"Meu irmão deve estar entre o número divulgado de 'curados da covid-19'. Mas e todos os outros problemas que vieram junto?"
A porta-voz do pedreiro Diego Garcez, de 35 anos, é sua irmã mais velha, a técnica de enfermagem Andreza, de 36.
Depois de quase três meses doente e internado por causa do novo coronavírus e às infecções hospitalares que se seguiram, Diego ficou com dificuldade de falar e andar.
Também precisou voltar a morar na casa da família, com a mãe e a irmã, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
Essa é a realidade de muitas famílias brasileiras, que precisam de ajuda para lutar contra as sequelas deixadas pela covid-19 — desde aquelas diretamente ligadas à doença, como tosse persistente, falta de ar, inflamação e fibrose pulmonar e perda ou mudança prolongada no paladar e no olfato, às causadas pelos longos períodos de internação.
O Vakinha, um dos mais populares sites de arrecadação de dinheiro no Brasil, detectou um crescimento de 40% das campanhas criadas mensalmente com "viés solidário" em comparação com os meses anteriores à pandemia (antes de março).
São em média mais de 2 mil novas campanhas abertas por dia, segundo a empresa, muitas relacionadas às pessoas com sequelas. Uma busca rápida leva a dezenas de pedidos de ajuda.
A BBC News Brasil conta a história de três famílias que recorreram a essa alternativa — e para quem os efeitos da doença estão longe de passar.
Oxigênio para sobreviver
Com ajuda de uma amiga, a paulista Kátia Silene, de 52 anos, decidiu criar uma vaquinha ao perceber que sua renda não seria suficiente para pagar pelos cuidados necessários na recuperação da covid-19. Sem grande alcance nas redes sociais, conseguiu arrecadar até então apenas R$ 500, um dinheiro, porém, que já ajudou no aluguel de cilindros de oxigênio portáteis. Como não sabe quando poderá se locomover sem esse suporte, a campanha segue aberta. Ela contou sua história à BBC News Brasil:
"Eu já não tinha uma vida fácil. Diabética e transplantada renal, sobrevivo com um salário mínimo por causa de um auxílio-doença. Para complementar renda, vendia bolachinhas caseiras nos bairros de Marília, interior de São Paulo.
No fim de junho, comecei a me sentir estranha. Não sentia paladar nem cheiro, mas também não tinha febre. Fui ao hospital da minha cidade três vezes, mas disseram que eu tinha dengue.
Cerca de 1 semana depois, tive que ir a uma consulta de monitoramento no Hospital do Rim, em São Paulo. Quando falei o que estava sentindo, eles imediatamente me isolaram. Mediram meu nível de saturação de oxigênio, que já estava muito baixo, e disseram que eu ficaria internada.
(Um nível de saturação de menos de 95% pode comprometer os órgãos do doente, segundo informa a Sociedade Brasileira de Infectologia em uma campanha.)
No outro dia, saiu o resultado positivo para a covid-19.
Eu só piorava: passei a ter febre, falta de ar, nível de saturação de oxigênio sempre baixo, e os exames mostraram meu pulmão comprometido.
Como não melhorava, precisei ir para a UTI, onde poderia receber melhor o oxigênio.
Eu vi muita gente morrer. Tinha pavor de dormir, ouvia os enfermeiros comentando a morte dos pacientes, dizendo que precisavam ligar para a família e entregar os pertences das pessoas. Eu só fechava os olhos.
No fim de julho, o exame mostrou que eu estava curada. Mas meus pulmões seguiam comprometidos e tinha muita falta de ar. Passei mais alguns dias no hospital, mas pude ir para casa devido ao cilindro de oxigênio fornecido pela prefeitura da minha cidade.
Na minha situação, até hoje, o aparelho precisa estar na tomada 24 horas por dia. Se eu ficar só sentada, até consigo respirar sem ele. Mas se eu me levantar, é tontura, falta de ar…
Eu continuo tendo que ir ao Hospital do Rim cinco vezes por mês para avaliar minha situação e não correr o risco de perder o meu transplante. Mas, para isso, eu preciso alugar cilindro de oxigênio portátil. São R$ 100 cada aluguel, somado aos remédios caros que tomo.
