sábado, 26 de fevereiro de 2022

Como o segundo ano sem Carnaval deve impactar a economia brasileira



Desfile do bloco Boitolo no Rio de Janeiro reúne multidão nas ruas

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Bloco Boitolo desfila no Rio de Janeiro antes da pandemia. Carnaval de rua foi cancelado nas principais capitais do Brasil

O cancelamento pelo segundo ano seguido das festas de Carnaval por conta da pandemia de covid-19 deve trazer impactos intensos para a economia do Brasil, em especial para os setores de eventos e turismo.

Das 27 capitais brasileiras, 24 mais o Distrito Federal anunciaram oficialmente que a folia deste ano foi suspensa ou adiada, impondo proibições a blocos de rua e um limite máximo de lotação para eventos fechados. São Paulo e Rio de Janeiro remarcaram os desfiles das escolas de samba para o feriado de Tiradentes.

Segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), tudo isso fará com que o setor de serviços deixe de lucrar algo em torno de R$ 3 bilhões.

A estimativa faz parte de um estudo comandado pela organização todos os anos antes do Carnava



Antes da crise sanitária, a folia costumava movimentar, em média, R$ 9,5 bilhões em receitas.

Apesar do volume de faturamento previsto para este ano ser 21,5% maior do que o registrado em 2021, quando as celebrações também foram suspensas e o setor de serviços não lucrou, ainda está 33,7% inferior ao observado no Carnaval de 2020, realizado antes da pandemia ser decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

"O Carnaval brasileiro ainda tem muito o que recuperar nos próximos anos para voltar ao nível de dois anos atrás", prevê o economista da CNC responsável pela pesquisa, Fabio Bentes.

"Se não sofrermos nenhum outro grande golpe no futuro próximo, acredito que os R$ 7 bilhões em receita perdidos que estimamos que serão perdidos entre 2021 e 2022 possam ser recuperados em cerca de três anos", diz.

Impactos em todo o país

Segundo Bentes, os Estados que mais serão afetados após dois anos sem folia são aqueles que recebem mais visitantes por conta do Carnaval, como Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco.

Na Bahia, onde ocorre um dos maiores Carnavais do país, deixou-se de arrecadar R$ 1,7 bilhão em 2021 e mais de 60 mil pessoas ficaram sem opção de trabalho. O rombo deve ser ampliado ainda mais no segundo ano seguido.

Desfile da Escola de Samba Imperatriz Leopoldina em 2008 reúne público e membros da escola fantasiados

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Desfile da Escola de Samba Imperatriz Leopoldina em 2008

Já a economia do Rio de Janeiro deixou de movimentar algo em torno de R$ 5,5 bilhões em 2021, segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV IBRE). O valor equivale a 1,4% do PIB carioca.

Em 2022, a expectativa é que o faturamento ainda seja 20% menor do que o de 2020, quando a festa movimentou R$ 4 bilhões na economia do Estado.

Em São Paulo, o último Carnaval movimentou cerca de R$ 3 bilhões, ou 2% do PIB paulista.

Menos festas e menos viagens


Segundo a Associação Brasileira de Eventos (Abrape), aproximadamente 50 mil eventos relacionados à folia não foram e não serão realizados no Carnaval (antes, durante e depois).

Para efeitos de comparação, em 2019, foram realizados 90 mil eventos. No Nordeste, por exemplo, o prejuízo no setor será de 8,1 bilhões de reais que deixarão de circular só nos dias de festa.

"Não são somente os carnavais de rua de Salvador ou Recife que estão deixando de acontecer ou os desfiles em São Paulo e Rio de Janeiro que foram adiados - festas em todo o país foram canceladas, ao mesmo tempo em que muitas pessoas estão deixando de viajar", diz Doreni Caramori Júnior, presidente da Abrape. "A cadeira inteira do setor de eventos e turismo está sendo abalada".

Empresas áreas e do setor de hotelaria também devem lucrar menos. A expectativa da CNC é que o segmento de serviços de hospedagem em hotéis e pousada movimente cerca de R$ 660 milhões no feriado, quando no mesmo período de 2020 a previsão era de R$ 860 milhões.

