terça-feira, 9 de abril de 2024

A dificuldade dos brasileiros de encontrar trabalho depois dos 50 anos: 'Pessoas nos julgam como inferiores'




Homem de cabelo branco sentado aguardando ao lado de cadeiras vazias

CRÉDITO,GETTY IMAGES

  • Author,Priscila Carvalho
  • Role,Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil

Desempregada há um ano, a publicitária e designer gráfica Sibele Monice, de 57 anos, vive o que muitos brasileiros enfrentam nesta faixa etária: a dificuldade de encontrar emprego.

Desde a sua demissão, em fevereiro do ano passado, ela conta que conseguir vagas de trabalho com carteira assinada está cada vez mais raro.

Além do alto salário que ganhava em sua última empresa, a publicitária atribui a dificuldade de uma recolocação ao etarismo (preconceito contra a idade) por parte das organizações.

"Sinto que há esse preconceito e o etarismo tanto no mercado de trabalho quanto nas redes sociais. As pessoas acreditam que quem tem 50+ parou no tempo, mas isso não é verdade", diz


A profissional já chegou a ouvir que era muito qualificada para vaga, que seu currículo impressionava, mas que não podiam pagar o que ela valia.

Sibele Monice

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL

Legenda da foto,'As pessoas acreditam que quem tem 50+ parou no tempo, mas isso não é verdade', diz Sibele Monice

De fato, a dificuldade para o público a partir de certa faixa etária encontrar um trabalho é uma realidade no Brasil.

Uma pesquisa realizada no meio do ano passado, pelas companhias Robert Half e Labora, que atuam na área de recrutamento e inovação, mostra que cerca de 70% das empresas contrataram muito pouco ou nenhum profissional com mais de 50 anos. Na prática, isso representa 5% das novas contratações.

Feito com mais 258 empresas, o estudo aponta ainda que cerca de 80% dessas organizações ainda não "estabeleceram métricas para avaliar o sucesso de suas iniciativas de inclusão da diversidade geracional".

desemprego nessa idade chama ainda mais atenção, segundo os últimos números divulgados pela empresa IDados, consultoria especializada em análise de dados e soluções para aumentar o impacto e produtividade de empresas, organizações públicas e do terceiro setor.

De acordo com a entidade, em 2012, o número de desempregados acima de 50 anos era de 508,9 mil pessoas. Atualmente, eles já são aproximadamente 1,4 milhão de pessoas em busca de oportunidade de trabalho.

Eles querem e precisam trabalhar

Com a inversão da pirâmide etária no Brasil e prolongamento da expectativa de vida da população, é cada vez mais comum ver pessoas mais velhas trabalhando.

E se antes havia a ideia de que o país era formado por maioria jovem, esse cenário mudou, reforça Maria José Tonelli, professora no departamento de Administração Geral e Recursos Humanos na FGV-EAESP.

"As empresas não se dão conta que a população brasileira está envelhecendo, embora os dados sejam evidentes", diz a especialista.

Essa transição também foi percebida em relação à aposentadoria, tanto no Brasil quanto no exterior. "Nós tínhamos socialmente um modelo de que as pessoas chegavam nos 50 e 60 e tinham que se aposentar, mas isso não é mais factível", destaca Tonelli.

Sibele concorda e ressalta que, mesmo tendo quase 60 anos, ainda precisa trabalhar e não pensa em se aposentar por enquanto. Com dificuldade em arranjar alguma vaga CLT — o regime celetista —, ela segue trabalhando como freelancer.

No entanto, até para vagas temporárias, a designer afirma que encontra uma certa resistência de quem contrata, mesmo que seja de forma velada.

"A gente passa uma vida se desenvolvendo para encontrar pessoas que nos julgam incapazes ou inferiores, por conta da idade. É triste e desafiador ao mesmo tempo", diz.

A aposentada Maria Aparecida de Oliveira tem 63 anos e afirma que está mais difícil encontrar trabalho na área financeira, posição que atuou por anos, até se aposentar pela iniciativa privada.

