quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Como corte de verba ameaça atendimento à saúde de moradores de rua



Agentes de saúde do Consultório na Rua durante atendimento

CRÉDITO,DANIEL DE SOUZA

Legenda da foto,

Agentes de saúde do Consultório na Rua durante atendimento

Um morador de rua que chega a uma unidade básica de saúde pública pode ter dificuldade de conseguir atendimento por falta de documentação ou até por questões referentes às condições relacionadas à falta de moradia.

"Às vezes o exame de sangue só é feito às 7 da manhã naquela unidade, e essa pessoa não consegue chegar. Ou, se espera ali, pode ser retirado por agentes da prefeitura por não poder ficar em determinada calçada ou banco. Também há a questão de vestimenta, alguns são impedidos de entrar sem camisa, por exemplo, e até a crença da própria pessoa em achar que ela não pode entrar ali", diz Daniel de Souza, articulador nacional dos consultórios na rua, e parte do programa desde seu início, em 2012.

Foi com a intenção de fazer uma ponte entre agentes de saúde, assistentes sociais e outros serviços públicos que surgiu o Consultório na Rua, uma estratégia criada pela Política Nacional de Atenção Primária para ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde.

O serviço é composto por equipes multiprofissionais que desenvolvem ações integrais de saúde de acordo com as necessidades dessa população.

Em cinco anos, no período entre 2015 e 2020, estima-se que a população de brasileiros em situação de rua mais do que dobrou, passando de cerca de 102 mil para 222 mil, segundo estimativa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)


Apesar disso, dados de um estudo feito pelo Ieps e pelo Instituto Cactus, ao qual a BBC News Brasil teve acesso exclusivo, indicam que houve uma queda no investimento destinado ao programa Consultório na Rua.

Em 2019, o investimento foi de R$ 580.470. Pouco depois, em 2021, o investimento do Ministério da Saúde na área caiu para R$ 490.436, uma redução de cerca de R$ 90 mil.

A BBC News Brasil questionou o Ministério da Saúde sobre o investimento reduzido, mas não recebeu resposta até a publicação desta matéria.

Dados de pesquisa feita pelo IEPS e Instituto Cactus

CRÉDITO,IEPS (INSTITUTO DE ESTUDOS PARA POLÍTICAS DE SAÚDE

Legenda da foto,

Dados de pesquisa feita pelo Ieps e Instituto Cactus


"O programa é extremante importante e necessário para o atendimento da população de rua, e esse desmonte de investimentos, que também vemos no SUS (Sistema Único de Saúde) e na Farmácia Popular, tende a deixar esse grupo em uma situação de vulnerabilidade ainda maior", analisa Nilza Rogeria Nunes, professora da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e pesquisadora na área de políticas sociais.

Na avaliação de Dayana Rosa, pesquisadora do Ieps, o número do contingente deve ser maior do que o notificado.

"Sabemos que não há metodologias capazes de estimar com precisão quantas são as pessoas sem moradia. O dinheiro disponível para essa política pública não acompanha a necessidade de quem está na rua."

Nilza Nunes acrescenta, ainda, que os censos deixam de fora pessoas em situação de pobreza como catadores de recicláveis que passam a semana dormindo nas ruas, mas periodicamente voltam às suas casas longe das cidades onde ficam na maior parte do tempo.

As políticas públicas focadas na população de rua ainda são recentes. Os avanços mais significativos começaram em 2009, com a instituição da Política Nacional para a População em Situação de Rua e do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento.

No âmbito da saúde, o Plano Operativo de Saúde para a população em situação de rua, implementado no mesmo ano, e a criação do Programa Consultório na Rua, de 2012, são considerados os avanços mais relevantes.

Como funciona o Consultório na Rua

Há cerca de 180 consultórios de rua no Brasil. O trabalho das equipes é percorrer as cidades, sobretudo os locais conhecidos por maiores aglomerações de pessoas desabrigadas, e oferecer atendimento.

