segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Artes:Filme com Harry Dean Stanton conta a história de um homem que chegou ao fim de uma vida que não acaba

Em setembro deste ano, o ator Harry Dean Stanton faleceu, aos 91 anos. A carreira longeva começou em 1954, mas seu primeiro papel principal só chegou 20 anos depois, em Paris, Texas. O filme do diretor Wim Wenders o catapultou para a fama. Daí em diante, ele nunca mais voltou a ser anônimo, embora continuasse quase inteiramente dedicado a papéis de apoio. Ele foi o pai desempregado de Molly Ringwald no romance adolescente A garota de rosa-shocking; o apóstolo Paulo em Última tentação de Cristo, de Martin Scorsese; um detetive particular em Coração selvagem, de David Lynch; um juiz em Medo e delírio, de Terry Gilliam; um poligâmico corrupto na série Amor imenso, da HBO. Antes de morrer, Stanton retornou ao posto de protagonista. Ele estrela o filme Lucky, em cartaz no Brasil.
Harry Dean Stanton é um senhor que viveu demais no filme Lucky, o último de sua carreira (Foto: Divulgação)
Na superfície, o longa-metragem é a história de um homem velho e solitário, que atende pelo apelido de Lucky (sortudo, em português), e a vida rotineira que ele leva. Enquanto o público acompanha esse senhor frágil em sua travessia incessante pela cidade poeirenta onde mora, o filme ganha cada vez mais profundidade. Quando menos se espera, a trama se transforma em uma argumentação sobre grandes questões: a mortalidade e o significado da vida, o valor dos relacionamentos e a vulnerabilidade que eles exigem.
Lucky marca a estreia do ator John Carroll Lynch na direção – outro ator famoso por papéis secundários importantes, como em Fargo,Zodíaco Ilha do medo. Também é a primeira vez que um roteiro da dupla Logan Sparks e Drago Sumonja chega às telonas. Eles escreveram a história com Stanton em mente, o que explica semelhanças importantes entre personagem e ator: Stanton também serviu na Marinha durante a Segunda Guerra Mundial, nunca casou, nem teve filhos.
Todos os dias, Lucky segue uma rotina rigorosa. Liga o rádio, faz cinco exercícios de ioga com sua roupa de baixo, fuma três cigarros, toma um copo de leite frio (que ele retira de uma geladeira praticamente vazia), escova os dentes, penteia os cabelos, se troca e sai para uma caminhada. Ele para numa lanchonete, onde faz as palavras cruzadas e troca conversas espaçadas com os funcionários. Segue para uma loja de conveniência onde compra mais cigarros e leite. Então, vai para casa, onde assiste a programas de auditório. À noite, ele se dirige a um bar, para tomar drinques de  bloody mary e ouvir os moradores da cidade discursarem nostálgicos sobre suas vidas.
Lucky é como um relógio, que todos os dias faz as mesmas coisas e percorre a mesma volta. Até que um dia uma das engrenagens sai do lugar. Hipnotizado pelo visor digital de sua cafeteira, Lucky desmaia. Seu médico não encontra nada de errado, apesar da vasta idade do paciente. A causa da queda é simples: Lucky está velho. Seu corpo insiste em viver, mas aos poucos não aguentará mais o fardo. A ideia abala o protagonista. Ele sabe que o fim está próximo, mas está tão perto que é impossível enxergá-lo. Memórias antigas começam a borbulhar em seus pensamentos, e suas tendências eremíticas tornam-se mais pronunciadas e agressivas. Ao mesmo tempo, sua fala se torna mais caudalosa e profunda. Tomado pela iluminação de seu apagão, ele profere frases de efeito como: “Realismo é aceitar uma coisa como ela é. Mas o que você vê não é o que eu vejo”.
A idade avançada de Stanton contribui para deixar o retrato de um Lucky próximo da morte verossímil: ele caminha a passos curtos, com uma cadência bem marcada de quem busca equilíbrio cada vez que a sola do pé toca o chão. Os olhos escuros estão apoiados sobre bolsas inchadas, as bochechas têm vincos profundos e a fala parece precisar de uma força descomunal para passar dos pulmões à boca. Enquanto fuma seus cigarros, observa o nada, como quem não vê mais o futuro, porque já ultrapassou o seu próprio. Com seu charme, o personagem mostra como a velhice precisa ser vista com maior empatia por todos.
A única certeza que o ser humano tem é que um dia deixará de existir. O que acontece depois disso fica a cargo da fé (ou falta dela) de cada um. Enquanto os créditos de nossa vida não sobem, nos resta escolher entre ser protagonistas ou coadjuvantes. Harry Dean Stanton prova que é possível levar o filme de sua vida até o fim com maestria, mesmo que demore.
Época
Professor Edgar Bom Jardim - PE

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