"Quero aumentar a minha renda e estou procurando trabalho há mais ou menos seis meses", diz.

Mesmo não sofrendo um preconceito direto pela idade, ela diz que, atualmente, só se depara com vagas de trabalho para atuar como atendente de telemarketing ou demonstradora de produtos de supermercado.

Segundo a professora da FGV, para que pessoas mais velhas voltem para o mercado de trabalho e ainda atuem na área de formação, é necessário desmistificar os estereótipos que essa população sofre. "É preciso vencer esse marcador social que é a idade", afirma.

Preconceito inconsciente

Embora seja contra a lei colocar um limitador de idade em anúncios de contratações de trabalho, as empresas podem fazer isso de forma indireta.

Assim como a sociedade, muitas companhias podem reproduzir etarismo de forma inconsciente nos processos seletivos, segundo os especialistas.

Para mudar esse cenário, é necessário criar políticas eficientes, desde as primeiras etapas da entrevista.

"Quando olhamos para as empresas, temos que ter um olhar da prática empresarial. A empresa tem políticas concretas sobre esse assunto ou é algo que só fica no dia a dia", indaga Miriam Rodrigues , professora do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).

Eliminar um candidato simplesmente pela idade deve ser algo impensável e uma prática condenável nas organizações, segundo Rodrigues.

"Qualquer aspecto que seja discriminatório, a gente já coloca um carimbo. Competência não tem carimbo de validade", diz a professora do Mackenzie.

Outro aspecto que precisa ser levado em consideração na hora das contratações, é, de fato, a qualificação daquele profissional e não a idade.

Quando questionado se sabe mexer com tecnologia, por exemplo, qual o tipo de ferramenta o contratante quer que o candidato saiba para determinada função de trabalho.

"As tecnologias mudam com uma velocidade absurda. Pressupor que ele não está atualizado apenas pela idade dele é um preconceito imenso", diz.

Em alguns casos, a maneira mais fácil de avaliar uma pessoa para determinado cargo é por meio de testes práticos, que realmente permitam ao profissional demonstrar seu conhecimento.

Mulheres 50+ sofrem mais para conseguir emprego

A questão de gênero também é um forte indicativo quando falamos de desemprego entre pessoas acima dos 50 anos. No caso das mulheres, a dificuldade para uma recolocação se inicia até antes dessa idade.

"As mulheres começam a perceber o envelhecimento delas na força de trabalho aos 40 anos de idade", afirma Tonelli.

Há, ainda, uma cobrança excessiva em relação à aparência da mulher que, muitas vezes, não ocorre da mesma forma com os homens. Esse estigma social, segundo Tonelli, se reflete constantemente no mercado de trabalho.

"Se a mulher deixa o cabelo branco é vista como desleixada. Mas os homens que ficam com cabelo branco não são vistos com preconceito. Neles, isso significa experiência."

Ainda de acordo com o estudo da Robert Half e Labora, os profissionais desta faixa etária, que ainda atuam no mercado, são em sua maioria brancos e homens.

O levantamento também apontou que das 258 empresas que participaram da pesquisa, 36,47% afirmou que tem menos de 5% de mulheres 50+ no quadro de funcionários. Já 9% das empresas que responderam não tinham nenhuma mulher 50+.

De acordo com especialistas, esses efeitos são ainda mais intensos no caso de mulheres pretas, que também precisam lidar com questões misóginas e racistas.

"A hora que a gente pega todas as interseccionalidades, uma mulher preta 50+, tem mais desafios ainda para combater todos os ismos", destaca Andrea Tenuta, head de novos negócios da Maturi, empresa que atua na capacitação de pessoas com mais de 50 anos.

Ela ainda acrescenta que incentivar a educação e o letramento sobre o assunto não tem a ver só com o combate ao etarismo, mas, também, com as interseccionalidades.

