Se a 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas, que terminou na segunda 30 em Nova York, é capaz de oferecer uma fotografia sobre os temas que dominam o debate internacional, certamente a Amazônia aparece em foco. E a agressiva estreia do presidente Jair Bolsonaro (PSL), na terça-feira 24, não está sozinha nesta imagem. O temperamento bélico do presidente brasileiro pode ter sido uma nota fora do tom para a abertura de discussões de alto nível, mas discursos de líderes na tribuna da ONU exibem um retrato com cores semelhantes: o mundo está em conflito.
A começar por nossos vizinhos da América. Nos discursos dos países da região amazônica, a assembleia assistiu a um embate entre duas formas de lidar com a temática ambiental. A primeira, isolacionista, de Jair Bolsonaro, e a segunda, multilateralista, exposta pelo presidente da Bolívia, Evo Morales.
Com Bolsonaro, a estratégia foi reivindicar a soberania nacional, atacar os países europeus que repudiaram a conduta ambiental do Palácio do Planalto e reforçar sua aliança com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
“Problemas, qualquer país os tem. Contudo, os ataques sensacionalistas que sofremos por grande parte da mídia internacional devido aos focos de incêndio na Amazônia despertaram nosso sentimento patriótico”, argumentou Bolsonaro. “É uma falácia dizer que a Amazônia é patrimônio da humanidade e um equívoco, como atestam os cientistas, afirmar que a Amazônia, a nossa floresta, é o pulmão do mundo. Valendo-se dessas falácias, um ou outro país, em vez de ajudar, embarcou nas mentiras da mídia e se portou de forma desrespeitosa e com espírito colonialista.”
Morales preferiu relacionar as mudanças climáticas a duras críticas às desigualdades sociais do capitalismo. Defensor do multilateralismo, ou seja, do trabalho em conjunto sobre a causa, o presidente boliviano enumerou medidas de redução da extrema pobreza e de garantia de direitos humanos como fundamentais para a atuação integrada pelo meio ambiente.
“As consequências das mudanças climáticas condenarão milhões de pessoas à pobreza, à fome, a não contar com água potável, a perder suas casas para o deslocamento forçado, a mais crises de refugiados e a novos conflitos armados”, disse Morales. “Agradecemos à comunidade internacional por sua cooperação oportuna em nossa luta contra o fogo, assim como o compromisso para participar das ações pós-incêndio.”
A comparação entre os dois discursos faz parte da análise do doutor em Ciências Sociais e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Jaime Coelho. Para o pesquisador, o discurso de Bolsonaro expôs uma noção nebulosa sobre soberania e apresentou uma retórica utilizada no século 19 contra os países europeus.
“O Brasil faz um discurso que utiliza a palavra de ordem ‘A Amazônia é nossa’, mas a Amazônia é nossa para ser explorada de uma forma conjunta com a grande potência dos Estados Unidos. Ele tenta reproduzir uma dicotomia do século 19, em que a Europa é vista como uma região colonialista contra as Américas, e os Estados Unidos são a grande potência que tem um destino manifesto de defender a soberania da região. Não é uma defesa da soberania brasileira absoluta, mas sim uma soberania compartilhada com o poder dos Estados Unidos”, examina.
Enquanto isso, Evo Morales teve tom combativo, na visão do professor. “É interessante observar o contraste com o Evo Morales, porque ele diz que as mudanças climáticas são uma questão global que afeta a todos e exige uma solução cooperativa global. Mas essa solução passa por uma mudança na forma de organização da sociedade. Ele aproveita a crítica própria do ambientalismo para criticar o capitalismo”, analisa o professor.
Venezuela e Cuba, como era de se esperar, foram com pedras na mão contra o discurso de Bolsonaro sobre a “ditadura socialista” nesses países. Em discurso na sexta-feira 27, a vice-presidente venezuelana, Delcy Rodríguez, atribuiu a crise ambiental ao “devastador modelo capitalista” e responsabilizou Bolsonaro, mas também acenou para a criação de mecanismos multilaterais de cooperação.
“Destacamos a agenda 2030 como um compromisso conjunto desta assembleia geral. Nesta casa, estimulamos também mecanismos comuns de cooperação para abordar a impostergável preservação do meio ambiente, impactada pelo devastador modelo capitalista. Como país amazônico, alçamos nossa voz para rechaçar a bárbara mercantilização da nossa Amazônia, liderada pelo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro”, discursou.
A pauta central da Venezuela foi o bloqueio econômico imposto pelo presidente americano Donald Trump no início de agosto, o maior em 30 anos a um país ocidental. Segundo a vice de Nicolás Maduro, desde 2015, os Estados Unidos impuseram cerca de 350 medidas coercitivas unilaterais contra a república bolivariana, como a apropriação ilícita de recursos venezuelanos a as sanções comerciais que afetam fornecimento de alimentos e remédios.