O projeto faz parte do atendimento do SUS, financiado pelo Ministério da Saúde. Em alguns municípios, os consultórios têm parceria com instituições sem fins lucrativos, como é o caso de São Paulo, que fez parceira com o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto.

Três imagens, em montagem, de momentos de atendimentos diferentes do consultório na rua

CRÉDITO,DANIEL DE SOUZA

Legenda da foto,

Vacinação, curativos, escuta ativa de sintomas clínicos e orientação são apenas algumas das ações promovidas pelos consultórios nas ruas

Há três tipos de composições diferentes para as equipes, que podem ser formada com quatro a sete profissionais a depender do censo da população de rua naquela determinada cidade ou região.

Entre os agentes, podem estar enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, agentes sociais, técnicos ou auxiliares de enfermagem, médicos, técnicos em saúde bucal, cirurgiões dentistas, profissionais de educação física e profissionais com formação em arte e educação.

"O trabalho é ir até essas pessoas e perguntar se estão precisando de alguma coisa, se têm queixas relacionadas à saúde. Se o paciente responde que tem tossido, por exemplo, perguntamos há quanto tempo, se tem experimentado outros sintomas... Vamos ouvindo e tentamos solucionar o problema. Também fazemos curativos, aplicamos vacinas, fazemos atendimentos psicológicos...", diz o articulador nacional dos consultórios de rua, Daniel de Souza.

"Para chegar até essas pessoas, toda equipe tem, ou pelo menos deveria ter, um carro ou uma van com os insumos necessários, já que o atendimento é in loco. Algumas equipes têm um 'quartel general' em alguma unidade de saúde, mas ao abordar um paciente que precisa de um atendimento mais complexo, podemos levá-lo para qualquer unidade", completa.

Em vídeo veiculado pela Fiocruz no YouTube, uma idosa no Rio de Janeiro aparece recebendo atendimento odontológico.

"Eles que me acharam, eu tive essa surpresa. Eu ficava sentada lá, amuada. Eles perguntaram se eu queria ajuda, disseram que iam cuidar de mim. Eu não tinha água para escovar os dentes, não tinha recursos."

Busca pelo cuidado integral

O articulador Daniel de Souza reforça que, para atender a uma população tão ampla, com características diferentes, é necessário pensar de uma forma ampla e que abrace a questão da cidadania além das necessidades urgentes da saúde.

"Temos parcerias com a Secretaria de Desenvolvimento Social e com a Defensoria Pública. Essa galera às vezes tem desejo de sair da rua, mas não querem ir para qualquer abrigo, não tem documentos, tem baixa escolaridade e pouca ou nenhuma experiência profissional. Com a parceria podemos oferecer soluções mais completas para essas pessoas", aponta.

Em alguns municípios, como é o caso de São Paulo, moradores de rua que tenham o ensino fundamental completo (ou consigam completar com a ajuda do próprio programa), podem ser empregados na própria equipe do consultório da rua.

É o caso, por exemplo, de Samira Alves Matos, transexual que viveu um período difícil nas ruas e teve a oportunidade de entrar na equipe como agente de saúde. Com a ajuda de uma ONG focada na população LGBTQIA+, se formou na faculdade e hoje é assistente social.

"Hoje tenho a oportunidade de atender pessoas para quem conto minha história, e posso inspirá-las que é possível conseguir condições melhores", diz Samira.

Três imagens, em montagem, de momentos de atendimentos diferentes do consultório na rua

CRÉDITO,DANIEL DE SOUZA

Legenda da foto,

Agentes dos consultórios nas ruas promovem, além de atendimento de saúde, orientações sociais para a população de rua

As dificuldades do atendimento

Um dos empecilhos do atendimento à população de rua, especialmente para tratamentos mais longos, como para tuberculose (de duração de cerca de seis meses), ou até para doenças crônicas, como hipertensão, diabetes e para pessoas que convivem com o vírus HIV, é o fato de que muitos são itinerantes, e portanto, é difícil para os agentes de saúde encontrá-los.

