Agentes voltaram ao local das câmeras, mas os vídeos não estavam mais disponíveis. A família Bolsonaro está incomodada com as coincidências.
Em março passado, às vésperas do aniversário de um ano do duplo homicídio, a Polícia Civil do Rio de Janeiro prendeu dois ex-policiais militares suspeitos de participar da execução. De acordo com a denúncia apresentada pelo Ministério Público, o sargento reformado Ronnie Lessa foi o autor dos disparos e Élcio Queiroz, expulso da corporação em 2015, conduziu o veículo usado pelos sicários, um Chevrolet Cobalt prata. Ambos são acusados de integrar o chamado “Escritório do Crime”, a mais temida quadrilha de matadores profissionais do estado.
No dia do atentado, uma câmera de segurança registrou às 17h34 a movimentação do veículo, com placa clonada, na localidade de Quebra-Mar, na Barra da Tijuca, próximo da casa de Lessa, um vizinho de Jair Bolsonaro. Às 18h16, imagens desse mesmo carro foram captadas na Tijuca, Zona Norte da cidade, onde Marielle morava com a esposa Mônica Benício. O Cobalt voltou a ser flagrado, 28 minutos depois, nas imediações da rua dos Inválidos, na Lapa, onde a vereadora participou de um debate com mulheres negras. O relatório policial não menciona, porém, a existência de outras imagens captadas por um estabelecimento comercial nesse intervalo de tempo.
O vídeo poderia confirmar a identidade dos ocupantes do carro, segundo fontes ligadas à investigação ouvidas pelo UOL. Logo após o atentado, agentes da Delegacia de Homicídios tiveram acesso à gravação e a guardaram em um pen drive. Quinze dias depois, retornaram ao local para pedir as mesmas imagens, sob a alegação de que o material foi perdido. O vídeo não estava mais disponível. A CartaCapital, a assessoria de comunicação da Polícia Civil afirmou que o inquérito segue sob sigilo e, portanto, não pode confirmar a informação.
No início de agosto, ao participar de uma audiência de instrução do caso no Tribunal de Justiça do Rio, o delegado Giniton Lages admitiu que houve problemas na coleta de provas.
Segundo ele, às vezes os agentes salvavam as imagens em formato errado, e elas não podiam ser acessadas. Ao retornar aos locais onde estavam instaladas as câmeras de segurança, nem sempre eles conseguiam recuperar o material perdido. Um trunfo para Lessa e Queiroz, que negam a participação no crime.
Agentes voltaram ao local das câmeras, mas os vídeos não estavam mais disponíveis
Quando os ex-PMs foram presos, Lages disse não descartar a possibilidade de os criminosos terem agido por conta própria, em um “crime de ódio”. Ao apresentar a exótica tese em uma coletiva de imprensa, o delegado disse que Lessa tinha “obsessão” contra políticos de esquerda e fez muitas pesquisas na internet sobre figuras do círculo de Marielle e Freixo.
A tese ofendeu amigos e familiares das vítimas, e o delegado foi afastado do caso. “O assassino é um matador de aluguel conhecido na história do Rio de Janeiro. É um psicopata violento, muito perigoso, mas que sempre foi contratado para executar pessoas. De repente, no caso de Marielle, ele muda completamente o perfil de sua psicopatia e resolve agir por conta própria, por razões ideológicas? Não faz o menor sentido”, desabafou Freixo à época, em entrevista a CartaCapital. “É inadmissível que se conclua ser um crime de ódio, descartando a existência de mandantes. Isso pode passar a impressão de que estão tentando proteger alguém.”
O vaivém das investigações reforça a suspeita. Baseada no depoimento de um ex-PM, a principal linha de investigação até novembro de 2018 apontava para o vereador Marcello Siciliano, do PHS, como mandante do duplo homicídio, tramado em parceria com o ex-PM Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando de Curicica, acusado de chefiar uma milícia. Meses depois, o delator voltou atrás e desmentiu a história. Preso por outro crime, o miliciano denunciou ao Ministério Público Federal ter sofrido coação da Delegacia de Homicídios para assumir a autoria do crime quando esteve em Bangu 9. Segundo Curicica, os agentes estariam protegendo o Escritório do Crime.
