A escola é um lugar dinâmico e rico, principalmente no plano das interações sociais. No entanto, toda essa efervescência não existiria sem alguns instrumentos básicos para a aprendizagem e para a regulação das relações. Dois bons exemplos disso são o caderno do aluno e o livro de ocorrências, duas coisas tão naturalizadas na cultura escolar que geralmente não damos a devida atenção a elas.
Tanto o caderno do aluno quanto o livro de ocorrências são dois instrumentos que estão se consolidando como objetos de pesquisa no meio acadêmico. Embora a gente não se dê conta disso, o caderno do aluno é um instrumento complexo que requer o desenvolvimento de algumas habilidades para que ele seja utilizado adequadamente, especialmente quando se trata de crianças em processo de alfabetização. Sobre o livro de ocorrências não é diferente e é dele que falaremos nesse texto.
O que é o livro de ocorrências?
No Brasil, o livro de ocorrências disciplinares se tornou um dos principais dispositivos criados para lidar institucionalmente com os conflitos na escola, especialmente quando se trata de problemas mais sérios como o desrespeito ao/à professor/a e as atitudes que atentam contra a dignidade dos colegas de escola. O registro de uma ocorrência ou de um conflito é feito para marcar um rito e significa que a mediação deve ser mais cuidadosa, tanto para acolher adequadamente a pessoa que se sentiu desrespeitada quanto para cuidar para que o impasse seja resolvido.
Esse rito que envolve a narrativa de uma discórdia registrada em livro e que, portanto, soa mais sério, passou a ser incorporado na rotina escolar, a ponto de se tornar importante para os profissionais da escola, para os alunos e até mesmo para as suas famílias, uma vez que a exigência de escrever sobre o ocorrido também pode partir dos estudantes e dos seus pais ou responsáveis.
A perpetuação desse tipo de conduta institucional nas escolas se deve ao fato de o livro de ocorrências disciplinares ter se tornado um traço importante da tão conhecida cultura escolar, que, nas palavras do sociólogo norte-americano Willard Walter Waller, é uma cultura que se distingue daquela existente em qualquer outra instituição, devido aos seus valores, práticas e sistema simbólico. É nesse sistema simbólico que o livro de ocorrências se enquadra e, por isso, ele se tornou um objeto tão peculiar e tão essencial na rotina escolar.
Afinal, o livro de ocorrências é bom ou ruim?
Esta é uma boa pergunta para os/as diretores/as e para os/as professores/as das escolas brasileiras, e não só para aquelas escolas que adotaram o livro de ocorrências. Em tese, como qualquer outra coisa, o livro, por si só, não é bom e nem é ruim. Depende do uso que se faz dele. Em alguns lugares esse registro não passa de algo meramente burocrático, ao passo que em outros ele se tornou uma fonte preciosa de informações para a gestão, para os educadores e para as famílias.
O fato incontestável é que o livro de ocorrências pode ser um instrumento de coleta de dados indispensável para se tomar conhecimento do que acontece no dia a dia da escola, principalmente quando se trata dos problemas de relacionamento entre crianças e jovens. Para que isso ocorra, é importante tomar consciência desse potencial e decidir coletivamente sobre o uso que deve ser feito desse instrumento, até mesmo para saber o que extrair dele.
O que pode ter de importante no livro de ocorrência?
Para que o livro de ocorrências cumpra um papel fundamental na mediação dos conflitos e se torne um instrumento de coleta de dados para ajudar a compreender alguns problemas na escola ele deve ser pensado em duas etapas que são, a um só tempo, diferentes e complementares.
Em primeiro lugar, a maneira de descrever os acontecimentos deve ser considerada. Se o livro de ocorrências é um lugar de narrativas estas devem ser feitas na perspectiva de quem quer entender e esclarecer o ocorrido, não um relato de quem está fazendo um julgamento parcial, que pode comprometer a legitimidade da mediação que está sendo feita. Nesse sentido, a crença dos alunos no valor do instrumento passa pela imparcialidade da narrativa e do senso de justiça da pessoa que está mediando o conflito.