"Mesmo que consigam os remédios, podem pegar chuva, serem roubados, e não conseguir no mês seguinte se perderem os documentos, por exemplo", exemplifica a pesquisadora Nilza Nunes.

Em relação à falta de investimento, Daniel afirma que São Paulo e Rio de Janeiro sentiram menos impactos sobretudo por conta de um dinheiro destinado especificamente durante o período da pandemia da covid-19. "Mas equipes em outras cidades perderam trabalhadores e insumos", diz.

"Já existem políticas nacionais voltadas à população de rua desde 2009. A gente precisa mostrar que há pessoas comprometidas com essa luta, e o que falta realmente é investimento. Teríamos condições de atuar de forma muito mais humanizada e ampla se isso virasse uma pauta política, mas há falta de interesse politico, e isso inclusive reverbera no olhar que a sociedade tem: quem desconhece, criminaliza", conclui Nilza.

Agentes de saúde andando

CRÉDITO,DANIEL DE SOUZA

Legenda da foto,

Agentes de saúde a caminho de moradores de rua que vivem embaixo de ponte



  • Giulia Granchi
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Mortes por chuvas em 2022 já superam ano passado inteiro


Bombeiros fazem resgate em área de deslizamento

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

233 pessoas morreram em Petrópolis em fevereiro

O número de mortos em desastres causados por excesso de chuva no Brasil teve um aumento expressivo neste ano.

Nos primeiros 5 meses de 2022, 457 pessoas morreram em desastres causados pelo excesso de chuva no Brasil, segundo levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM) com base nos dados das defesas civis municipais. O dado inclui 91 das 106 pessoas que morreram em desastre em Recife na última semana.

O total de 457 óbitos representa um aumento de 57% em relação a 2021, quando o número de mortos pela chuva no ano todo foi de 290 pessoas.

Recife alagado

CRÉDITO,REUTERS

Legenda da foto,

A forte chuva do fim de semana alagou vários pontos do Recife e deixou mais de 90 mortes

Desde 2019 o número de mortes pela chuva já vinha crescendo em relação aos anos anteriores. Foram 297 mortos em 2019 e 216 em 2020. Como comparação, entre 2014 e 2018 morreram menos de 100 pessoas por ano por causa da chuva (veja gráfico abaixo).


gráfico mostrando numero de mortes por chuva de 2013 a 2022

Em um relatório sobre os danos causados pelo excesso de chuvas, a entidade aponta que, apesar dos desastres terem sido desencadeados pelo alto volume de precipitação, muitos dos problemas - incluindo mortes evitáveis - são resultado da falta de políticas públicas.

"Os diversos desastres ocorridos, a despeito de sua natureza, como chuvas torrenciais e consequentes deslizamentos de terra e inundações, escondem muitas vezes a ausência de políticas públicas de habitação, saneamento básico e infraestrutura eficazes e deixam claro a precariedade da articulação de políticas de prevenção de desastres pelos entes federados", afirma a entidade em um relatório publicado em abril.

Além das mortes, pelo menos 7,8 milhões de pessoas foram afetadas pelas chuvas, tendo que deixar suas casas de forma permanente ou temporária.

Homem ao lado de deslizamento no Recife

CRÉDITO,REUTERS

Legenda da foto,

Mais de 90 pessoas morreram durante forte chuva na região metropolitana do Recife

Estados mais afetados


O maior desastre em número de óbitos de 2022 aconteceu em fevereiro em Petrópolis, no Rio de Janeiro, quando 233 pessoas morreram devido a deslizamentos e alagamentos causados pela chuva.

Na época, a BBC questionou o governo do Estado sobre relatos de moradores da área afetada de que eles não tinham outro lugar para ir. O governo de Claudio Castro afirmou que a falta de habitação é um problema que vem desde 2011 e que a construção de moradias depende da liberação de terrenos pela prefeitura de Petrópolis.

