sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Wilson Witzel afastado: por que o STJ resolveu tirar o governador do Rio do cargo




Wilson Witzel, governador do Rio de JaneiroDireito de imagemANTONIO CRUZ/AGÊNCIA BRASIL
Image captionNão há ordem de prisão contra Witzel, assume o Estado o vice-governador, Cláudio Castro (PSC)

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou o afastamento imediato o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC) do cargo, inicialmente por seis meses, por irregularidades em contratos na saúde.

A decisão foi tomada na sexta-feira (28/08) pelo ministro do STJ Benedito Gonçalves.

Assume o Estado o vice-governador, Cláudio Castro (PSC).

Não há ordem de prisão contra Witzel. No total, a Polícia Federal (PF) cumpre 17 mandados de prisão, sendo 6 preventivas e 11 temporárias, e 72 de busca e apreensão.

Witzel e outras oito pessoas, incluindo sua mulher, a primeira-dama Helena Witzel, também foram denunciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) por corrupção.

O pastor Everaldo, presidente nacional do PSC, foi preso na operação.

Mas o que motivou o afastamento de Witzel?

O Ministério Público, por meio da Procuradoria-Geral da República (PGR), sustenta ter provas que colocam Witzel "no vértice da pirâmide" dos esquemas de fraudes investigados no estado.

Segundo a PGR, o governo do Rio de Janeiro estabeleceu um esquema de propina para a contratação emergencial e para liberação de pagamentos a organizações sociais (OSs) que prestam serviços ao governo, especialmente nas áreas de saúde e educação.

Ainda de acordo com a denúncia, Witzel usou o escritório de advocacia da mulher, Helena, para receber dinheiro desviado por intermédio de quatro contratos no valor aproximado de R$ 500 mil.

A decisão do ministro Benedito Gonçalves, do STJ, levou em conta as investigações de duas ações: a Favorito e a Placebo, ambas em maio (leia mais abaixo).

A operação desta sexta-feira foi batizada de Tris in Idem, uma referência ao termo em latim bis in Idem, que consiste na repetição (bis) de uma sanção sobre mesmo fato.

Trata-se, assim, de alusão aos dois antecessores de Witzel no governo do Rio de Janeiro, os ex-governadores Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, também acusados de corrupção.

O que diz Witzel

Witzel fez um pronunciamento na manhã de sexta (28) em que afirmou que é vítima de "perseguição" e que está "indignado" com o afastamento.

"É uma busca e decepção. Não encontrou R$ 1, uma joia. Simplesmente mais um circo sendo realizado. Eu e outros governadores estamos sendo vítimas do possível uso político da instituição (Ministério Público)", afirmou Witzel.

O governador afirmou ainda que não há nenhum indício de que ele esteja atrapalhando as investigações.

"Eu desafio quem quer que seja a qual foi o ato que pratiquei para prejudicar as investigações. Eu afastei o secretário da Saúde, eu determinei auditoria em todos os contratos e a suspensão dos pagamentos", afirmou.

"Todas as medidas que eu venho tomando são contrárias a qualquer decisão de afastamento porque não há nenhum ato praticado por mim ao longo desses meses que possa caracterizar que eu atrapalhei a investigação."

O procurador da República Eduardo El Hage disse, após a fala de Witzel, que o afastamento não teve motivação política. "A ação de hoje não tem qualquer motivação política, a peça (jurídica) está muito robusta. Não tem qualquer viés político, como tenta desviar o governador", afirmou El Hage em entrevista coletiva na sexta (28).

Operação Placebo - 26 de maio

Em 26 de maio, a PF deflagrou a Operação Placebo, em que Witzel e a mulher foram alvos de mandados de busca e apreensão, expedidos pelo STJ.

A PF buscava provas de supostas irregularidades nos contratos para a pandemia. A Organização social Iabas foi contratada de forma emergencial pelo governo do RJ por R$ 835 milhões para construir e administrar sete hospitais de campanha.

Operação Favorito - 14 de maio

Desdobramento da Lava Jato, a Operação Favorito resultou na prisão do ex-deputado estadual Paulo Melo e o empresário Mário Peixoto, entre outras pessoas.

Peixoto e Melo, que já foram sócios, acabaram presos a partir de indícios de que o grupo do empresário estava interessado em negócios em hospitais de campanha.

O alvo seriam as unidades montadas pelo estado — com dinheiro público — no Maracanã, São Gonçalo, Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Campos e Casimiro de Abreu.