Ainda assim, o setor de turismo espera recuperar parte dos prejuízos de 2021. Em cidades como Salvador e Rio de Janeiro a ocupação hoteleira está acima dos 80%, mesmo sem a presença das festas na rua.

Entre empresários do setor de bares e restaurantes também há uma sensação de otimismo. "Bares e restaurantes estão otimistas com o feriado e a expectativa de faturamento varia de 20 a 30% em cidades litorâneas", diz Paulo Solmucci, presidente-executivo da Abrasel.

Multidão segue trio elétrico em bloco de Carnaval

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Trio elétrico do empresário Mazinho Twister em Carnaval pré-pandemia no interior de São Paulo

De acordo com o levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, o segmento de alimentação fora do domicílio, representado por bares e restaurantes, deve movimentar algo em torno de R$ 2,78 bilhões nos quatro dias do feriado. Há dois anos atrás a previsão era de R$ 4,8 bilhões.

Segundo Solmucci, os consumidores já estão se sentindo mais seguros para frequentar bares e restaurantes. Muitas pessoas que nos anos pré-pandemia costumavam acompanhar blocos de Carnaval ou iam a festas também devem trocar essas atividades por saídas com a família e amigos para locais mais calmos.

"Entretanto, cidades como Belo Horizonte, que não terão a festa na rua, a expectativa de faturamento do setor tende a ser reduzida devido ao menor número de turistas presentes na capital mineira", diz ele.

Sem festa, sem trabalho

Mas segundo Fabio Bentes, não há dúvidas de que os trabalhadores, formais e informais, serão muito impactados pelo segundo ano sem Carnaval.

Um bloco na rua, por exemplo, movimenta uma cadeia de trabalhadores que vai desde locadores e montadores de trios elétricos a vendedores ambulantes e catadores de materiais recicláveis.

Só em São Paulo, por exemplo, foram abertas 12 mil vagas temporárias para vendedores ambulantes de bebidas em 2020. Com o cancelamento dos blocos e o adiamento do desfile na cidade, não há qualquer garantia de lucro com a folia para essas pessoas.

E não são apenas os vendedores que sentem o impacto das ruas vazias durante o Carnaval. Segundo o presidente da Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (Ancat), Roberto Rocha, a folia é a época do ano mais importante para os catadores.

"O período das festas sempre foi uma excelente oportunidade de renda extra. E esse 'plus' está fazendo uma baita diferença na vida de muitas famílias", diz. "No ano de 2020, fizemos uma parceria com o setor de bebidas e alimentos e, além do valor recebido nas cooperativas pelo material coletado, os trabalhadores ainda ganharam pelo serviço de limpeza".

Segundo Rocha, os lucros obtidos pelos catadores durante o Carnaval chegavam a representar até 30% de toda a renda mensal.

Apesar das iniciativas de algumas empresas privadas para distribuição de auxílio para catadores e ambulantes, boa parte dos ganhos previstos para esta época do ano deixarão de fazer parte da receita familiar desses brasileiros.

'Famílias sofrendo e precisando de ajuda'

Mazinho Twister, como é conhecido Francisco Aparecido de Alencar, de 47 anos, é dono de uma empresa que fabrica e loca trios elétricos. Todos os anos durante o Carnaval, ele costuma alugar seus veículos para até 30 eventos realizados por todo o Estado de São Paulo.

Em 2022, Mazinho está com todos os seus 14 trios elétricos parados na garagem. "Meu lucro foi há zero nos últimos dois anos. Eu tinha 22 funcionários e suspendi todos, com exceção de um rapaz que cuida da garagem e ajuda na conservação dos trios", conta o empresário, que mora em Campinas.

"A maioria das pessoas dispensadas estão vivendo atualmente apenas do auxílio do governo", diz.

Mazinho lamenta ainda a situação de muitos de seus colegas de ramo, que foram obrigados a vender seus trios diante da falta de trabalho. "Eu por enquanto estou resistindo, mas estou com o aluguel da garagem onde guardo os veículos atrasado e 90.000 reais de dívida no banco", conta.

O anseio por sair às ruas é compartilhado por Luiz Adolpho, presidente do clube do Homem da Meia-Noite, um dos mais tradicionais e famosos blocos de Olinda. "Tenho 57 anos e antes da pandemia não me lembro de um Carnaval em que não brinquei na rua", conta.