A problemática se estende também à população LGBTQIAP+, que sofre com preconceitos diários e tem uma baixa expectativa de vida no Brasil.

"Os grupos de diversidade, os grupos sub-representados no mercado de trabalho, sofrem mais quando tem aí essa sobreposição dessas identidades", diz Tenuta.

Sete meses para conseguir uma vaga

Selma Dias

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL

Legenda da foto,Selma conta que chegou a ser questionada por dois jovens se sabia o que era tecnologia durante uma entrevista de emprego

Em dezembro do ano passado, a executiva de relacionamento com o cliente, Selma Dias, de 56 anos, conseguiu se recolocar em sua área.

Mas o processo foi bem difícil, segundo ela. Foram muitas entrevistas, currículos enviados, rede de networking acionada, mas demorou sete meses até conseguir voltar ao mercado de trabalho.

"Nunca me disseram diretamente sobre a idade, porém,os feedbacks indiretos eram muitos", diz.

Para Selma, o principal entrave durante o tempo em que ficou desempregada foi, justamente, conseguir uma entrevista.

Uma vez, durante uma entrevista de emprego, chegou a ser questionada por dois jovens se sabia o que era tecnologia. "Naquele momento, encerrei a entrevista.Só mostra o despreparo até para entrevistas de empregos de pessoas 50+", diz, indignada.

Mesmo tendo 25 anos de experiência em liderança no atendimento ao cliente e trabalhando em locais conceituados, encontrar empresas que eram abertas à diversidade, foi muito custoso.

Sempre que chegava ao final de um processo seletivo, com o gestor da vaga, Selma não era aprovada, e não recebia um retorno claro.

Na visão dela, a recusa ocorria pelo fato de que alguns líderes se sentiam ameaçados por ter uma pessoa mais experiente, e não levavam em consideração a ideia de ter um profissional que agregasse valor.

"Minha percepção, durante essa fase de transição, é que o preconceito ocorre mais pelos líderes requisitantes das vagas, do que pela área de RH", diz.

Hoje, trabalhando há quase três meses em uma nova companhia, ela conta que tem esperança de que o olhar para o profissional 50+ mude.

"Atualmente, estou trabalhando em uma empresa de serviços que se diferencia por realmente ser aberta à diversidade e por perceber que esse é um benefício inigualável para todos", ressalta.

Como resolver o problema?

Para aumentar a inserção desses profissionais no mercado de trabalho, é preciso pensar em ferramentas individuais, práticas organizacionais e na atuação do governo nesse processo.

"Estamos falando de sociedade. A população japonesa é envelhecida e o governo investiu na capacitação tecnológica dos mais velhos", destaca Tonelli.

Em relação às empresas, o ideal é avançar de modo geral na capacitação do profissional, dando um olhar diferenciado para aquele indivíduo mais velho.

Além disso, mudar a forma de como aquele candidato pode ser aproveitado para determinada função, é extremamente importante.

"Vamos precisar conviver com novas formas de trabalho e posições que privilegiam os diferenciais que a idade traz", diz Sérgio Serapião, co-fundador e CEO da Labora.

Ele explica que em setores de varejo, é muito difícil aproveitar uma pessoa 50+ em posições que a deixem muito tempo em pé. O ideal é que seja uma posição positiva para que possa extrair o melhor daquele candidato.

Para Serapião, é necessário ainda que as empresas mudem suas dinâmicas para conseguirem se tornar mais plurais. Pensar em mudanças significativas faz toda a diferença, segundo ele.

"O mais importante é o formato de trabalho. É fundamental pensar em jornadas curtas, que tenham um equilíbrio entre o trabalho e a saúde", afirma.

Por último, é preciso ter ações individuais. O profissional precisa estudar, buscar avanços e seguir na busca por emprego.

