segunda-feira, 17 de julho de 2017

Cotas em concursos: como definir quem é negro?



Foto: Shutterstock

Um edital de concurso da Prefeitura de São Paulo para professores, lançado em fevereiro de 2016, reservava 20% das vagas para negros, negras e afrodescendentes. Para assegurar a concorrência a essas vagas, era necessária apenas a autodeclaração. Mas, em dezembro do mesmo ano, a Prefeitura instituiu a Comissão de Análise de Compatibilidade com a Política Pública de Cotas com a intenção de confirmar a autodeclaração dos candidatos. Neste grupo devem estar presentes, entre outros, servidores da Prefeitura e representantes da sociedade civil com notório saber no campo das relações raciais.
A criação da comissão reacendeu o debate sobre como lidar com a definição de quem se enquadra dentro de cotas raciais. Um grupo de professores chamados por esse grupo contestaram a forma como a análise foi feita e também seus resultados. "Algumas das pessoas indeferidas estavam com cabelo alisado. Mesmo quando falamos que somos afrodescendentes, e mostramos fotos dos nossos pais, nos foi negada a cota. Agora, vamos entrar com recursos", conta uma professora que não quis se identificar.
É essa possível subjetividade nos comitês antifraudes que faz algumas pessoas serem contra a comissão. A polêmica existe desde que dois irmãos gêmeos passaram no vestibular da Universidade de Brasília (Unb), em 2007, mas apenas um foi definido como negro pela banca.
Petrônio Domingues, professor do departamento de História da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e estudioso do movimento negro, é contra as comissões. Em entrevista à Carta Capital, Petrônio afirma que "raça não existe cientificamente. No limite, é um critério político de definição. Raça é uma invenção, uma construção. Qualquer comissão que for constituída vai usar também critérios políticos e arbitrários". O professor defende o sistema de autodeclaração, mesmo com o risco de haver algum caso isolado de fraude. "O perigoso é partir dessa comissão todo o sistema de ações afirmativas e o sistema de cotas em especial perder credibilidade, ser colocado em xeque em função disso", diz.
No entanto, grande parte do movimento negro é a favor das comissões, justamente por reduzir o risco de candidatos usarem de má fé. "A fraude é minoritária, mas existe", diz o professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, Dennis Oliveira.
Em agosto de 2016, o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão publicou uma orientação normativa sobre regras de aferição da autodeclaração prestada por candidatos negros em concursos públicos de órgãos federais e instituições que respondem à União. Segundo o documento, que você pode ver aqui, cada edital deve prever e detalhar os métodos de verificação, indicar como será composta a comissão e em que momento do processo ela ocorrerá. Ou seja, apesar de explicar quais os fatores são necessários para os comitês avaliativos, cada organização continua livre para desenhar o seu processo avaliativo.
Para entender como as comissões podem fazer jus à importância da política de cotas, conversamos com três especialistas. Eles concordam que devem haver comitês e mostram a diversidade de possibilidades para esse controle.
Olhando o fenótipo
A comissão que analisa principalmente a cor da pele dos candidatos leva em consideração "a metodologia da polícia", segundo Frei David Santos, diretor da ONG Educafro, uma rede que promove a Educação para afrodescendentes e jovens carentes. "Sofrem racismo institucional apenas os afrodescentes pretos, pardos-pretos ou pardos-pardos. Os pardos-brancos não são revistados pela polícia onde quer que vão", explica o diretor.
Para Frei David, as comissões têm o objetivo de não permitir que as pessoas brancas se façam passar por negras para tirar as vagas daqueles que realmente precisam da política afirmativa. "Em toda política pública há fraude. Da mesma forma que deve haver controle das famílias beneficiadas pelo Bolsa Família, também deve haver controle das pessoas que se autodeclaram pretas e pardas nos concursos e vestibulares."
Na opinião do ativista, mesmo que tenham afrodescendência, aqueles que têm a pele mais clara devem concorrer às vagas junto aos brancos, na chamada ampla concorrência. "Pensando na política de cotas, não devemos olhar apenas para o genótipo. O fenótipo é mais importante e a prioridade deve ser atender sempre os que têm a pele mais escura, que são os que mais sofrem preconceito", diz.