O bloco de 90 anos de história não desfila há dois anos e tomou a decisão de também não participar de eventos fechados. Mantém contato com o público apenas por meio de clipes lançados pelas redes sociais e visitações à sua sede, com obrigatoriedade de máscara e apresentação de um comprovante de vacinação.

Segundo Adolpho, o Homem da Meia-Noite emprega uma média de 450 a 600 pessoas todos os anos, entre músicos, operadores de som, seguranças e montadores. "Infelizmente não conseguimos manter todos os funcionários desde o início da pandemia. Fizemos arrecadação de cestas básicas para ajudar os mais necessitados, mas não é possível atender a todos que foram prejudicados pelo cancelamento dos blocos em Olinda e Recife", lamenta o pernambucano.

"Na verdade, há uma grande necessidade de acolhimento das pessoas que ficaram sem renda por conta de todos os eventos de Carnaval que não acontecerão em todo o Brasil. Recebemos relatos de muitas famílias sofrendo e precisando de ajuda".

  • Julia Braun
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

A história por trás de alegação de Putin sobre 'desnazificar' Ucrânia com ataque militar


 

Vladimir Putin

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Vladimir Putin afirmou querer "desnazificar" a Ucrânia

Ao anunciar que iniciaria uma "operação militar especial" contra a Ucrânia, durante a madrugada desta quinta-feira, 24/2, o líder russo Vladimir Putin justificou sua ação pela necessidade de "desnazificar e desmilitarizar a Ucrânia".

"Tomei a decisão de realizar uma operação militar especial. Seu objetivo será defender as pessoas que há oito anos sofrem perseguição e genocídio pelo regime de Kiev. Para isso, visaremos a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia", afirmou Putin em um discurso televisionado, ao mesmo tempo em que mísseis e forças armadas russas iniciavam uma incursão que a autoridade ucraniana afirma ter atingido todas as regiões do país em ao menos 70 pontos diferentes, como aeroportos e portos, e já ter matado mais de 130 pessoas.

O movimento russo é um desfecho dramático para uma crise geopolítica internacional que se desenrolou nos últimos 4 meses, quando Putin começou a instalar suas forças militares na região da fronteira com a Ucrânia.

Inicialmente, o presidente russo se dizia preocupado com a segurança nacional do país dada a expansão da aliança militar da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no leste europeu. Putin queria garantias de que a Ucrânia não seria admitida na aliança - o que, em tese, permitiria aos EUA instalar bases militares na região vizinha ao território russo

Contudo, ao acusar o atual governo ucraniano, comandado pelo presidente judeu Volodymyr Zelensky, de ser nazista - sem qualquer prova disso -, Putin extrapola preocupações atuais e práticas com a segurança do país e mobiliza uma série de conceitos e eventos históricos na região e que, de acordo com os especialistas, o ajudaria a justificar para o mundo e especialmente para o povo russo as ações militares contra um povo igualmente eslavo

Putin evoca as memórias coletivas dos ataques de Adolf Hitler na Europa, especialmente da invasão dos nazistas contra a então União Soviética, e a noção de genocídio e limpeza étnica contra um povo - nesse caso, contra os separatistas russos na Ucrânia - e tenta caracterizar seus atos não como agressão a um outro país, como o acusam Ucrânia, EUA e Europa Ocidental, mas como uma tentativa de defesa.

"A Segunda Guerra Mundial é ainda hoje uma parte importante da cultura e da política russa, e a falsa afirmação de que o governo ucraniano hoje é como o governo aliado nazista da Ucrânia na Segunda Guerra Mundial ou o Exército de Libertação Ucraniano (o grupo que lutou ao lado dos nazistas) é uma tentativa de moldar a opinião russa em relação ao atual governo ucraniano", afirmou à BBC News Brasil Adam Casey, cientista político especialista em Rússia da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos

De onde vem a noção de que o atual governo ucraniano é nazista?

