*Nunca um governo brasileiro fez tanta "força", torcida para interferir, influenciar no resultado de uma eleição de outro país.
Eleito neste domingo com 48% dos votos, o próximo presidente da Argentina, Alberto Fernández, pode ser um rosto pouco conhecido dos brasileiros, mas é um veterano na política.
Há quase três décadas atua nos bastidores do peronismo, articulando campanhas que levaram ao poder expoentes do Partido Justicialista - sigla à qual é filiado, assim como a companheira de chapa e vice, Cristina Kirchner.
Eles derrotaram o atual mandatário, Maurício Macri, que levou 40,4% dos votos. Na Argentina, é suficiente obter mais de 45% dos votos para ganhar no primeiro turno — ou votação acima de 40% desde que haja uma diferença de 10 pontos percentuais para o segundo colocado.
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Fernandez é considerado peça fundamental na candidatura presidencial do marido de Cristina, Néstor Kirchner, lançada em 2003 em oposição à corrente peronista mais à direita que governou a Argentina na década de 90, personificada na figura de Carlos Menem, que realizou uma série de reformas neoliberais no país e abriu o capital para estrangeiros.
Alberto é apresentado aos Kirchner em 1997 por Eduardo Valdés, seu colega na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires.
Valdés, por sua vez, conhecera Néstor e Cristina em 1994, em Santa Fé, durante a constituinte que reformou a Carta Magna argentina.
"Estávamos juntos de segunda a quinta, acabamos nos aproximando."
Alberto, ele conta, gostava de ler o que Kirchner, então governador de Santa Cruz — província no extremo sul do país, na região da Patagônia —, escrevia. "E me dizia: 'Me apresenta a ele, quero conhecê-lo'."
"Um dia Alberto publicou um artigo no jornal, Néstor leu e disse: 'Esse é seu amigo, do qual me falou? Convida ele pra jantar'."
A partir desse encontro, algum tempo depois, surgiria o grupo Calafate, think tank progressista criado para tentar renovar o movimento peronista e formular alternativas ao menemismo.
Recebeu esse nome por reunir-se na cidade patagônia de El Calafate.
Depois da crise de 2001, em que a Argentina decretou calote da dívida e o governo reteve por quase um ano as poupanças - o que ficou conhecido como corralito -, o grupo resolveu lançar a candidatura de Néstor.
Alberto Fernández foi um articulador importante tanto antes quanto depois das eleições, já que assumiu a posição de chefe de gabinete.
Virou amigo pessoal dos Kirchner. Em entrevista dada em junho à rádio La Once Diez, seu filho, Estanislao Fernández, de 24 anos, disse que, para ele, os dois ex-presidentes eram "tios".
"Cresci com Néstor e Cristina vindo à minha casa. Cristina sempre foi amorosa comigo."
Na mesma entrevista, o jovem contou que, apesar de Alberto ter se divorciado de sua mãe quando ele ainda era criança, sempre esteve presente em sua vida.
"Nos anos em que meu velho trabalhava na Chefia de Gabinete, separado da minha mãe, sempre ia me buscar na escola, sem guarda compartilhada, sem nada."
Estanislao é cosplayer, streamer do game League of Legends e a drag queen Dyhzy, que soma mais de 100 mil seguidores no Instagram.
Diz já ter saído com meninos e há três anos namora Natalia.
O racha com Cristina
Alberto Fernández seguiria como chefe de gabinete durante a gestão de Cristina Kirchner, que começa em dezembro de 2007, mas por pouco tempo: cerca de oito meses depois de ela assumir, o advogado pede demissão.
O estopim foi o chamado "conflito no campo", quando uma resolução do governo permitia que o Estado retivesse parte da receita das empresas que exportavam soja — commodity cujo preço estava em alta em 2008.
Esse foi um período de grande tensão entre o governo e o setor agropecuário, com greves e paralisações.
Daí em diante, foi crítico da administração Kirchner. Passaram anos sem falar.