Depois de atrasos sucessivos, apenas as duas primeiras foram abertas parcialmente.

Professor Edgar Bom Jardim - PE

Caso Flordelis: como deputada conseguiu 'adotar' mais de 50 filhos?


Flordelis e Anderson cercados pelos filhos adotivosDireito de imagemDIVULGAÇÃO
Image captionComo deputada, a desburocratização da adoção sempre foi uma bandeira de Flordelis

Entre os muitos detalhes que chamam a atenção na investigação sobre o assassinato do marido da pastora e deputada federal Flordelis (PSD) — do qual ela teria sido a mandante, segundo a polícia — um dos pontos sobre os quais ainda pairam dúvidas é como ela conseguiu adotar mais de 50 crianças quando o processo de adoção no Brasil é rigoroso e há uma enorme fila de pretendentes no cadastro de adoção.

A verdade é que, embora tenha ficado conhecida como "mãe de 55 filhos" e chamasse de "filhos adotivos" as crianças que viveram ou vivem na casa administrada por ela no Rio de Janeiro, Flordelis não chegou de fato a adotar oficialmente todos eles. Ela tem também três filhos biológicos do primeiro casamento, já adultos.

Não está claro quantos dos seus "filhos" foram oficialmente adotados, mas inquéritos e processos judiciais, além da própria autobiografia da deputada, mostram que grande parte das crianças não tinha situação regular.

Ela, na verdade, teve diversos problemas com a Vara da Infância e da Juventude porque a situação das crianças não estava regularizada — e chegou a ser fugitiva da polícia por causa disso antes de ganhar espaço na mídia.

A própria pastora contou em sua autobiografia e em inúmeras entrevistas — como no programa do apresentador Rodrigo Faro, na Record — que passou um ano fugindo da polícia com as crianças, sendo acusada de sequestro.

A situação irregular adiciona mais um mistério a um caso que, de acordo com as investigações da polícia, já é cheio de elementos peculiares.

Entenda o caso e como as crianças foram parar sob a supervisão de Flordelis.

Flordelis fala em coletiva de imprensaDireito de imagemABR
Image captionFlordelis nega todas as acusações, segundo seu advogado

O assassinato de Anderson do Carmo

Morto a tiros em junho de 2019 em um episódio que à época Flordelis afirmou ser um assalto, Anderson do Carmo era casado com a pastora desde 1994.

Os dois haviam se conhecido alguns anos antes, quando Flordelis tinha 30 anos e tocava uma igreja com a mãe na favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O templo era frequentado por muitos jovens e crianças.

Em sua casa na rua Guarani, umas das vielas da favela, Flordelis — que era recém-divorciada e tinha três filhos biológicos — começou a acolher jovens e crianças da comunidade que viviam em situação de vulnerabilidade.

Apesar ter uma situação de vida estável (morava com os pais, trabalhava como jovem aprendiz, tinha se formado em um dos colégios públicos mais tradicionais do Rio) em pouco tempo Anderson, que tinha 14 anos, passou a morar na casa da rua Guarani e se tornou um dos cinco acolhidos que Flordelis tratava como filhos — seus "filhos adotivos".

Segundo um relato de sua mãe, Maria Edna do Carmo, à polícia, a primeira namorada de Anderson foi Simone, uma das filhas biológicas de Flordelis. O namoro durou pouco, no entanto, e Anderson logo começou um relacionamento com a própria Flordelis.

Os dois se casaram em 1994, o que só foi possível porque Anderson não tinha sido oficialmente adotado.

O casamento durou 25 anos, até 2019, quando Anderson foi morto com 30 tiros na porta de casa.

No entanto, a Operação Lucas 12 do Ministério Público do Rio de Janeiro e da Polícia Civil apontou Flordelis como mandante do homicídio e prendeu cinco filhos da deputada que estariam envolvidos no crime.

"Flordelis financiou a compra da arma, convenceu pessoas a realizar esse crime, avisou sobre a chegada da vítima ao local e tentou ocultar provas. Não resta a menor dúvida de que ela foi a autora intelectual, a grande cabeça desse crime", afirmou o delegado Allan Duarte, responsável pela investigação, em entrevista coletiva na segunda (24).

A motivação, segundo a investigação, seriam questões financeiras e intrigas familiares — Flordelis acreditava que um divórcio mancharia sua reputação como pastora.