É impossível entender as referências feitas por Putin sem voltar algumas décadas na História. Se, por um lado, o modo como o Exército Vermelho, da União Soviética, combateu e derrotou as tropas nazistas alemãs na Segunda Guerra Mundial ainda mobiliza o imaginário dos russos e seu orgulho nacional, de outro lado, a reação de ao menos parte dos seus vizinhos ucranianos em relação a Hitler segue sendo motivo de hostilidade entre russos e ucranianos.

Quando o exército nazista adentrou as áreas ucranianas, em 1941, uma parte da população optou por colaborar com os alemães, enquanto boa parte do país foi varrida por sofrimento e destruição. Mais de 5 milhões de ucranianos morreram combatendo os nazistas, que mataram a maior parte dos 1,5 milhão de judeus ucranianos.

A ocupação alemã durou até 1944, e os ucranianos que se engajaram na cooperação com os alemães nazistas atuaram na administração local, se tornaram parte da polícia nazista ou viraram guardas em campos de concentração. O governo civil alemão nazista foi batizado de Reichskommissariat Ukraine, ou RKU, e compreendia o que hoje se divide entre o território da Ucrânia, Belarus e Polônia.

Manifestação de ucranianos de extrema direita em Kiev, em 2015, com a bandeira de Stepan Bandera

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Manifestação de ucranianos de extrema direita em Kiev, em 2015, com a bandeira de nacionalista ucraniano Stepan Bandera, que colaborou com nazistas

Uma das figuras mais proeminentes - e controversas - desse nacionalismo colaboracionista ucraniano foi Stepan Bandera, que primeiro atuou para facilitar o domínio dos nazistas na região e depois se voltou contra eles, quando percebeu que seu plano de independência da Ucrânia não se concluiria. Bandera passou anos em um campo de concentração nazista e acabaria assassinado por um agente da KGB em 1959.

Por trás da colaboração com os nazistas, estava um desejo de independência de parte dos ucranianos e a crença de que os alemães poderiam ser o caminho para se livrar do líder soviético Joseph Stálin.

Esse sentimento foi catapultado por outro evento histórico que recém completou 90 anos: o Holodomor, ou Fome-Terror ou ainda Grande Fome, um período em que, de acordo com a estimativa do historiador Timothy Snyder, da Yale University, cerca de 3,3 milhões de pessoas morreram de fome. Há, no entanto, quem diga que esse número foi até 3 vezes maior que a estimativa de Snyder.

Embora a fome tenha atingido a União Soviética como um todo nesse período, especialmente por políticas econômicas do regime de Stálin, os ucranianos - e outros 15 países - consideram Holodomor um genocídio. Isso porque, de acordo com alguns historiadores, a fome na Ucrânia teria sido muito pior do que a no restante da região por uma decisão deliberada de Stálin de remeter menos recursos à região e proibir o deslocamento das pessoas em busca de alimentos. O líder soviético teria tomado a decisão de punir e pressionar o campesinato ucraniano, que resistia a ceder suas férteis propriedades agrícolas ao controle do Estado, como ordenava o regime soviético.

Tropas nazistas invadem uma casa na ucraniana Sebastopol, em 1942

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Tropas nazistas invadem uma casa na ucraniana Sebastopol, em 1942, durante a ocupação alemão, quando cerca de 5 milhões de ucranianos morreram

O Holodomor virou um trauma coletivo que ainda assombra a Ucrânia, mesmo 90 anos após os acontecimentos, e que serviu de combustível para o sentimento antissoviético que Bandera encarnou nos anos 1930 e 1940.

Mas por que a história de Bandera importa agora, quase um século depois?

A resposta está nos acontecimentos detonados em 2013, quando o então presidente ucraniano Viktor Yanukovych, que comandava um governo pró-Rússia, cedeu à pressão de Putin e se recusou a assinar um pacto de aproximação do país com a União Europeia, algo que a maioria dos ucranianos desejava.

A decisão do presidente fez irromper protestos populares pelo país. Em um deles, na Praça Maidan, na capital ucraniana Kyev, estima-se que 100 mil pessoas se manifestaram. Após meses de tensão, em 2014, Yanukovych fugiu para a Rússia e acabou deposto.