Em 2015, pouco antes das eleições presidenciais, chegou a afirmar em entrevista que lhe custava encontrar uma medida do segundo governo Cristina que pudesse ser elogiada.
A saída de Alberto em 2008 marcou o início de um ciclo lento de fragmentação do peronismo.
Sergio Massa, que assumira o cargo de chefe de gabinete depois de ele entregar o cargo, rompe com o kirchnerismo em 2010 e lança sua própria candidatura à presidência em 2015, em oposição ao candidato de Cristina, Daniel Scioli.
Em 2017, quando a ex-presidente concorre ao Senado, outro membro importante dos quadros do PJ sai com uma candidatura de oposição - Florencio Randazzo, com uma campanha organizada, aliás, por Alberto Fernández.
O movimento peronista sofreu, entretanto, uma forte derrota nas eleições legislativas de meio termo. A coalizão liderada por Cristina somou votos suficientes para garantir sua vaga no Senado, mas ficou atrás do Cambiemos, de Macri.
Na Argentina, os deputados e senadores são eleitos por meio de listas fechadas. Cada província elege 3 senadores — a coalizão com mais votos aponta dois e a segunda, um.
A reaproximação
A derrota marca um ponto de inflexão.
A partir daí, conta um membro do PJ, cresce entre antigos líderes do partido a ideia de que seria imprescindível reunificar o movimento peronista para lançar uma candidatura competitiva em 2019, capaz de frustrar os planos de reeleição de Mauricio Macri.
De um lado, Alberto funda, em fevereiro de 2018, o Grupo Callao, think tank que reúne uma geração mais jovem de economistas e pesquisadores - um grupo, na visão do advogado, com vocação para renovar as lideranças do peronismo.
De outro, Cristina volta a dialogar com quadros do Partido Justicialista.
Desse processo de reaproximação, e da avaliação de que Cristina, sozinha, não conseguiria vencer as eleições, surgiu a chapa encabeçada por Alberto.
A ex-presidente reúne tradicionalmente algo entre 25% e 30% dos votos, mas enfrenta um nível alto de rejeição, inclusive dentro do movimento peronista.
O lançamento de Alberto como cabeça de chapa seria um aceno à ala mais moderada, aos eleitores de centro.
Segundo Valdés, o amigo de faculdade nunca tinha pensado em se candidatar a um cargo eletivo em 30 anos de vida pública porque seu nome nunca havia aparecido em pesquisas.
Nesse sentido, a cientista política Maria Esperanza Casullo observa que o peronismo já tentou alçar quadros técnicos às urnas outras vezes, sem muito sucesso.
Ela cita o exemplo de Roberto Lavagna, que foi ministro da Economia entre 2002 e 2005, durante a recuperação do país pós-crise de 2001, e saiu do governo após se desentender com Néstor.
Foi candidato à presidência da Argentina em 2007, 2015 e 2019. Nestas últimas eleições, conquistou apenas 6% dos votos válidos.
"Não é uma transição fácil", diz a professora da Universidade Nacional de Río Negro (UNSAM).
Fã de Dylan, dono de cachorro instagramer e pró-Lula Livre
Apesar da aparência de político tradicional e dos 60 anos, Alberto é um usuário ativo das mídias sociais, inclusive do Instagram, rede na qual tem conta desde 2016.
Não só ele — seu cachorro Dylan também tem um perfil e soma mais de 76 mil seguidores.
O nome é uma homenagem ao cantor americano Bob Dylan. Fã de rock, o novo presidente da Argentina toca violão e guitarra e teve como professor um de seus ídolos, o cantor e compositor argentino Litto Nebia, conta Valdés.
Formou-se como advogado na Universidade de Buenos Aires em 1983 e desde 1985 dá aulas na instituição, em disciplinas de Direito e Processo Penal.
Entrou para a política cedo, ainda no governo Raúl Alfonsín, que assumiu a presidência logo após o fim da ditadura militar em 83.