O Rio de Janeiro teve outro desastre em abril, quando as chuvas causaram deslizamentos que deixaram 20 mortos (11 mortos em Angra dos Reis, 7 em Paraty e 1 em Mesquita).

Os estados do nordeste também foram fortemente afetados. Somente em Recife (PE), pelo menos 91 pessoas morreram na última semana. Outras 26 pessoas morreram na Bahia no início do ano.

A região nordeste também teve 1,2 milhão de pessoas afetadas pelas chuvas e pelo menos R$ 3 milhões em prejuízo nos últimos 6 meses, com danos à pecuária, à agricultura, à indústria, ao comércio, aos sistemas de geração energia, de abastecimento de água, de esgoto, de limpeza, de segurança pública, de controle de pragas, de transportes e de telecomunicações.

  • Letícia Mori
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Professor Edgar Bom Jardim - PE

terça-feira, 31 de maio de 2022

De Gusttavo Lima a Anitta: entenda a brecha que permite contratar famosos com dinheiro público




Gusttavo Lima durante show em 2022

CRÉDITO,DIVULGAÇÃO

Legenda da foto,

Lei criada em 1993 permite que artistas reconhecidos pela crítica ou público possam ser contratados sem licitação

Na última semana, artistas do mundo sertanejo se tornaram alvo de críticas por receberem cachês pagos por prefeituras do interior do país.

A polêmica começou depois que o cantor Zé Neto, que faz dupla com Cristiano, deu uma declaração durante um show que foi vista como uma crítica velada à cantora Anitta e à lei federal de incentivo à cultura.

Popularmente conhecida como Lei Rouanet, o dispositivo é constantemente atacado por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL).

"Não somos artistas que dependemos da Lei Rouanet. Nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no toba para mostrar se a gente está bem ou mal", disse Zé Neto


A menção à tatuagem foi interpretada como uma indireta à cantora Anitta, conhecida por ser crítica a Bolsonaro

A declaração gerou polêmica nas redes sociais e Zé Neto chegou a se desculpar pela fala. Logo após afirmação de Zé Neto no show, porém, veio à tona a informação de que a apresentação da dupla na cidade mato-grossense custou R$ 400 mil e foi paga pela prefeitura da cidade.

Nos últimos dias, foram os shows de Gusttavo Lima que ficaram sob escrutínio. Diversos veículos de imprensa noticiaram que o cantor, que já se manifestou a favor de Bolsonaro, foi contratado pela Prefeitura de São Luiz, no interior de Roraima, por R$ 800 mil.

A cidade tem pouco mais de 8 mil habitantes. Na semana passada, a prefeitura de Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, cancelou o show que o cantor faria na cidade e que foi contratado por R$ 1,2 milhão.

Em vídeo, o prefeito da cidade, José Fernando Aparecido (MDB), diz ter cancelado o show após se ver envolvido no que chamou de "guerra política".

Anitta durante premiação nos EUA

CRÉDITO,EPA

Legenda da foto,

Anitta foi contratada por R$ 500 mil pela Prefeitura de Parintins, no Amazonas, em 2019

Os ministérios públicos de Minas Gerais, Roraima e Rio de Janeiro abriram investigações preliminares para apurar se houve algo ilegal na contratação dos shows. Ontem, em uma transmissão em suas redes sociais, o cantor negou envolvimento em irregularidades.

"Nunca me beneficiei sobre dinheiro público, empréstimo, ou algo do tipo. Minha vida foi sempre trabalhar", disse o cantor.

O fato é que não são apenas artistas do sertanejo que já receberam por shows pagos por prefeituras.

No meio artístico, é considerado relativamente comum que cantores se apresentem em eventos financiados por prefeituras ou governos estaduais. Anitta, por exemplo, foi contratada por R$ 500 mil pela Prefeitura de Parintins, no Amazonas, em 2019.