O ideal é fazer isso da maneira tradicional, e também procurar ajuda de empresas especializadas nesse tipo de recolocação de pessoas mais velhas.  BBC BRASIL

Professor Edgar Bom Jardim - PE

domingo, 31 de março de 2024

Famílias famintas e mães desdentadas: o retrato da miséria na ditadura que ficou 'escondido' nos arquivos do IBGE




Pesquisador do IBGE entrevistando duas mulheres na porta de uma casa simples

CRÉDITO,IBGE

Legenda da foto,

O IBGE enviou 1200 pesquisadores para investigar o consumo familiar em 1974 e 1975



O Brasil vivia a rebarba do milagre econômico — período de acelerado crescimento na primeira metade da Ditadura Militar (1964-1985) — quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) colocou nas ruas 1.200 pesquisadores para percorrer o país e investigar o consumo das famílias, em especial a alimentação, numa das pesquisas mais ousadas e pioneiras da instituição.

Durante 1974 e 1975, o Estudo Nacional de Despesa Familiar (Endef) acompanhou 55 mil residências em todos os Estados, em áreas ruais e urbanas, por sete dias, período em que os pesquisadores acompanhavam os hábitos alimentares dos moradores em todas as refeições, inclusive pesando os alimentos e as sobras.

Para que as famílias não tivessem receio em abrir seus lares e seus hábitos para os pesquisadores, foi lançada a campanha "Abra a porta para o IBGE", com a atriz Regina Duarte como garota-propaganda.

A ampla pesquisa tinha "objetivos múltiplos para atender, basicamente, as necessidades de planejamento do governo", dizia uma publicação de 1978 com parte dos resultados. O IBGE precisava conhecer melhor o consumo das famílias para desenvolver índices de preço (medidas de inflação), indicadores sociais e aperfeiçoar o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB

Ou seja, o Endef serviria como base para outras pesquisas fundamentais para entender o país e planejar a atuação do Estado, naquele momento regido por uma ditadura — regime iniciado há sessenta anos, com o golpe de 31 de março de 1964, que derrubou o presidente João Goulart.


Fim do Matérias recomendadas

Esperava-se também, com a pesquisa, obter uma mapa das deficiências alimentares da população. A importância do levantamento era exaltado em editorial do Jornal do Brasil de agosto de 1974, quando teve início o trabalho de campo.

"Acaba o IBGE de iniciar, em âmbito nacional, um recenseamento menos espetacular que o da população, mas que poderá exercer incalculável influência no planejamento nacional e na própria humanização do país", dizia o jornal.

Cartaz com Regina Duarte sorrindo em que se lê: Abra a porta para ao IBGE

CRÉDITO,IBGE

Legenda da foto,

Regina Duarte, a 'namoradinha do Brasil', foi contratada como garota propaganda do Endef



O aspecto mais inovador do estudo, porém, não serviria diretamente aos objetivos estatísticos, embora fosse considerado essencial para entender as condições de população pelo diretor do Endef, o sociólogo e ex-oficial da Marinha Luiz Afonso Parga Nina.

Por ideia dele, foi inserido nos questionários um espaço para anotação livre, em que era sugerido aos pesquisadores que fossem relatados suas impressões pessoais sobre a situação dos entrevistados e a realização das entrevistas.

O resultado foi um registro detalhado da miséria e da fome que atingiam boa parte da população, apesar do ritmo acelerado de crescimento econômico dos anos anteriores. Essa parte do estudo foi publicado, mas acabou tendo sua circulação restrita, levantando suspeitas de censura pela Ditadura Militar, algo que não chegou a ser comprovado e até hoje é alvo de controvérsia.

"Já fizemos uma média de 120 domicílios, estando 70% na faixa de nível baixo, 20% casos extremos e 10% pessoas que conseguem o necessário para viver. Neste último caso, considero as pessoas que têm um emprego fixo, mas vivem privadas de muita coisa ainda", diz um dos relatos sobre a pesquisa em Uberlândia (MG).

"Nas duas primeiras faixas, a base da alimentação é farinha de mandioca muito grossa feita em casa. O vestuário é sempre doado e, nos casos extremos, as pessoas cobrem o corpo com trapos disformes e imundos que cheiram mal", continuava.

