domingo, 15 de setembro de 2019

Bacurau: somos histórias


A história é uma tatuagem. Talvez, sim. Mas é perigoso se fixar no singular. A multiplicidade dos traços indica que na tatuagem existem tatuagens que não são vistas. É um sentimento? É uma adivinhação? Ser um só é pouco para complexidade que nos cerca. Somos histórias, somos tatuagens, somos pretensões, somos imensamente inacabados. Tudo isso é um desafio que ultrapassa a mesquinhez narcísica da imaginação solitária diante do imaginário coletivo anônimo. Assim, a sociedade cria suas invenções e espalha seus desejos culturais. Mas a busca não se encerra. Bacurau penetra no passado, lembra as permanências, traz a tecnologia ousada, a morte mais sangrenta. Pede decifrações, nunca definitivas, nem enjauladas num texto ou numa profecia dogmatizada.
As esfinges são fugidias. Surgem as interpretações muitas vezes conflitantes. Será que a violência é moradia do social? Será que o visível não apenas é um disfarce? Se tudo possui significados o que fazer para conhecer o mundo e transformá-lo? O filme traduz concepções que não dispensam as repetições de desenganos e desigualdades. Parece que não há alternativas. Os territórios abrigam invasores ferozes, inimigos de diálogos, portadores da morte, amigo da sede dos outros, do inferno de algum ou de todos os tempos que vivemos.
O pecado se encontra na esquina. Não é estrangeiro, porém fala línguas de ódio. Quer consolidar culpas. se ausentar da tolerância, ensinar a eliminar o outro sem nenhuma cerimônia. A necrofilia se faz presente, confunde as teses dualistas. A pulsão de morte se apronta, se mostra nas cores, nos gestos, nas armas, nos buracos da secura. Alguém dúvida da realidades dos cenários, alguém levou o medo para longe ou é preciso ter medo para que haja mudança? O filme diz que o lugar comum é uma tolice que frequenta cada vida e exige o deslocamento dos tempos, sem ordens fabricadas, com sustos e impactos. A fantasia está na geometria do corpo.
Bacurau lança sínteses históricas, visita perdões não resolvidos, entra na porta da nossa casa. As histórias não são sossegos encomendados. Inexistimos sem narrativas. O difícil é encontrar o começo ou se desviar das armadilhas. A arte se apresenta, então, como uma transcendência que celebra a beleza e a simultaneidade. Deus morreu, não questiono Nietzsche. No entanto, a produção das almas e das incertezas sempre desfaz a possibilidade do ponto final. Interiorizo. A narrativa está na tela com as inseguranças que me tornam passageiro da mundo. Sou cigano e refugiado, por mais que me resuma na intimidade das palavras. Elas também são imagens atordoadas. A travessia da aridez faz o riso tímido do vagabundo de Chaplin me desenhar a forma e o tamanho do meu circo.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

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