A então procuradora-geral da República Raquel Dodge instaurou um inquérito para apurar as acusações de Curicica. A “investigação da investigação”, como o caso ficou conhecido, terminou de forma constrangedora para as autoridades policiais. Em seu último dia no cargo, Dodge denunciou ao Superior Tribunal de Justiça cinco suspeitos de fraudar as investigações da morte de Marielle: a advogada Camila Moreira Lima Nogueira, o ex-conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio Domingos Inácio Brazão, o policial federal aposentado Gilberto Ribeiro da Costa, o delegado federal Hélio Khristian Cunha de Almeida e o policial militar Rodrigo Jorge Ferreira.
Afastado do TCE em 2017 por envolvimento em um esquema de propinas, Brazão teria plantado mentiras no noticiário e aliciado falsas testemunhas para interferir na investigação. O objetivo seria prejudicar Siciliano, seu adversário político, mas Dodge pediu a abertura de um inquérito para apurar se ele próprio foi o mandante do duplo homicídio.
Homenageada pela cantora Lellê na abertura do Rock in Rio, Marielle ainda é vista como uma ameaça pelo entourage bolsonarista. Uma série de casualidades liga os principais suspeitos do crime ao ex-capitão. Lessa, o acusado de puxar o gatilho contra a vereadora, morava no mesmo condomínio de Bolsonaro. Segundo o delegado Lages, uma das filhas do sargento reformado foi namorada do filho caçula do presidente, Jair Renan, conhecido como “BolsoKid”, hoje com 21 anos (o rapaz diz não se lembrar do relacionamento).
Não é tudo. Élcio Queiroz, o motorista do Cobalt prata usado para emboscar Marielle, ostentava nas redes sociais uma antiga fotografia tirada ao lado de Bolsonaro. Preso no início de outubro, sob a acusação de ter lançado ao mar armas usadas na execução da vereadora, o professor de artes marciais Josinaldo Lucas Freitas, o Djaca, também tinha um retrato ao lado do “mito”.
As coincidências não param por aí. O ex-PM Adriano Magalhães da Nóbrega, apontado como um dos chefes da milícia de Rio das Pedras e associado ao Escritório do Crime, foi homenageado em duas ocasiões pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro, hoje senador da República. Em 2003, o parlamentar apresentou uma moção de louvor ao então capitão do Batalhão de Operações Especiais. Dois anos depois, assinou a proposta para conceder a Medalha Tiradentes, uma das mais valorizadas honrarias do estado.
Além disso, a esposa e a mãe do miliciano trabalharam no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio. Raimunda Vera Magalhães, a mãe, também é citada no relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) como uma das servidoras que fizeram depósitos na conta de um outro Queiroz, o Fabrício, milionário motorista da família Bolsonaro que as autoridades não conseguiam encontrar para depor.
Isso talvez explique a inacreditável censura imposta pelo governo a uma cena de cinco segundos da TV Brasil, em um especial sobre Jackson do Pandeiro. Nesse trecho, a câmera direcionou o foco para livros de cordel expostos em uma feira, com capas em xilogravura, uma delas com o desenho de Marielle. Quando a emissora publicou o vídeo no YouTube, a imagem não estava mais lá.
De acordo com a revista Época, o diretor de programação da Empresa Brasileira de Comunicação, Vancarlos Alves, foi demitido uma semana após a veiculação do programa, gesto interpretado por funcionários como uma retaliação. Enquanto isso, a sociedade permanece sem saber quem mandou matar a vereadora. Já se passaram um ano, sete meses e alguns dias…
Com Carta Capital
Professor Edgar Bom Jardim - PE
0 >-->Escreva seu comentários >-->:
Postar um comentário
Amigos (as) poste seus comentarios no Blog