"Essa referência a nazistas e neonazistas se tornou muito proeminente na mídia russa por volta de dezembro de 2013, porque, na época dos protestos da Praça Maidan, alguns dos manifestantes faziam coisas como hastear uma bandeira de (Stepan) Bandera, um nacionalista ucraniano que, temporariamente, durante a Segunda Guerra Mundial, cooperou com os nazistas para tentar buscar a independência ucraniana. Há um segmento da população ucraniana que relembra aquelas tentativas de alcançar a independência ucraniana sob (Joseph) Stalin, aliando-se a Hitler, não como uma colaboração com o nazi-fascismo, mas como a atuação de patriotas ucranianos e heróis nacionais", explicou à BBC News Brasil Brian Taylor, professor de Ciência Política da Syracuse University e autor de The Code of Putinism (O Código do Putinismo, em tradução livre).

A Rússia retaliou a derrubada de Yanukovych tomando a Crimeia e desencadeando uma rebelião no leste ucraniano liderada por separatistas apoiados pela Rússia — o confronto contra as forças ucranianas já custou 14 mil vidas. Nesse período, algumas milícias de extrema-direita passaram a atuar para repelir os separatistas russos. São grupos como o Pravy Sektor e o Azov Battalion, que costumam empunhar bandeiras de Bandera, a quem Putin chama de "cúmplice de Hitler" e que hoje detém status de "herói nacional ucraniano". Nenhum desses grupos extremistas, no entanto, jamais conseguiu eleger parlamentares para o Congresso Nacional ucraniano nem tem representantes no Executivo.

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Conflito entre Rússia e Ucrânia pode se transformar em 3ª Guerra Mundial?

"A Ucrânia não é controlada por nazistas ou fascistas, apesar do crescimento de grupos ultra nacionalistas e fascistas nos últimos anos - um problema global não específico da Ucrânia. Na verdade, o governo democraticamente eleito da Ucrânia é comandado por um presidente judeu, Volodymyr Zelensky, cujos tios-avôs e outros membros da família foram assassinados durante o Holocausto", afirmou à BBC News Brasil a historiadora Amy Randall, da Santa Clara University, na Califórnia, especialista em Rússia.

Na noite desta quarta-feira (23/2), depois de tentar se comunicar com Putin e ser ignorado repetidamente, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky foi à TV e se dirigiu em russo à população da Rússia, a quem apelou para que impedissem o Kremlin de prosseguir com um ataque. Em seu discurso emocionado, Zelensky abordou as acusações de que seu governo é nazista, o que viria a ser repetido por Putin horas mais tarde, no momento do anúncio da operação militar.

Volodymyr Zelensky

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O presidente ucraniano judeu, Volodymyr Zelensky, questionou argumento de Putin: "como posso ser nazista?"

"Dizem a vocês (russos) que somos nazistas. Mas pode um povo que deu mais de oito milhões de vidas pela vitória sobre o nazismo apoiar os nazistas? Como posso ser nazista? Explique isso ao meu avô, que passou por toda a guerra na infantaria do exército soviético e morreu como coronel na Ucrânia independente", afirmou Zelensky.

Os especialistas em Rússia, no entanto, apontam que a utilização por Putin desse tipo de argumento junto à população tende a acessar o emocional da população russa e faz parte de um movimento maior do líder de mobilização de apoio popular.

"Esta retórica de desnazificação é poderosa porque evoca a memória do imenso sofrimento e vitória final do povo soviético durante a Segunda Guerra Mundial. Nos últimos anos, Putin intensificou deliberadamente a comemoração da "Grande Guerra Patriótica", como a Segunda Guerra Mundial é conhecida na Rússia, promovendo o Dia da Vitória como o feriado mais importante e usando a guerra para aumentar o orgulho nacionalista entre os russos", afirma Randall.

Do mesmo modo, alertam os especialistas, o uso do termo genocídio por Putin, para caracterizar uma falsa situação de aniquilamento da população russa na Ucrânia apela ao mesmo tipo de sentimento. De acordo com Brian Taylor, o recurso ao termo "genocídio" para justificar incursões militares russas em áreas vizinhas não é novidade na política internacional de Putin. "Em 2008, ele fez o mesmo com a Geórgia e, em 2014, na Crimeia", afirma Taylor.

De fato, existe um conflito nas áreas separatistas de Donetsk e Lugansk desde 2014, em que separatistas russos financiados pelo governo russo enfrentam forças do Exército ucraniano, e que já resultou na morte de 14 mil pessoas.