Outro relato, de uma pesquisadora que atuou em Boa Vista (RR), descrevia sérios problemas de saúde da população local: "Devido à má alimentação, são seres totalmente predispostos aos males do meio ambiente. Desde que uma dessas famílias tinha vindo do interior, ninguém pergunta se não teve 'malária' ou até mesmo 'hepatite' porque são doenças comuns no interior."

"Mediante as dificuldades na compra dos remédios, são pessoas que ficam maltratadas para o resto da vida. As mulheres não são privilegiadas. Depois do primeiro filho, perdem logo os dentes (falta de cálcio) e sofrem as consequências de um parto mal feito durante muito tempo", segue o relato.

"Em um domicílio, o homem da casa está enfraquecido devido à falta de alimentação e a senhora dele está débil mental em consequência de um parto mal feito. As crianças são raquíticas, de cor pálida e frequentemente com tosse", descreveu ainda a pesquisadora.

No interior do Paraná, são vários os relatos da equipe do IBGE sobre a dura vida das famílias de boias-frias, que trabalhavam por diárias em fazendas da região.

"A fome tomava conta dos pequenos corpos humanos que habitavam a bela fazenda de café. (...) Soubemos de uma família que ia para o trabalho sem a pequena marmita de almoço, substituíam-no por 'coco guavirova' ou até chegavam ao extremo de comer folha seca de café."

A BBC News Brasil teve acesso à publicação original da pesquisa — hoje disponível online — e a um compilado de relatórios semestrais dos pesquisadores do Endef produzido pelo setor de memória do IBGE em 2014.

'Distribuição restrita'

A BBC News Brasil conversou com o servidor aposentado do IBGE Maurício Vasconcellos, que atuou por anos em diferentes etapas do Endef e, depois, chefiou alguns setores do instituto, como o Departamento de Censo Demográfico.

Ele acompanhou parte do trabalho de campo e chegou a presenciar a morte de um bebê durante o processo de entrevista, devido à extrema vulnerabilidade da família, mas não quis contar detalhes para não se emocionar.

"Esse estudo é terrível, porque, se você for ler, você vai chorar o tempo todo", recorda.

Ele se refere a uma publicação que ganhou o nome de "Estudo das informações não estruturadas do Endef e sua integração com os dados quantificados", produzida por Parga Nina, a partir dos relatos de campo.

Empolgado com a riqueza desse material, o diretor do Endef solicitou relatórios semestrais sobre as pesquisas de campo e sistematizou o material nessa publicação, criando categorias para os relatos, como "penúria alimentar", "condições de saúde e higiene", "emprego-desemprego" e "vida familiar".

"É evidente que algo deve ser feito para captar o que as equipes de campo observaram, sentiram, viveram, ao longo desse ano de trabalho. Seria absurdo não fazer esta tentativa, e estariam perdidas informações que podem ser tão importantes e, em certos aspectos, mais importantes que os dados dos questionários", dizia a introdução do trabalho.

"Não há nenhum sentido em procurar entender a 'realidade sócio-econômica' através de pesquisas, em qualquer campo, se não houver também um esforço para tentar compreender, por um mínimo de convivência, de simpatia, de contato direto, a dimensão humana do que está sendo investigado", reforça outro trecho.

Apesar da grande importância dada a esse trabalho, ele não foi divulgado ao público. Foi impressa uma pequena tiragem de 250 cópias e algumas delas foram enviadas sem alarde a órgãos públicos e bibliotecas, como o Ministério da Saúde e algumas universidades.

Alguns volumes da publicação que permanecem nos arquivos do IBGE tem em sua capa escrita a mensagem "Distribuição restrita", em letra cursiva que seria de Parga Nina.

Há também volumes com o carimbo de "confidencial", que, segundo Maurício Vasconcellos, foram adicionados por ele depois, já após à ditadura, quando exemplares que estavam com a família de Parga Nina retornaram ao IBGE, após a morte dele.