"Quando ela fala com um dos filhos (em mensagens de celular) sobre os planos de matar Anderson, ela disse: 'Fazer o quê? Se eu separar dele, vou escandalizar o nome de Deus'", disse o promotor Sérgio Luiz Lopes Pereira, do Ministério Público.

ReproduçãoDireito de imagemREPRODUÇÃO
Image captionDesavenças financeiras teriam levado deputada a planejar morte do marido

A defesa da deputada diz que fui surpreendida com as acusações e que a deputada "jamais foi mandante desse crime bárbaro".

"A deputada está muito aborrecida e chateada com tudo que está ocorrendo porque tem com ela a inocência", afirmou o advogado Anderson Rollemberg no dia da coletiva.

"Ela é cantora gospel, líder religiosa e parlamentar federal. A questão dela sempre foi dar o melhor para os necessitados. Por isso tinha mais de 50 filhos. Na opinião da defesa, está havendo um grande equívoco no desfecho desta investigação", disse ainda o advogado.

A chegada das crianças

Ainda nos anos 1990, Flordelis começou a acolher outros jovens e crianças além dos três filhos biológicos e cinco primeiros jovens que abrigou em sua casa.

Um desses foi Daniel dos Santos Souza, que era apresentado por Flordelis e Anderson como filho biológico, mas que na verdade foi entregue para o casal ainda bebê.

Segundo as investigações da Delegacia de Homicídios, Flordelis recebeu o bebê de uma jovem cuja gravidez não era aceita pela família. Prontuários médicos da maternidade Santa Helena, em Duque de Caxias, apontam que ele nasceu ali em 18 de janeiro de 1998, filho biológico de Janaina Barbosa.

Segundo a polícia, em sua certidão de nascimento, no entanto, consta que seus pais são Janaina e Anderson, apesar de Daniel nunca ter passado por um processo oficial de adoção.

"Quando alguém passa por um processo de adoção na Justiça, o nome dos pais adotivos fica registrado nos documentos da criança, mas com a indicação da adoção aprovada pela Justiça. Registrar uma criança como seu filho, sem que ele seja seu filho biológico, sem passar pela Vara da Infância e Juventude, é considerado falsificação de documento e é ilegal", explica a advogada de família Mariana Turra Pontes.

Flordelis na CâmaraDireito de imagemAFP
Image captionDeputada não pode ser presa a não ser em flagrante de crime inafiançável

Ao lado dos filhos biológicos e dos primeiros "adotados", Daniel formava na família o que a investigação apontou como sendo a "primeira geração" de filhos — um grupo de oito pessoas que, segundo a polícia, tinha tratamento diferenciado por parte dos pais.

A "primeira geração", apontam as investigações, tinha acesso a cômodos melhores, melhor alimentação e mais proximidade com Anderson e Flordelis.

As outras crianças foram chegando de diversas formas. Flordelis conta em sua biografia e já disse em várias entrevistas que 37 deles foram acolhidos de uma vez após sobreviverem aos ataques feitos por grupos de extermínio contra crianças que dormiam na Estação Central do Brasil.

Outros foram entregues diretamente por pais que não tinham condição de criar os filhos, segundo o livro sobre a vida da Flordelis. A pastora também chegou a buscar algumas das crianças após receber notícias de que elas estavam em situação de vulnerabilidade.

De fugitiva a deputada

A própria Flordelis conta em sua autobiografia que começou a ter problemas com a Justiça ainda nos anos 1990, por causa da situação irregular das crianças — ela chegou a ser acusada de ser "sequestradora de crianças".

Com o crescimento da família e os problemas com a Justiça, Flordelis e Anderson se mudaram diversas vezes fugindo das fiscalizações da Vara da Infância de da Juventude.

Para criar os "filhos", ela teve ajuda de um ONG que começou a chamar a atenção da mídia para a situação da pastora. Flordelis começou então a ganhar notoriedade e ajuda para cuidar das crianças.

Em 1999, ela e Anderson fundaram sua primeira igreja juntos, na zona norte do Rio, transferido no ano seguinte para São Gonçalo.

Em 2001, o Ministério Público do Rio de Janeiro entrou com uma ação contra Flordelis pelo fato de ela não ter dado o devido andamento ao processo de adoção de uma das crianças. Alguns anos depois, com a adoção oficial da menina, o processo foi extinto.