Mas há também uma guerra de desinformação em curso na área. Em 2015, uma equipe da BBC mostrou como, na região de Donetsk, onde apenas emissoras de televisão russas transmitiam programas desde 2014, a história da morte de uma garota russa, de 10 anos, em um bombardeio ucraniano foi inteiramente inventada. Jornalistas da mídia russa, responsáveis por reportar a história, admitiram à BBC que a menina jamais existiu. "Nós tivemos que transmitir isso", afirmaram os profissionais russos à BBC.

"O genocídio é uma grave acusação - e que a comunidade internacional leva a sério. Neste caso, é claro, nenhum genocídio está ocorrendo. Mas a pretensão de ser o protetor do mundo russo, por assim dizer, é uma justificativa comum para a política externa de Putin, e essa acusação infundada de genocídio reforça sua afirmação para o público doméstico de que ele é o protetor dos russos étnicos em toda a antiga União Soviética", afirma Casey.

  • Mariana Sanches - @mariana_sanches
  • Da BBC News Brasil em Washington
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Petróleo a US$ 100 e trigo em alta: guerra na Ucrânia piora cenário para inflação no Brasil




Posto de gasolina em São Paulo

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Escalada da crise na Ucrânia pode resultar em alta dos combustíveis no Brasil

O preço do barril de petróleo foi negociado acima dos US$ 100 pela primeira vez desde 2014 nesta quinta-feira (24/2), após o início da invasão russa à Ucrânia, com bombardeios registrados em diversas cidades do país do leste europeu.

No fechamento, a cotação do barril suavizou um pouco a alta e ficou em US$ 99,08.

Ao mesmo tempo, os valores dos contratos de trigo e milho negociados na bolsa de Chicago chegaram a subir mais de 5% antes da abertura do mercado e atingiram o limite de alta após o início das negociações, que por conta disso foram temporariamente interrompidas.

Com a alta do milho e preocupações também com relação ao mercado de óleo de girassol - do qual a Ucrânia é o maior produtor do mundo - a soja também estava em alta no pregão desta quinta


Até o dólar, que havia fechado a quarta-feira cotado a R$ 5, no menor valor desde junho de 2021, inverteu a tendência, e já é negociado acima dos R$ 5,10.

O combo formado por petróleo, grãos e dólar em alta, resultado da escalada da crise ucraniana, torna ainda mais complicado o cenário para a inflação no Brasil em 2022.

Segundo analistas, o movimento pode resultar em alta dos combustíveis, dos custos industriais e de alimentos básicos como pão e carnes, já que os grãos como milho e soja são utilizados na ração animal.

A magnitude dos reajustes, no entanto, vai depender da duração e da gravidade da crise no leste da Europa, já que os agentes do mercado devem se manter em espera durante esse primeiro momento de forte volatilidade, para aguardar os desdobramentos da guerra

O choque internacional acontece num momento em que as coisas já não iam bem para a inflação brasileira.

Na quarta-feira, o IPCA-15, prévia da inflação de fevereiro, surpreendeu com uma alta de 0,99%, acima das expectativas dos analistas (0,87%) e maior resultado para o mês desde 2016, com alta de preços maiores do que o esperado em serviços e bens duráveis, como automóveis, eletroeletrônicos, eletrodomésticos e móveis.

Com as novas incertezas, as expectativas para o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), medida oficial de inflação do país, devem continuar em alta.

Na segunda-feira, os analistas previam avanço de 5,56% para o IPCA em 2022, após seis semanas de revisões para cima da mediana das projeções no boletim Focus do Banco Central, que semanalmente consulta os economistas quanto às suas estimativas para a economia.

Com os cenários internacional e inflacionário mais turvos, o Banco Central tem um desafio a mais para definir os rumos da política monetária brasileira.

A maioria dos agentes vê a Selic (taxa básica de juros da economia brasileira) indo a 12,25% até maio, mas com a surpresa negativa do IPCA-15 na quarta, já há quem enxergue a taxa indo a 12,75%, caso por exemplo do banco Credit Suisse. Atualmente, a taxa está em 10,75%.