Uma amiga me indicou fazer a vaquinha. Na hora, fiquei com vergonha. Mas por causa da necessidade, resolvi aceitar que ela fizesse. Eu preciso do oxigênio para sobreviver.
Eu não me sinto curada. Estou inchada, com o rosto enorme, ainda não sinto o gosto da comida, tenho muita afta por causa da imunidade baixa.
Só quem viu — e viveu — de perto sabe a gravidade dessa doença."
Reaprendendo a comer e andar
A família de Diego Garcez, de 35 anos, recorreu a amigos e desconhecidos para poder pagar pelo tratamento em casa, após alta do hospital. A história dele se espalhou por Nova Iguaçu, e a família recebeu dezenas de doações, principalmente de fraldas, que já não são mais necessárias. Pela vaquinha, foram pouco mais de R$ 3 mil arrecadados, que ajudaram na compra de materiais de curativo, pomadas e suplemento alimentar. Agora, a família tenta ir atrás dos serviços de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia. A irmã de Diego, Andreza, compartilhou a experiência dele:
"Como o Diego morava só, em Queimados (RJ), ele passou duas semanas mal, em casa, sem a gente saber direito o que acontecia. Quando tivemos a consciência que poderia ser covid-19, já estava se agravando bastante.
Inicialmente, ele foi diagnosticado com dengue, mas eu, como técnica de enfermagem, não acreditei. Procurei outro hospital, e veio o diagnóstico. Fomos para casa, para seguir o protocolo de remédios que nos passaram no hospital.
Mas ele só piorava. A respiração faltava, ele ficava mais cansado, a febre não cessava.
Diego nunca fumou e sempre foi saudável. Acho que o que pode ter complicado sua situação foi que ele nunca se cuidou nas obras em que trabalhava, não usava máscaras para lixar parede, essas coisas. Isso pode ter comprometido parte do pulmão já aí.
Como ele estava ficando pior, o levei novamente ao hospital e insisti por uma tomografia. Ficou comprovado que 60% do pulmão dele estava comprometido. Ele foi internado, no início de maio.
Começou, então, nossa saga.
Depois de três dias de luta, consegui a transferência dele para um hospital de campanha. Mas ele chegou muito grave e já foi intubado.
A partir daí, foram várias complicações, com infecções hospitalares, enfisema subcutâneo, que é quando o ar ao invés de ir pro pulmão, vai para a pele. Ele ficou completamente inchado.
Meu irmão criou um ferimento bem grande em cima da nádega, pois ele não podia mudar de posição, devido à gravidade do caso.
(Em um manual sobre os cuidados com pacientes de covid-19, o Ministério da Saúde alerta para o aparecimento de úlceras de decúbito, popularmente conhecidas como escaras, devido ao tempo prolongado da internação de pacientes com covid-19. A orientação é mudar a pessoa de posição a cada duas horas)
As infecções foram piorando muito, a ponto de informarem, dois meses depois do início internação, que ele estava curado da covid-19, mas que o caso era seríssimo por causa das complicações.
Ele acabou tendo uma inflamação na região do tórax e foi novamente transferido, para fazer uma possível cirurgia.
Mas aí, nessa internação no novo hospital, começou a responder aos antibióticos. Diminuiu o inchaço, tirou o tubo, acordou. Como ele havia sido traqueostomizado, ele não falava, não andava. Mas ao menos melhorou da infecção.
O quadro mental e emocional, porém, se agravou, com confusão mental, depressão e ansiedade. Por isso, a melhor decisão foi levar para terminar o tratamento em casa, e ele teve alta em agosto.
O que mais pesou para recorrer à vaquinha foi o fato de meu irmão precisar de toda ajuda possível para voltar a viver bem. Nossa família não tinha condições de pagar por tudo que ele necessitava.
Eu engoli o orgulho e pedi ajuda com a vaquinha aos parentes e aos amigos.
Nos dedicamos a pagar por fonoaudióloga, fisioterapia. Precisávamos também de fraldas, curativos, pomadas, luvas. E as pessoas nos ajudaram muito com isso.