Em 2009, o filme Flordelis — Basta uma Palavra para Mudar, contando a história de sua vida e das adoções, teve a participação de diversas celebridades, que não cobraram cachê.

Nessa época Flordelis já se aventurava pela política, tendo concorrido a cargos em São Gonçalo, sem sucesso. Em 2018, no entanto, ela conseguiu se eleger como deputada federal pelo Rio de Janeiro, sendo a mulher mais votada no Estado.

Adoções irregulares

Com notoriedade pública cada vez maior, a pastora acabou conseguindo evitar que as crianças fossem retiradas pela Vara da Infância e da Juventude. Em entrevistas, ela afirmou que finalmente conseguiu "diálogo com um juiz" para um processo de "regularização" do situação dos filhos na Justiça, ganhando ao menos a guarda temporária de alguns deles.

Após o homicídio da Anderson, começou a vir à tona que, apesar de Flordelis ter conseguido evitar que as crianças fossem levadas, nem todos são oficialmente adotados — com um processo regular, aprovado pela Justiça.

A Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Niterói está investigando as diversas "adoções" feitas pela deputada depois que o Conselho Tutelar denunciou que uma adolescente de 17 na casa de Flordelis mora no local há seis anos sem nem ao menos ter certidão de nascimento.

Em um discurso em fevereiro, na Câmara dos Deputados, Flordelis afirmou que tentava conseguir um registro de nascimento para a jovem e que tinha sua guarda legal.

Flordelis fala em coletiva de imprensaDireito de imagemABR
Image captionDeputada federal Flordelis (PSD-RJ) seria a mandante do crime, segundo os investigadores

"Minha filha hoje só frequenta uma escola porque eu tive que ir lá implorar para minha filha entrar naquela escola, mesmo que de forma ilegal", disse a deputada no plenário.

Advogados de família explicam, no entanto, que a Justiça não concede a guarda legal de uma criança ou adolescente sem que seja emitido um documento para a pessoa — em caso de incerteza sobre a origem, os dados são presumidos.

O jornal O Globo revelou que os pais da adolescente afirmaram aos investigadores que a menina havia fugido de casa e que eles nunca deram consentimento para que ela fosse morar com a deputada.

Após o homicídio de Anderson, a mãe de outras três crianças que ficaram sob o cuidado de Flordelis também foi à Delegacia de Homicídios para contar que nunca conseguiu reaver as filhas após deixá-las com Flordelis.

Carla perdeu a guarda das crianças após ser presa por furto e deixou as crianças com Floderlis no tempo em que ficou presa. Ela diz, no entanto, que nunca teve a intenção de entregá-las definitivamente, e que descobriu que havia assinado uma adoção definitiva somente no Tribunal de Justiça.

"Em frente ao juiz comecei a chorar. Contei que não queria dar as minhas filhas. Flordelis se aproximou e disse que eu poderia encontrar minhas filhas depois e me daria um emprego", contou Carla à polícia. A vendedora de empadas afirmou na delegacia que nunca conseguiu rever as meninas após sair da prisão.

Já Flordelis diz em sua autobiografia que a mãe biológica das crianças teria dito a ela que amava as meninas mas que "não as queria mais".

A neta de Flordelis, Rayane dos Santos Oliveira, que segundo a polícia também estaria envolvida no homicídio de Anderson, também não teria sido adotada de forma regular, revelou o jornal carioca Extra.

A história de Rayane, que teria sido encontrada em uma lixeira na Central do Brasil, era com frequência contada por Flordelis em suas pregações. A menina foi registrada como filha de Simone, uma das filhas biológicas de Flordelis.

A adoção de Rayane por Simone, no entanto, não seria permitida por lei, já que a diferença de idade entre as duas é de apenas 13 anos.

"Há uma série de requisitos para a adoção", explica a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva. "Um deles é que a diferença de idade mínima entre o pretendente e o adotado seja de 16 anos", diz Tavares da Silva, que é fundadora e presidente nacional da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões).

Como funciona a adoção

Em sua atuação como deputada, uma das principais bandeiras de Flordelis era o que chamava de "desburocratização da adoção".

"O Brasil tem 44 mil crianças e adolescentes atualmente vivendo em abrigos, mas cerca de 9 mil habilitadas para adoção. Temos que mudar essa realidade", afirmou em maio de 2019 ao jornal Folha de S.Paulo.

O processo de adoção no Brasil é rigoroso, explicam advogados de família ouvidos pela BBC News Brasil, porque é preciso garantir o bem-estar das crianças.