Ele disse à reportagem que tinha receio que de alguns relatos permitissem identificar os entrevistados, ferindo o sigilo que é legalmente garantido às pessoas pesquisadas.

Na sua visão, a decisão de não divulgar o material amplamente nos anos 1970 teria partido do próprio Parga Nina.

"Eram informações brutais, situações horrorosas. Aí ele publicou esses livros e decidiu fazer uma distribuição restrita", lembra.

Na sua visão, não houve uma censura direta do regime.

"A censura estava na imprensa. O IBGE publicava o que queria. Se o dado desagradasse o governo, ele não ia para o jornal. A gente tinha total liberdade para fazer o que quisesse e fazia", contou.

Capas de volumes da pesquisa Endef do IBGE, marcadas com o aviso "distribuição restrita" ou carimbo de "confidencial"

CRÉDITO,IBGE

Legenda da foto,

Exemplares da pesquisa foram marcados com o aviso de 'distribuição restrita'nos anos 70. O carimbo de 'confidencial' foi acrescentado após a Ditadura, segundo o servidor aposentado do IBGE Maurício Vasconcellos

A socióloga Cecília Minayo, pesquisadora aposentada da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), conviveu de perto com Parga Nina nos anos 80, quando ele saiu do IBGE para a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Lá, os dois desenvolveram uma espécie de desdobramento do Endef em menor escala, pesquisando zonas de pobreza no Rio de Janeiro.

Na sua leitura, a decisão de restringir o material seria reflexo de pressões externas e internas. Ela lembra que ele teria virado motivo de piada entre parte do corpo técnico do IBGE, que considerava as pesquisas qualitativas que ele desenvolveu estranhas ao foco estatístico do instituto, embora Parga Nina contasse com o apoio do presidente do órgão, Isaac Kerstenetzky.

"(E por parte) Dos militares, era o medo de que o Brasil grande, o Brasil do ame-o ou deixe-o, pudesse produzir pessoas que comiam barro, comiam fezes, comiam ratos, como a pesquisa de campo mostrou", recorda Minayo.

O Endef, estudo ainda hoje pouco conhecido, teve seu momento de fama logo após o fim da ditadura, quando a revista IstoÉ descobriu essa parte não divulgada da pesquisa.

A publicação deu uma reportagem de capa para o tema em outubro de 1985, com a manchete "Fome Censurada", sobre a imagem de uma criança pobre, nua, segurando um rato.

Parga Nina negou que tenha havido censura em uma carta à revista, disponibilizada à BBC News Brasil por Maurício Vasconcellos.

"O trabalho foi realizado pela administração Isaac Kerstenetzky, com participação pessoal do presidente. Seria totalmente incoerente que viesse ela a fazer sobre seu próprio trabalho a censura descrita na reportagem, ou no editorial", respondeu.

Segundo Leandro Malavota, historiador da Equipe Memória IBGE, não há elementos históricos que permitam responder com certeza por que parte do estudo teve circulação restrita. Na sua leitura, houve uma espécie de autocensura, relacionado ao contexto da ditadura.

"O Endef é o reverso do milagre econômico. Ele mostra o Brasil que a ditadura não queria mostrar. Então, ainda que eu não tenha encontrado nas minhas pesquisas qualquer tipo de determinação formal para que aquelas informações não fossem divulgadas, eu acho que, de certa forma, houve uma contenção por parte dos próprios participantes daquela pesquisa para que aquelas informações muito sensíveis não chegassem ao público", avalia.

Capa da revista IstoÉ de outubro de 1985 com a manchete "Fome Censurada", sobre a imagem de uma criança pobre, nua, segurando um rato

CRÉDITO,REPRODUÇÃO ISTOÉ

Legenda da foto,

Pesquisa foi revelada para o grande público após fim da ditadura, em reportagem de 1985 da IstoÉ

Malavota ressalta que o IBGE, desde sua criação nos anos 1930, no governo de Getúlio Vargas, até a ditadura militar, era visto como um órgão que atendia aos interesses de planejamento do Estado. Ou seja, apenas após a redemocratização, o órgão passou a ser visto como uma instituição voltada para a sociedade, com aumento da transparência.