Mas o que as contratações desses artistas famosos têm em comum? A resposta é: todas foram feitas aproveitando uma brecha na legislação: a inexigibilidade de licitação.

Zé Neto durante show

CRÉDITO,DIVULGAÇÃO

Legenda da foto,

Zé Neto, que faz dupla com Cristiano, deu uma declaração durante um show que foi vista como uma crítica velada à cantora Anitta e à lei federal de incentivo à cultura

A BBC News Brasil conversou com especialistas em Direito Administrativo que explicaram como esse mecanismo funciona e por que ele permite que prefeituras possam gastar dinheiro público sem licitação para contratar artistas, alguns com cachês milionários.

Eles afirmam também que, ao contrário do que alguns críticos afirmam, a Lei Rouanet é muito mais eficiente e transparente para promover a cultura do que as contratações diretas feitas pelas prefeituras.

A regra e a exceção


A lei nº 8.666, também conhecida como Lei das Licitações, foi criada em 1993. Naquele momento, o Estado brasileiro vivia um processo de reorganização administrativa poucos anos depois da redemocratização do país, ocorrida em 1985.

O objetivo da lei era padronizar e modernizar a forma como os órgãos públicos de todo o país compravam produtos ou serviços

Pela lei, a maior parte dos contratos públicos precisa ser feito após uma licitação, que nada mais é do que uma espécie de competição em que diferentes fornecedores do mesmo produto ou serviço disputam quem terá o direito de vender para o governo.

Há diversas formas de definir o "vencedor" de uma licitação. Normalmente, é escolhido o fornecedor que cobrar o menor preço desde que o produto atenda às especificações feitas pelo órgão público.

"A ideia da licitação é que a administração pública só vai contratar serviços ou comprar produtos se for possível avaliar diferentes propostas e fornecedores. O problema é que nem sempre isso é possível", diz o professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e doutor em Direito Público Wallace Corbo.

Gusttavo Lima aponta dedo para plateia durante apresentação

CRÉDITO,DIVULGAÇÃO

Legenda da foto,

'Para uma prefeitura contratar um show de grande porte ela precisa estar com suas finanças absolutamente equilibradas porque um show é algo supérfluo', diz especialista

É nesses casos em que uma competição é "impossível" que as prefeituras podem usar a brecha que vem permitindo a contratação de artistas. Essa brecha é a inexigibilidade de licitação.

Ela pode ser usada tanto para a contratação de produtos ou serviços para os quais não há concorrentes (caso de uma vacina fabricada por um único fornecedor) ou para pagar por shows artísticos.

"A lei prevê que a contratação de artistas consagrados pela crítica ou pela opinião pública pode ser feita sem a realização de uma licitação. Isso acontece porque é virtualmente impossível comparar um artista com outro, logo, a disputa fica inviável. Como é que você vai comparar Gusttavo Lima com a Anitta?", explica o advogado especialista em Direito Administrativo Arthur Rollo.

Rollo afirma que por se tratar de uma exceção e de um "produto" muito específico, a escolha dos artistas que uma prefeitura quer ter em seus eventos acaba sendo discricionária.

"No final, como não tem como avaliar qual artista é melhor ou pior, essa escolha é subjetiva e fica nas mãos de quem comanda o órgão público. Pode acontecer de um prefeito escolher um cantor em particular porque ele ou a sua mulher são fãs. É difícil mensurar isso", avalia o advogado.

Como impedir abusos

Arthur Rollo diz, no entanto que, ainda que as contratações de artistas possam ser respaldadas tecnicamente pela lei, é preciso avaliar se elas atendem a princípios como a moralidade, eficiência e economicidade.

"É preciso analisar o contexto no qual uma prefeitura faz um contrato milionário com um artista. Não é defensável uma prefeitura com graves problemas em áreas como saúde ou educação gastar grandes somas de dinheiro na contratação de artistas famosos", diz.