Eles contam que há um histórico lamentável de devoluções de adoções no Brasil, e o objetivo de ter um processo rigoroso é evitar que isso se repita.

"O princípio maior que rege a questão é o interesse da criança", explica Tavares da Silva.

Há uma série de requisitos, explica Tavares da Silva: o pretendente à pai ou mãe precisa ser maior de idade, ter uma diferença mínima de 16 anos com a criança, e precisa demonstrar judicialmente que tem condições morais, psicológicas, educacionais para poder adotar.

"A adoção só pode ser deferida quando apresentar reais vantagens para o adotado", explica a advogada.

O processo de adoção costuma levar cerca de um ano, e é preciso que os pretendentes a pais consigam um habilitação na Justiça e que haja um tempo de convivência da criança com a família.

No entanto, a fila para o cadastro de adoção — ou seja, a espera para que os pais possam começar um processo de adoção — pode ser longa e demorar anos, dependendo da comarca em que os pais se encontram.

Flordelis jamais entrou nessa fila para o cadastro, porque seu objetivo era adotar crianças que já estavam com ela.

Embora não seja a norma, adotar de forma legal e oficial uma criança que já está sob sua guarda, porque foi entregue pelos pais, é uma possibilidade existente no Brasil — é a chamada adoção dirigida, explica a advogada Mariana Turra Ponte. "Mas é um processo bastante longo e complexo, e nem sempre a adoção é garantida", afirma.

"É uma jurisprudência que começa a se formar, a pessoa começa a cuidar, aos poucos vai conseguindo a guarda, até a adoção", diz Tavares da Silva.

Mas mesmo em casos em que a Justiça autoriza processos como esse, é algo totalmente incomum que alguém adote um número tão grande de crianças e adolescentes.

No caso dos filhos de Flordelis, não está claro quantas as crianças e jovens adotados de fato passaram por esse processo de regularização na Justiça, já que a deputada nunca tornou públicos os documentos. Como as investigações da polícia e do Ministério Público revelaram, há diversos casos entre as crianças em que a autorização da Justiça nunca foi dada.

O que pode acontecer com a deputada? E com os filhos?

Mesmo sendo considerada mandante do homicídio de Anderson pela polícia, Flordelis não foi presa porque tem, como deputada federal, imunidade prisional.

Ou seja, só pode ser presa caso ocorra um flagrante de um crime inafiançável. Na prática, a deputada não pode sofrer nenhum tipo de prisão preventiva ou temporária.

Esse direito é garantido pela Constituição Federal a parlamentares para impedir que prisões arbitrárias ou um uso político de prisões para perseguir ou retaliar os ocupantes destes cargos. Enquanto isso, a deputada está impedida de deixar o país ou se mudar para outra cidade. Também não pode ter contato com qualquer testemunha ou com os outros réus.

Para que um deputado seja preso ou afastado por decisão do Poder Judiciário, é preciso que a Câmara dê autorização. Uma cópia do inquérito com o resultado da investigação será enviada à Câmara para que sejam adotadas as medidas administrativas cabíveis.

"Se o Judiciário pedir o afastamento, vamos decidir", disse o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em entrevista à Rádio Guaíba. "Em relação ao processo, tenho que analisar para que a Câmara avalie que providências tomar."

Apesar da imunidade prisional conferida pelo mandato, Flordelis não tem direito ao chamado foro privilegiado, que determina que um caso envolvendo um parlamentar só pode ser julgado pelas instâncias judiciais superiores.

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal decidiu que isso só ocorre quando o crime investigado tem relação com o mandato, o que não é o caso.

Cinco dos filhos de Flordelis e a neta Rayane já foram presos em meio à investigação sobre a morte de Anderson do Carmo, acusados pela polícia de envolvimento no crime.

Boa parte dos outros filhos já é adulta e já saiu da casa onde vivem as crianças em Niterói.

Em relação aos menores de idade, o Ministério Público pode entrar com um pedido de que a Justiça realoque as crianças caso as investigações em andamento pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente comprovem que houve irregularidade nas adoções e que o ambiente em que vivem os menores não é adequado.

Se Flordelis for presa em meio à investigação sobre o assassinato do marido, o Ministério Público também deve entrar com um pedido na Justiça para que seus filhos adotivos tenham uma tutela adequada. Caberá a um juiz decidir sobre o futuro das crianças.