Ainda assim, lembra ele, as pesquisas costumavam ser divulgadas, como ocorreu com a parte estatística do Endef.

Esse material, porém, não gerou grandes reportagens, até porque o IBGE divulgou, em etapas, dados bem detalhados sobre quantidade de calorias e tipos de nutrientes ingeridos pela população em diferentes regiões, mas não produziu de imediato um indicador mais geral a partir desses números, como qual seria o índice de desnutrição da população — cálculos feitos posteriormente por Maurício Vasconcellos em sua tese de doutorado a partir de dados do Enfed identificaram, numa estimativa conservadora, que ao menos 22% do universo pesquisado seriam de subnutridos.

Uma busca da BBC News Brasil nos arquivos dos jornais O Globo e Jornal do Brasil identificou registros breves sobre os resultados do Endef.

Em oito de março de 77, por exemplo, o jornal O Globo noticiou sem grande destaque a divulgação dos dados preliminares do Rio de Janeiro e da região Sul, que contou com a presença de Isaac Kerstenetzky .

"No Rio de Janeiro, os dados obtidos pela pesquisa indicam que a população do Estado ingere, em média, uma quantidade adequada de calorias, enquanto que a quantidade de cálcio ingerido é menor que as suas necessidades, e a ingestão de proteínas, ferro e vitaminas é superior ao necessário", registrava o jornal.

A matéria acrescentava que não era possível fazer "uma comparação entre a dieta alimentar da população da Baixada Fluminense e aquela de áreas habitadas por pessoas de nível de renda mais elevado".

"O presidente do IBGE explicou que o ENDEF não foi concebido para desagregar os dados a esse nível. Isso, inclusive, em sua opinião, não seria justificável. Para ele o importante é relacionar a dieta alimentar com outros dados como, por exemplo, profissão e a situação econômica dos comensais", dizia ainda a reportagem.

O baixo impacto do Endef junto à opinião pública contrasta com os resultados do Censo de 1970, que geraram forte debate nacional e incomodaram a ditadura ao revelar os altos níveis de desigualdade de renda do país.

Ainda assim, a pesquisa foi de fato usada no desenvolvimento de novos índices de preço e indicadores sociais, além de permitir um cálculo mais preciso do PIB, já que o consumo das famílias tinha — e tem ainda — um peso grande na economia brasileira.

Pesquisadora do IBGE fala com família em frente a uma casa simples

CRÉDITO,IBGE

Legenda da foto,

Relatos dos pesquisadores do IBGE captaram o 'reverso' do milagre econômico, diz historiador

O altos e baixos do IBGE na ditadura

A relação do IBGE com a ditadura militar teve altos e baixos, mas, em geral, o regime foi positivo para o órgão, afirmam ex-funcionários e estudiosos do tema.

Professor adjunto do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Candido Mendes (IUPERJ-UCAM), o sociólogo Alexandre Camargo diz que "os períodos de ouro" da capacidade de produção do IBGE foram momentos de Estado forte, como a Era Vargas e os anos 70, período da presidência de Isaac Kerstenetzky (1970-1979).

Eurico Borba, que foi diretor-geral do IBGE nos anos 70 e depois presidiu o instituto (1992-1993), contou em depoimento ao acervo de memória do IBGE que Kerstenetzky tinha grande prestígio com o ministro do Planejamento da época, o economista João Paulo dos Reis Velloso (1969-1979).

"Eu acho que nós fomos felizes, foi um período abençoado em pleno período militar, nos anos de chumbo, porque basicamente o professor Isaac tinha sido professor do João Paulo dos Reis Velloso. Quando eu levava os problemas e batiam na trave do Ministério do Planejamento, o professor Isaac resolvia", recordou.