Chegou a ter cargo na administração de Menem, mas renunciou em 1995 por discordar de políticas do então presidente.
Segundo a imprensa argentina, é dono de dois imóveis na Recoleta, mas vive em um apartamento alugado no complexo River View, no bairro nobre de Puerto Madero, com a namorada, a atriz e jornalista Fabiola Yañes.
Ao longo da campanha eleitoral, Fernández se posicionou em relação a temas importantes da política brasileira, com respostas ácidas ao presidente Jair Bolsonaro e defesa pública do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O mais enérgico se deu logo após as primárias, quando Bolsonaro afirmou que vitória da oposição poderia transformar a Argentina "em uma Venezuela". "Celebro que ele fale mal de mim, um racista, misógino e violento", rebateu Fernández, que contemporizou afirmando que o Brasil seria sempre o "principal sócio" da Argentina.
O ministro da Economia brasileiro, Paulo Guedes, chegou a dizer que o Brasil poderia deixar o Mercosul se o candidato de esquerda vencesse e decidisse "fechar a economia" para o comércio internacional.
Em julho, Fernández visitou Lula na prisão em Curitiba em julho, e na ocasião disse que revisaria o acordo anunciado entre União Europeia e Mercosul porque, em sua opinião, ele foi acelerado para influenciar o pleito argentino, mas prejudicaria a indústria nacional.
No domingo, dia de votação, o agora eleito publicou uma foto em rede social em homenagem ao aniversário do petista, a quem chama de amigo. "Um homem extraordinário que está injustamente preso."
Quem vai mandar?
Entre as muitas dúvidas que pairam sobre a presidência de Alberto Fernández está o papel de Cristina Kirchner — se a ex-presidente se reservaria às atribuições de vice ou se teria ingerência mais ampla sobre o governo.
"Todo mundo tem medo de que esteja sendo gestado algo semelhante a um Medvedev-Putin", diz Livio Ribeiro, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), em referência a Dimitri Medvedev, eleito presidente da Rússia em 2008 e fortemente influenciado pelo antecessor e padrinho político Vladimir Putin.
O próprio economista aponta, entretanto, três razões para que algo parecido não aconteça na Argentina.
A postura historicamente mais combativa de Alberto Fernández, que rompeu com Cristina quando deixou de ser ouvido, por exemplo.
As ações às quais Cristina responde na Justiça, um incentivo para que ela evite grandes embates.
E o fato de o Partido Justicialista ser uma combinação de diversas correntes, das quais o kirchnerismo é apenas uma — ou seja, há outros movimentos dentro do partido que o novo presidente também deve tentar conciliar.
Algo a se observar, acrescenta o cientista político Lucas Romero, é a relação entre Alberto e Axel Kicillof, recém-eleito governador da província de Buenos Aires.
Foi ministro da economia de Cristina entre 2013 e 2015 e é considerado o futuro do projeto político da ex-presidente.
A província de Buenos Aires, ele explica, tem um deficit fiscal estrutural e uma série de carências em infraestrutura — por isso, a relação com o governo federal não costuma ser fácil.
"É preciso ver se Cristina vai tentar atuar como árbitro e interceder pelas demandas do afilhado político ante o presidente", avalia o diretor da diretor da consultora Synopsis.
Kicillof é amigo do filho da vice-presidente, Máximo Kirchner, e um economista de orientação heterodoxa, com ideias tão ou mais à esquerda do que a própria ex-presidente nessa área, lembra Livio Ribeiro, do Ibre-FGV.
"É o grande nome da Cámpora (juventude do movimento kirchnerista), o futuro desse projeto político do kirchnerismo. Por isso esse equilíbrio (entre governo federal e provincial) é mais sério."
Com Informações de Camilla Veras Mota -
Enviada da BBC News Brasil a Buenos Aires.
Professor Edgar Bom Jardim - PEEnviada da BBC News Brasil a Buenos Aires.
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