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Comissões mais abrangentes
Dennis Oliveira, professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), concorda que deve haver mecanismo de controle em todas as políticas públicas. "Infelizmente, a autodeclaração não é suficiente. Já presenciei casos de pessoas brancas que fizeram bronzeamento artificial. As fraudes são usadas, inclusive, para desmoralizar essa política tão importante", diz.
Ele defende a existência de uma mistura de critérios, como documentação dizendo se a pessoa é parda ou negra. Outra forma de atestar a afrodescendência é a comprovação de que pai ou mãe são negros ou pardos. "O conceito de pardo é muito amplo, mas se estiver escrito na certidão de nascimento que aquela pessoa é parda, não tem como recusar um documento oficial."
E o que é pardo? Segundo Dennis, um dos 120 professores negros da USP (apenas 2% dos 6 mil da instituição), as pessoas pardas são aquelas que tem mãe negra e pai branco ou vice-versa. Ou aquelas cujos ambos os pais são pardos. Ainda assim, nem sempre é possível determinar a cor da pessoa, principalmente quando não há essa informação na documentação de nascimento ou quando o pai é desconhecido, por exemplo. "Também não existe um racismômetro que aponte quanto preconceito uma pessoa sofre", diz.
Para estes casos, Dennis defende que as comissões realizem pequenas entrevistas para entender o grau de pertencimento do candidato. "Esse questionário não pode ser algo traumático. Serve apenas para evitar que a política de cotas seja fraudada", explica o professor. Na opinião dele, a simples possibilidade de se fazerem comissões pode inibir que brancos tentem burlar as cotas.
Como funciona uma comissão
Para o advogado Rodrigo Gomes, mestrando da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em direito constitucional e comunidades quilombolas, o primeiro passo para ter uma comissão justa é entender que cada cidade ou universidade vive uma realidade específica. Segundo ele, Salvador e São Luís têm uma realidade racial completamente distinta de Brasília, por exemplo. E é importante que cada instituição tenha essa consciência.
"Fiz parte da comissão da pós-graduação em Direito da Unb, que tem um número bem menor de candidatos. A Universidade de Brasília foi a primeira do Brasil a instalar as cotas e, por isso, temos essa perspectiva cultural tão importante", diz.
Impedir fraudes é uma função da comissão, mas não a única, segundo Rodrigo. "Nosso outro objetivo é auxiliar e acompanhar o ingresso e a permanência dos estudantes negros e indígenas na universidade. Isso é essencial, porque a academia ainda é um espaço estrutural feito para pessoas brancas", diz.
O comitê participa de toda a seleção, mesmo que a etapa não tenha relação com a política afirmativa em si. A ideia é conhecer os candidatos desde o início e acompanhar a forma como a universidade conduz o processo seletivo. O grupo participa também das entrevistas dos candidatos brancos.
Segundo Rodrigo, nunca houve caso de fraude. "A existência da comissão traz um autocontrole de quem vai se inscrever”, diz. “Também por isso é importante estarmos presentes desde o edital até a aprovação, permanecendo durante os anos de estudo e pesquisa do discente", argumenta. "Os membros da banca, em sua totalidade negros, pardos ou indígenas, sempre concordam com a autodeclaração do candidato."
Apesar de nunca ter presenciado essa divergência, Rodrigo entende a preocupação. "O que é o negro no Brasil? Essa é uma pergunta sem resposta. Eu concordo que a polícia, por meio do racismo estrutural, sabe identificar quem é e quem não é. Mas temos que ir além desse pensamento", diz. "A pessoa parda é uma construção da branquitude, é fruto de um processo de embranquecimento da população. Uma instituição com poucos negros tem uma vivência branca, um entendimento branco. Ela vai embranquecer as pessoas ao dizer que o pardo é branco."
Isso não significa que as comissões não devem ter pessoas brancas ou que deve ser constituída apenas de estudantes. "Ela tem que ser composta por servidores, membros da administração, do corpo docente, do corpo técnico. Tem que ter também participação da sociedade civil para refletir a realidade de cada local."

Rodrigo entende a autodeclaração como uma estratégia contra esse pensamento. "É o fortalecimento da identidade negra. O autorreconhecimento como negro. E aí isso fica claro para a comissão, porque a pessoa que se enxerga como negra já viveu diversas experiências na vida que comprovam a sua identidade, como o racismo", explica.
Caroline Monteiro. Nova escola.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

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