Em segundo lugar, o livro deve ser um instrumento vivo e dinâmico a ser utilizado pela escola para conhecer os problemas a partir dos dados que ele reúne e que podem se tornar informações valiosas para interpretar adequadamente fenômenos como a indisciplina e a violência, e até mesmo outros fenômenos mais complexos como a repetência dos alunos. Basta verificar para saber que boa parte dos alunos que protagonizam os conflitos na escola já passaram pela experiência da reprovação.
Que informações podem conter no livro de ocorrências?
Se os gestores escolares e os educadores chegarem à conclusão de que o livro de ocorrências não deve se tornar um mero objeto voltado para a lógica de disciplinamento dos estudantes, mas que ele deve ser um instrumento de coleta de dados que servirão para analisar e interpretar o ambiente de aprendizagem, várias informações estarão à disposição da escola. O livro de ocorrências pode nos dizer o que está acontecendo na escola. Nele podemos separar a indisciplina da violência e do bullying, só para citar um bom exemplo.
O aspecto de gênero
A primeira descoberta interessante que fazemos no livro de ocorrências é sobre o gênero dos estudantes que mais se envolvem nos eventos registrados. Geralmente, os meninos são os recordistas e isso nos informa sobre os tipos de masculinidades por trás desses comportamentos. Nesse caso, vale a pena saber também qual é a proporção de meninos e de meninas nas ocorrências e quais são os eventos mais protagonizados de acordo com o sexo dos estudantes.
Os alunos mais recorrentes nos registros
Em relação a isso, duas coisas podem ser observadas. Primeiro, que nem todos os meninos estarão presentes no livro de ocorrências da escola e, segundo, que alguns serão mencionados mais frequentemente, enquanto outros aparecerão, no máximo, em dois registros, pois esse tipo de mediação tem a sua eficácia.
A relação da faixa etária com certos tipos de eventos
O livro de ocorrências geralmente corrobora resultados de pesquisas sobre indisciplina e violência, ao constatar que certos tipos de conflitos ou de violências são mais comuns em alguns níveis de ensino, ou seja, os eventos protagonizados pelos alunos do 1º ao 5º ano serão diferentes daqueles protagonizados pelos alunos do 6º ao 9º ano e assim por diante, pois a idade do aluno diz muito sobre o que ele faz, sem desconsiderar que o sexo também é marcante nessa circunstância.
Os acontecimentos mais comuns
Alguns eventos se repetem mais frequentemente e localizá-los em algumas categorias pode ser extremamente útil. Quando se identifica os eventos mais comuns nota-se que os seus protagonistas também apresentam algumas características semelhantes e isso ajuda a compreender melhor cada um desses problemas.
O livro de ocorrência tem mesmo toda essa importância?
Sobre isso eu posso afirmar, com razoável segurança, que o livro de ocorrências é um instrumento muito valioso para lidar com os conflitos e para instaurar o clima de paz na escola. Para tanto, ele não pode se tornar uma fonte de ameaça e de medo para os alunos. Como bem já afirmou Ana Lúcia Silva Ratto, uma das pesquisadoras do tema, o livro de ocorrências não pode servir para objetivar os indivíduos e nem pode ser uma forma de explicá-los, classificá-los, avaliá-los ou defini-los. Tampouco deve ser visto como o lugar da escrita que vai isentar a escola de responsabilidades em conflitos mais graves que requerem a presença dos pais ou dos responsáveis. Não deve ser o lugar da confissão, seja através da palavra da criança ou assinando o livro e conferindo veracidade ao que nele consta, seja através daquilo que o adulto confessa por ela. Ao contrário de tudo isso, o livro de ocorrências deve ser uma fonte de pesquisa, onde os dados são transformados em informações, em virtude da relevância que eles apresentam.
Claudio Marques da Silva Neto é diretor da EMEF Infante Dom Henrique, em São Paulo. Tem experiência em direitos humanos, formação docente, cultura escolar, indisciplina, violência e gênero. É mestre e doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).
POR:
Cláudio NetoProfessor Edgar Bom Jardim - PE
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