Entenda como Vladimir Putin disparando mísseis num país vizinho pode acabar afetando o seu bolso.

Petróleo acima de US$ 100

Os preços do petróleo do tipo Brent superaram os US$ 104 por barril durante as negociações desta quinta-feira, enquanto o WTI (referência do mercado americano) se aproximou dos US$ 100.

A Rússia é o segundo maior exportador do óleo no mundo, atrás apenas da Arábia Saudita, e o terceiro maior produtor. Também é o principal exportador e segundo maior produtor de gás natural, respondendo por 41% do gás importado pela União Europeia.

Assim, uma guerra envolvendo o país provoca temores quanto à oferta desses insumos no mundo, num momento em que a produção de petróleo e gás já vinham sendo insuficiente para acompanhar o aumento global da demanda.

"Esse ano, independentemente da guerra na Ucrânia, já seria um ano de petróleo caro, porque a oferta está crescendo menos do que a demanda, pois nos últimos cinco a seis anos, os grandes produtores internacionais investiram muito pouco em exploração e produção, devido às pressões ambientalistas e à pandemia", observa Adriano Pires, diretor do CBIE (Centro Brasileiro de Infraestrutura).

Com uma Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) empoderada pela restrição de oferta, a expectativa inicial já era do barril na casa dos US$ 90. Com a guerra na Ucrânia, formou-se a "tempestade perfeita" para ir acima dos US$ 100.

Pires observa, porém, que a alta de preços do petróleo não é de todo negativa para o Brasil, já que o país é produtor do óleo e um preço mais alto do barril aumenta a arrecadação de impostos pelo governo federal, Estados e municípios.

Por outro lado, como a Petrobras reajusta os combustíveis seguindo o movimento dos preços internacionais do petróleo, o analista reconhece que o reajuste deve ser inevitável nas próximas semanas, mesmo com a recente valorização do real, que serve como um contrapeso.

"A Petrobras está há 43 dias sem reajustar combustíveis. A coisa boa nesse período é que o câmbio valorizou, chegou a bater abaixo de R$ 5. Isso ajuda que a defasagem [de preços do mercado interno com relação ao internacional] fique menor, por outro lado o petróleo está subindo", observa.

"Mas, num momento de forte instabilidade do petróleo e do dólar, a Petrobras não deve sair anunciando um aumento agora, deve esperar para ver como fica a guerra, para ver qual será o novo patamar de preços", afirma.

Segundo Pires, a pressão nos preços internacionais do petróleo pode acelerar a tramitação no Senado de três projetos relacionados ao mercado de combustíveis: o PLP 11/2020, que determina alíquota unificada para o ICMS sobre combustíveis; o PL 1.472/2021, que cria uma conta para financiar a estabilização dos preços; e a PEC 1/2022, apresentada pelo senador Carlos Fávaro (PSD-MT), que propõe a redução de impostos sobre combustíveis. Os dois primeiros têm votação prevista para depois do Carnaval.

Pires, no entanto, não acredita em alguma intervenção mais dura do governo na política de preços da Petrobras, mesmo diante das reiteradas mostras de preocupações do presidente Jair Bolsonaro (PL) com a alta dos combustíveis num ano eleitoral.

"Acredito que o único cenário em que o governo tomará uma posição intervencionista é se o barril for a US$ 150, US$ 200. Mas daí não será apenas o governo brasileiro, o mundo inteiro deverá impedir que isso chegue ao consumidor, porque é impagável", diz o analista.

Trigo, milho e soja em alta

Rússia e Ucrânia são respectivamente o primeiro e o quinto maiores exportadores de trigo do mundo e respondem juntos por mais de 15% do comércio global de milho, o que explica a forte alta das duas commodities agrícolas nesta quinta-feira.

"Pelo menos nos próximos dias, os preços devem se manter pressionados, até que se tenha uma definição do que realmente vai acontecer", avalia Roberto Sandoli, analista de grãos da consultoria hEDGEpoint.

Segundo ele, se as retaliações à invasão russa se restringirem a sanções, essa tendência de alta pode perder força.

Milho

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Milho é outro produto que pode ser pressionado pelo atual conflito na Europa

Mas, se a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) decidir enviar tropas à Ucrânia, no que vem sendo considerado um cenário de uma "Terceira Guerra Mundial", a pressão tende a se perpetuar.

