE, ambos acusados de serem alinhados com o governo, Morales conseguiu concorrer ao seu quarto mandato consecutivo.
Os protestos começaram há três semanas, mas já era de se esperar que essa nova tentativa de reeleição seria a mais difícil que o presidente enfrentaria desde sua primeira vitória presidencial, há 14 anos.
O que poucos previam era um desfecho como o que presenciamos agora: a queda de Morales.
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