As sanções aplicadas à Venezuela são parte do plano dos Estados Unidos de derrubar Maduro à força. Para isso, os americanos reconheceram o opositor Juan Guaidó como presidente interino. Na ONU, Delcy expôs fotos que mostram relações de Guaidó com paramilitares colombianos envolvidos com narcotráfico, chamados de “Los Rastrojos”.
Delcy afirmou que os últimos três presidentes americanos foram os que mais investiram em armamento militar. Ela citou que, entre 2001 e 2009, o então presidente George W. Bush lançou 70 mil bombas, em uma média de 24 bombas diárias; depois, Barack Obama, 100 mil bombas, com 34 bombas diárias; e Trump, até agora, lançou quase 45 mil bombas, com o recorde de 121 bombas por dia. Porém, ela ressaltou que as forças militares não são a única prática de terrorismo dos americanos.
“Há um novo tipo de terror, ou de terrorismo de Estado, que se impõe sobre os povos e já não utiliza bombas, mas também bancos e companhias de seguros que estão ao alcance de uma tecla na era digital”, protestou. “A Venezuela tem sido o maior experimento perverso contra o multilateralismo. O terrorismo econômico contra a Venezuela diminuiu em mais de nove vezes a sua renda, e se estima que entre 2015 e 2018 as perdas econômicas alcançaram 130 milhões de dólares.”
No sábado 28, foi a vez de Cuba devolver a Bolsonaro as acusações que recebeu na abertura da assembleia. O chanceler Bruno Rodríguez repudiou a campanha negativa adotada pelo Brasil sobre o programa “Mais Médicos”, que levou médicos cubanos a longínquas localidades para prestar serviços de saúde. Contra Trump, Rodríguez denunciou as sanções americanas à ilha caribenha, que inclui bloqueios a embarcações e empresas de exportação de petróleo. Também acusou os Estados Unidos de retomarem a Doutrina Monroe, política americana do século 19 que justificara intervenções em países latinos.
Por fim, alinhou-se à Venezuela e à Bolívia nas duras críticas à relação dos países capitalistas com o meio ambiente.
“O capitalismo é insustentável. Seus padrões irracionais de produção e consumo e a crescente e injusta concentração da riqueza são a principal ameaça ao equilíbrio ecológico do planeta. Não haverá desenvolvimento sustentável sem justiça social”, afirmou.
EUA miram em Venezuela, Cuba, China e Irã
O discurso antissocialista de Bolsonaro foi corroborado por Trump logo em seguida, já que o presidente americano foi o segundo a discursar na assembleia. O mandatário dos Estados Unidos acusou Havana de saquear a riqueza petroleira venezuelana e chamou Nicolás Maduro de “títere de Cuba”.
“Um dos desafios mais sérios que nossos países enfrentam é o espectro do socialismo: é o arruinador de nações e o destruidor de sociedades. Os acontecimentos na Venezuela nos lembram que o socialismo e o comunismo não se baseiam em justiça e igualdade, nem se tratam de ajudar os pobres e o bem-estar das nações. Baseiam-se apenas em uma coisa: poder para a classe dirigente”, discursou, afirmando que, no último século, o socialismo matou 100 milhões de pessoas. “Os Estados Unidos nunca serão um país socialista.”
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China também foi alvo de Trump. A república comunista, segundo ele, exerceu “práticas injustas” desde que foi admitida na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001. Trump se queixou de que a China se negou a adotar reformas prometidas, baseou seu sistema econômico em barreiras de mercado, dedicou a ele fortes subsídios estatais, promoveu “manipulações monetárias” e roubou propriedade intelectual e segredos comerciais. “Os Estados Unidos perderam 60 mil fábricas desde que a China entrou na OMC”, reclamou.
Sobre o Irã, Trump afirmou que prosseguirá com os bloqueios econômicos, em resposta aos ataques às instalações petroleiras da Arábia Saudita em 14 de setembro, atribuídos à república islâmica. “Nenhum governo responsável deve subsidiar a sede de sangue do Irã”, afirmou. “Enquanto continuarem o comportamento ameaçador, as sanções não serão desfeitas. Serão endurecidas.”
“É difícil para o Ocidente aceitar que seu domínio nos assuntos mundiais está diminuindo”, diz chanceler da Rússia.
O contra-ataque de Rússia e China
O ministro de Relações Exteriores russo, Sergey Lavrov, questionou o real poder das potências do Ocidente. Logo no início do seu discurso, o chanceler analisou que os países que se autoproclamaram vencedores da Guerra Fria, como os Estados Unidos, não querem considerar os interesses legítimos de outras nações e agem para impedir o desenvolvimento de um “mundo policêntrico”.
Segundo Lavrov, há uma “interpretação limitada do liberalismo” que leva estes países a impor normas à comunidade internacional para reter novas influências políticas e recuperar posições privilegiadas. Para ele, isso ocorre porque o Ocidente está se enfraquecendo.
“É difícil para o Ocidente aceitar que seu domínio nos assuntos mundiais, que durou vários séculos, está diminuindo”, afirmou.