Sandoli explica que o Brasil compra trigo da Argentina, país que fornece o produto a regiões também abastecidas por Rússia e Ucrânia, como o sul da Ásia e o norte da África.

"Se tivermos um cenário de guerra onde Rússia e Ucrânia parem de fornecer trigo, os compradores vão buscar outras origens, como a Argentina. Isso acaba impactando toda a precificação de importação e deixa o câmbio mais estressado", observa o analista, destacando ainda a pressão sobre o mercado de soja, devido à competição do produto com o óleo de girassol, do qual a Ucrânia é o maior exportador global.

"Se essa situação se estender, o consumidor vai começar a sentir", diz Sandoli, destacando os impactos sobre a ração animal e sobre a produção de pães e massas alimentícias.

Segundo o analista, se a crise escalar ainda mais, a pressão para os consumidores pode vir não só via preço, mas também via abastecimento.

"Os compradores começam a sair correndo, por uma questão de segurança alimentar. Todo mundo sai comprando. Já vimos isso no começo da pandemia, quando os preços subiram absurdamente", observa o especialista, ponderando, porém, que não considera esse o cenário mais provável no momento atual.

No Brasil, soma-se a esse quadro internacional estressado as quebras de safra de soja e milho no Sul do país devido à seca neste início de ano.

Por outro lado, a valorização recente do real em relação ao dólar também ajuda a situação do mercado de alimentos. Isso porque, com o real mais forte, fica mais barato para o Brasil importar commodities, mesmo que elas estejam mais caras devido às possíveis restrições de oferta.

Ainda no campo do agronegócio, outro fator de preocupação são os fertilizantes, já que o Brasil importa mais de 20% desses produtos da Rússia. Também aqui uma restrição de oferta no mercado global em decorrência da guerra pode pressionar os custos dos produtores brasileiros, forçando-os a repassar a pressão aos preços.

E a inflação e os juros com tudo isso?

Para André Braz, coordenador índices de preços no Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), o reajuste de combustíveis pela Petrobras é inevitável e deve afetar a inflação este ano.

"A gente concentra muito as análises em combustíveis, mas é preciso lembrar que o petróleo é matéria-prima para vários setores, para a indústria química, para o agronegócio devido aso fertilizantes. Então o preço do petróleo afeta a economia como um todo, num momento em que já tínhamos diversas cadeias produtivas com gargalos de produção", observa Braz.

"Essas cadeias podem agora sofrer gargalos ainda mais profundos, à medida que essa guerra se aprofunde e os países não entrem num acordo", avalia.

Além disso, o cenário de guerra muda a estratégia dos investidores internacionais e pode pôr fim à movimentação recente de valorização do real, o que também pode pressionar os preços.

"O fluxo de entrada de recursos aqui, que era mais capital especulativo, tentando explorar o diferencial de juros, pode agora buscar destinos de maior proteção, como economias mais sólidas", afirma Braz.

"Então não necessariamente esse fluxo vai continuar e nossa moeda pode não manter a valorização acumulada no período recente."

O pesquisador da FGV avalia, no entanto, que esse aumento das pressões inflacionárias não necessariamente vai fazer o Banco Central brasileiro subir mais juros. Isso porque, a partir de um determinado nível, os juros impõem uma paralisação muito forte da economia.

Além disso, o crescimento global também pode ser comprometido pela guerra na Europa, o que pesaria sobre a atividade econômica interna.

"Há um limite para o que a política monetária pode fazer, porque um juro cada vez mais alto significa crescer cada vez menos esse ano", diz Braz, lembrando ainda que os juros visam conter a demanda, mas grande parte da pressão atual de preços vem da ponta da oferta, não sendo afetada por aumentos adicionais da Selic.

"Não adianta querer botar a Selic a 12,75% por conta dessa guerra, até porque aumentos da taxa básica levam de seis a nove meses para afetarem a economia. Então, se eu aumento muito, esse aumento não vai bater agora, mas lá no fim do ano, quando o cenário já será outro", conclui o analista.

  • Thais Carrança
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Professor Edgar Bom Jardim - PE