Agora, ele já começou a comer vários alimentos, até sólidos, mas ainda não voltou a falar direito. A perna direita ainda não responde bem, mas finalmente ele conseguiu tomar banho em pé.
Precisamos seguir se dedicando ao tratamento dele, que infelizmente não acontece pelo SUS.
Ele está morando conosco novamente, na nossa casa. Já estamos inclusive planejando construir uma suíte para ele no terreno, por achar que ele vai ter que permanecer aqui por um bom tempo."
'Perdi meu pai e minha voz'
A mobilização para arrecadar dinheiro partiu dos amigos da época do colégio, sensibilizados com a história de Paula Helena Souza, de 30 anos. Reunidos no WhatsApp, divulgaram a luta dela contra a covid-19 para pessoas próximas, em Santos, no litoral paulista. Até agora, conseguiram pouco mais de R$ 1 mil. O valor já ajudou nas despesas da família, abalada financeira e emocionalmente após a morte do pai, por covid-19. Paula relata a seguir o que enfrentou:
"O coronavírus chegou com tudo na minha casa. Meu pai, que já tinha uma saúde debilitada por fazer hemodiálise, foi o primeiro a pegar. Não desconfiamos logo dos sintomas, porque ele já ficava sempre cansado. Mas quando descobrimos, foi tarde. Ele morreu aos 62 anos, em Santos.
Nas vésperas da morte dele, eu já comecei a me sentir mal. Não tive nem tempo para o luto.
No dia seguinte ao enterro, senti muita falta de ar. Cheguei a pensar que seria emocional, diante de tudo que estava vivendo.
Mas fui ao pronto-socorro, onde fiquei internada. Já no outro dia, fui encaminhada ao lugar de isolamento para pacientes com suspeita de covid-19.
Já precisava de cateter de oxigênio no nariz para conseguir respirar, porque minha saturação estava baixa. Dois dias depois, comecei a me sentir muito mal, com arritmia cardíaca, e fui transferida para um hospital de campanha.
A partir daí, não lembro muita coisa. Só de uma conversa com um médico, que falou que seria necessário intubar caso eu não respondesse ao decúbito ventral, que é a posição de bruços. Acabei sendo intubada.
Foram oito dias assim, não acreditavam mais que eu ia sobreviver, porque estava muito grave. Eu acredito em milagre de Deus, porque acordei sozinha da sedação.
Fui melhorando, fui extubada, e me disseram que não havia mais o coronavírus no meu corpo.
Mas devido à intubação e sedação, perdi os movimentos do corpo e a fala. Fiz fisioterapia respiratória, e meus movimentos foram voltando.
A alta veio depois de 23 dias internada. Recebi um atestado médico de sete dias, mas sabia que não conseguiria voltar à rotina normal.
Eu cansava para fazer qualquer coisa. Para subir escada, era uma luta.
Eu continuava recebendo pelo meu trabalho administrativo em uma igreja, mas, sem a renda do meu pai, a situação financeira apertou muito.
Meus amigos passaram a me ajudar e até fizeram essa vaquinha. Eu até fiquei constrangida, mas também muito feliz com a mobilização. Realmente estava precisando, me ajudou demais.
Ainda dependo de ajuda para ir aos especialistas que preciso, da fisioterapia ao fonoaudiólogo.
Eu também canto na igreja, mas a intubação agravou um problema que eu já tinha, criando um granuloma (uma espécie de queloide nas cordas vocais). Muitas vezes dói, e é necessário um acompanhamento de fonoterapia.
Isso mexe comigo, porque cantar é uma das coisas que mais amo.
Estou na luta da recuperação total. Infelizmente, o sistema público não dá apoio na questão das sequelas, como a depressão que eu desenvolvi após passar por tudo isso.
(Problemas de saúde mental, como depressão, ansiedade e dificuldades cognitivas, também aparecem entre as sequelas mais comuns pós-covid, segundo uma pesquisa com 60 mil pacientes.)
Além disso, preciso fazer fisioterapia respiratória, fonoterapia específica para voz e ir ao dermatologista, pois perdi pelo menos 90% do meu cabelo.
Mas eu tenho lutado."
- Vitor Tavares
- Da BBC News Brasil em São Paulo