A China também repudiou as tensões criadas pelos Estados Unidos com a guerra comercial. O chanceler Wang Yi afirmou que a China não será passiva “frente aos ventos do protecionismo”. Ele também ressaltou que, neste ano, a república comunista completa 70 anos em comemoração por se considerar o “principal motor do desenvolvimento global”.
“O mundo de hoje não é pacífico. O protecionismo e o unilateralismo representam ameaças à ordem internacional”, afirmou. “Quanto às questões comerciais, a China está disposta a resolvê-las de maneira tranquila, racional e se dispõe a demonstrar a maior paciência e boa vontade. Se a outra parte atua de má fé ou não mostra respeito a uma situação de igualdade de regras nas negociações, teremos que dar as respostas necessárias para salvaguardar nossos direitos legítimos.”
Irã, Turquia e o Oriente Médio em chamas
Outro discurso incendiário foi do presidente do Irã, Hassan Rouhani. O mandatário disse que o Golfo Pérsico está “à beira do colapso” e que somente um erro de cálculo pode arruinar a região. A república islâmica também se declarou vítima de “terrorismo econômico” de Washington, devido à série de sanções aplicadas pelo governo Trump.
Rouhani lamentou que o Oriente Médio esteja envolto de derramamentos de sangue, fanatismos religiosos extremistas, que atingem principalmente, segundo ele, a Palestina. O presidente do Irã acusou Israel e Estados Unidos de serem os principais responsáveis pela crise na região. Outra queixa de Rouhani foi o desprezo dos Estados Unidos ao acordo nuclear, costurado em 2015 e desfeito por Trump em 2018.
“Contra os planos destrutivos dos Estados Unidos, o Irã tem acordos de cooperação e assistência regionais e internacionais”, afirmou, exaltando as parcerias com Rússia e Turquia. “O governo dos Estados Unidos impõe sanções extraterritoriais e emite ameaças contra outras nações. Tem feito grandes esforços para privar o Irã das vantagens de participar na economia mundial e recorrido à pirataria para fazer uso indevido do sistema bancário internacional. A nação iraniana jamais perdoará estes delitos.”
Para o doutor em Geografia, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e especialista em Oriente Médio, Danny Zahreddine, o Irã precisa ter um posicionamento mais duro porque a crise econômica causada pelos EUA é nefasta para o país.
“Eu concordo com o presidente iraniano. A posição deve ser contundente, porque não foram eles que romperam com o acordo. Boa parte da assembleia geral vai entender e ser solidária. O problema, ao meu ver, é que a questão que liga os houthis no Iêmen e o problema com os sauditas tem um limite tênue. Uma parte da assembleia vai avaliar a fala de Rouhani mais em função do seu comportamento sobre o Iêmen e a Arábia Saudita do que simplesmente o problema entre EUA e Irã, e o acordo nuclear”, avalia Zahreddine, referindo-se ao movimento rebelde dos houthis, apoiados pelo Irã, que assumiram a responsabilidade dos ataques às petrolíferas sauditas em 14 de setembro.
O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, também fez discurso histórico na tribuna das Nações Unidas. O chefe do estado turco exibiu mapas ilustrativos sobre o domínio de Israel no território palestino desde 1947, e protestou contra as ofensivas sionistas na região.
“E esse mapa de Israel? Onde está Israel? Onde começa e termina o território de Israel? Observem este mapa. Onde estava Israel em 1947? Onde está agora? Especialmente entre 1949 e 1967. Vejam, em 1947, este era o território palestino, todo o território pertence a eles. Mas em 1947, se realiza o plano de distribuição e o território da Palestina começa a diminuir, enquanto Israel se expande. Hoje, esta é a situação: parece que não há presença palestina. Toda a terra pertence a Israel”, manifestou-se.
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Na avaliação de Zahreddine, a pauta palestina é útil para Erdogan se fortalecer no poder. Segundo o pesquisador, o debate é fundamental para a pacificação da região, carece de espaços no âmbito internacional e oferece aos turcos uma posição de protagonismo regional.
“Assumir essa instância num momento em que os americanos não representam um mediador adequado, em que as Nações Unidas têm limites evidentes para lidar com isso e que os russos estão preocupados com o problema da Ucrânia e da Síria, isso reforça uma posição interessante para o presidente Erdogan”, examina.
Para Zahreddine, chamou atenção que o Brasil tenha tratado a discussão sobre a região de forma marginal. Apesar de estar tradicionalmente presente nos discursos brasileiros na ONU, o Oriente Médio, segundo o professor, foi citado de modo periférico por Jair Bolsonaro.
“Do ponto de vista da política externa brasileira, a pauta Oriente Médio, com o presidente Bolsonaro, praticamente não existiu. Nos últimos anos, nossa relação com o mundo árabe e com o mundo muçulmano cresceu demais, na área comercial e diplomática. O discurso de Bolsonaro mostra que não é mais uma prioridade buscar este eixo de política externa”, avalia.
Carta Capital
Professor Edgar Bom Jardim - PE
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