"Para uma prefeitura contratar um show de grande porte ela precisa estar com suas finanças absolutamente equilibradas porque um show é algo supérfluo, por mais importante que a cultura e o lazer sejam. Tem que ver se a prefeitura está gastando o que deve na saúde, na educação", diz Arthur Rollo.

Gusttavo Lima durante show em 2022

CRÉDITO,DIVULGAÇÃO

Legenda da foto,

'É muito mais fácil você pesquisar os dados de projetos da Lei Rouanet do que ter que procurar nos diários oficiais de mais de cinco mil municípios', diz advogado

Para o advogado Wallace Corbo, toda a polêmica em torno dos shows de artistas como Gusttavo Lima, Anitta e Zé Neto e Cristiano lançou luz sobre como as contratações feitas por prefeituras via inexigibilidade de licitação são menos transparentes que a tão criticada Lei Rouanet.

A Lei Rouanet foi criada em 1991 e é um dos principais instrumentos de fomento à cultura do país. Os autores precisam submeter seus projetos ao crivo do governo. Se ele for aprovado, os autores ficam autorizados a captarem os recursos junto a empresas e pessoas físicas.

As empresas ou pessoas físicas que desejam financiar um projeto pode fazer isso destinando os recursos do imposto de renda que deviam à União para essas iniciativas culturais.

Todas as informações sobre os responsáveis pelos projetos e seus patrocinadores são publicadas no Diário Oficial da União (DOU) e centralizadas em um site do governo federal.

"É muito mais fácil você pesquisar os dados de projetos da Lei Rouanet do que ter que procurar nos diários oficiais de mais de cinco mil municípios para saber se um artista foi ou não contratado com dinheiro público. A Lei Rouanet é muito mais transparente", avalia o advogado Wallace Corbo.

Corbo diz ainda que a Lei Rouanet é mais eficiente que as contratações feitas por prefeituras ou governos estaduais porque elas permitem que artistas menos conhecidos tenham acesso a recursos e não fiquem inteiramente dependentes da boa vontade dos mandatários.

"A Lei Rouanet faz com que o artista também possa captar recursos e o leque de opções é muito mais amplo do que correr atrás de prefeituras ou governos do estado. Para o artista que não têm a expressão dos mais famosos, isso é muito útil", diz Wallace Corbo.

Na avaliação de Arthur Rollo, não seria preciso fazer ajustes na Lei das Licitações para impedir que prefeituras utilizem seus recursos para contratação de artistas famosos.

"Não precisa mudar a lei. Basta que os órgãos de controle, internos e externos como as controladorias e os tribunais de conta se mantenham vigilantes. Também é importante que a sociedade civil organizada faça isso. Se a pessoa mora em uma cidade e o prefeito ou prefeita vai contratar um artista por um cachê astronômico, ela pode questionar isso junto ao Ministério Público", explica.

Por e-mail, a assessoria de imprensa responsável pela dupla Zé Neto e Cristiano disse que a dupla não iria se manifestar sobre o tema. A BBC News Brasil procurou as produtoras responsáveis pelas carreiras de Anitta e Gusttavo Lima, mas elas não responderam às questões enviadas.

A Prefeitura de Parintins, que contratou Anitta por R$ 500 mil em 2019, disse que o valor foi cobrado pela produtora da artista em função de fatores como a dificuldade logística para sua equipe chegar à cidade que fica em uma ilha no rio Amazonas.

Em nota, a assessoria de Gusttavo Lima diz que ele não pactua com ilegalidades.

"O valor do cachê do artista é fixado obedecendo critérios internos, baseados no cenário nacional, tais como: logística (transporte aéreo, transporte rodoviário etc.), tipo do evento (show privado ou público), bem como os custos e despesas operacionais da empresa para realização do show artístico, dentre outros fatores. Não pactuamos com ilegalidades cometidas por representantes do poder público, seja em qualquer esfera", diz um trecho da nota.

  • Leandro Prazeres
  • Da BBC News Brasil em Brasília
Professor Edgar Bom Jardim - PE