Por outro lado, Borba via o então ministro da Economia, Delfim Netto, como "inimigo do IBGE", que teria boicotado o órgão devido aos resultados do Censo de 1970.

"Pouca gente se dá conta que o regime militar começou a balançar com a ideia do milagre brasileiro quando em 1972 nós lançamos um estudo preliminar com uma amostra de 1,85% dos questionários completos do Censo, mostrando que nós tínhamos um problema sério de distribuição de renda, de emprego, de qualificação da habitação, de saneamento, de educação", disse, no depoimento disponível em vídeo.

"E o presidente (Emílio) Médici fez aquele célebre discurso no aeroporto de Recife em que disse 'o Brasil vai bem, o povo vai mal'. O ministro Delfim Netto, desde aquela época, ficou inimigo do IBGE, prejudicando a importação de computadores", continuou.

"Tanto que a primeira parte do censo dos anos 70 foi processada nos computadores da PUC-Rio, porque o Ministério da Fazenda, querendo justificar de qualquer maneira o milagre brasileiro que não existia, impediu a importação dos equipamentos que nós já havíamos comprado da IBM", contou ainda.

Delfim Netto é ainda alvo de críticas quando foi ministro da Agricultura e Secretário do Planejamento no governo João Figueiredo (1979-1985), período em que teria tentando interferir no cálculo da inflação.

Aos 95 anos, Delfim Netto não quis comentar as críticas, por estar focado no cuidado da sua saúde, disse sua assessoria à reportagem.

Pesquisadora do IBGE posa com família pesquisada em frenta a sua residência

CRÉDITO,IBGE

Legenda da foto,

Estudo foi pioneiro em documentar a relação entre agentes do IBGE e público pesquisado

Para Maurício Vasconcellos, os ventos da democratização entraram como um furacão na instituição. De 1985 a 1993, foram oito presidentes diferentes, ressalta.

Na sua avaliação, o IBGE sofreu com a falta de um arcabouço institucional que lhe desse mais autonomia. "Não uma independência absoluta em relação ao poder executivo, mas uma forma de controle social que permita o mínimo de autonomia em relação ao poder público, suficiente para assegurar a continuidade administrativa e técnica necessária a realização de projetos que, não raro, atravessam mais de um mandato presidencial", defendeu em sua tese de doutorado.

Se o fim da ditadura trouxe mais instabilidade ao IBGE, também foi o momento da ganhos importantes de transparência e participação da sociedade no desenvolvimento das pesquisas, ressalta o sociólogo Alexandre Camargo.

"O IBGE se democratizou. (Passou a dar) Transparência e acessibilidade máxima às pesquisas, pontualidade nos resultados, (passou a ter) cobrança, participação de movimentos sociais na montagem das pesquisas", destaca.

"Então, é uma pressão que se colocou a partir dos anos 1980 e o IBGE respondeu muito bem. Hoje, é uma das instituições de Estado mais abertas a esse diálogo e pioneiras inclusive na disponibilização digital de banco de dados inteiros", reforça.

Camargo defende um resgate da importância dos relatórios de campo do Endef e um melhor tratamento desse material.

"(Essa pesquisa) Tem uma importância incrível para a memória e para a história das Ciências Sociais brasileiras. É o que se tem de mais documentado sobre como se dá a interação de um agente do IBGE com as pessoas em casa, e a barreira de classe sendo determinante no resultado a ser atingido", explica.

"Isso é uma agenda de pesquisa (que está) a mil hoje globalmente falando nas Ciências Sociais, no que envolve especialmente a construção de dados para políticas sociais. E isso (os relatos de campo do Endef) é um repertório magnífico, inteiramente desconhecidos e ainda sem tratamento", ressalta




  • Mariana Schreiber
  • Role,Da BBC News Brasil em Brasília

Professor Edgar Bom Jardim - PE