Professor Edgar Bom Jardim - PE

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

STJ autoriza acesso a dados do Google para investigar mandantes do assassinato de Marielle



Investigadores querem rastrear quem pesquisou o nome da vereadora e o local do crime antes do assassinato, mas empresa havia recorrido

A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitou a ação da empresa americana Google e autorizou o acesso a dados para investigar o mandante do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ). A votação ocorreu nesta quarta-feira 26.

Maioria dos dez ministros da Corte acompanhou o voto do relator, ministro Rogério Schietti Cruz, que negou provimento ao recurso da companhia: Antonio Saldanha Palheiro, Reynaldo.

Os investigadores do crime ocorrido em 2018 querem ter acesso a informações do Google para chegar aos mandantes do homicídio, pois poderão rastrear os usuários que fizeram pesquisas sobre o nome da vereadora e o local do assassinato antes da data do crime.

A Justiça do Rio de Janeiro permitiu o compartilhamento de dados do Google com os investigadores, após um pedido feito em agosto de 2018 pela Polícia Civil e pelo Ministério Público.

No entanto, em dezembro de 2018, a companhia californiana entrou com um recurso no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) para reverter a decisão, com o argumento de que a medida violaria o direito à privacidade dos usuários.

O recurso da empresa foi negado pelo TJ-RJ. No mês seguinte, a companhia entrou com um novo recurso, dessa vez no STJ. A Procuradoria-Geral da República (PGR) deu parecer favorável para a ação, mas os ministros ainda assim obrigaram que Google forneça os dados à investigação.

Em seu voto, o ministro Antonio Saldanha Palheiro afirmou que as alegações da empresa quando às suas políticas de privacidade não se aplicam ao caso da investigação.

“É uma política de privacidade que não prevalece na hora de disponibilizar nossos dados para propagandas, e coisas do gênero, que invadem a nossa esfera de individualidade cotidianamente”, disse o ministro. “A reiteração do Google em não entender às demandas do poder Judiciário realmente ultrapassa a esfera da razoabilidade e daquilo que nós podemos suportar.”

O que querem os investigadores

Segundo revelou a emissora GloboNews em abril do ano passado, a solicitação dos investigadores é de que haja um levantamento de todos os computadores ou celulares usados para pesquisar palavras-chave no Google, relacionadas a Marielle e ao local do crime: Marielle Franco; Vereadora Marielle; Agenda vereadora Marielle; Casa das Pretas; Rua dos Inválidos, 122; Rua dos Inválidos.

Os investigadores também pedem a lista dos IPs [internet protocol, que identifica o endereço da conexão da internet], e dos device ids [o código que identifica o computador ou o celular], relacionados aos autores das pesquisas feitas no Google com as palavras-chave sobre Marielle, entre 7 e 14 de março de 2018.

Google avalia recorrer ao STF

Em nota, o Google afirmou que respeita o trabalho de investigação, mas entende que os pedidos aprovados no STJ são “genéricos”. A empresa disse que lamenta a decisão da Corte e avalia a possibilidade de recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para reverter a medida.

“O Google lamenta a decisão tomada hoje pelo Superior Tribunal de Justiça. Reiteramos nosso respeito ao trabalho de investigação das autoridades brasileiras, com as quais colaboramos de modo consistente. Embora tenhamos atendido diversas ordens expedidas no caso em questão, entendemos que a discussão levada ao STJ envolve pedidos genéricos e não individualizados, contrariando a proteção constitucional conferida à privacidade e aos dados pessoais. Mais uma vez, o Google reafirma o compromisso com a privacidade dos brasileiros e está avaliando as medidas a serem adotadas, inclusive um eventual recurso ao Supremo Tribunal Federal”, escreveu a companhia.

Carta Capital

Professor Edgar Bom Jardim - PE

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Biografia de Melodia alerta à falta de ligação do morro com o asfalto




Meu Nome É Ébano, a Vida e a Obra de Luiz Melodia, de Toninho Vaz (Editora Tordesinhas), lançado dias atrás, trata de um artista cada vez mais difícil de encontrar no universo musical, com tamanha autenticidade.

Luiz Carlos dos Santos nasceu numa estreita rua no Morro de São Carlos, no Rio de Janeiro, das mãos de uma parteira em 7 de janeiro de 1951. Jogava bola, convivia com a turma de lá, de moradores comuns da comunidade a envolvidos em ilicitudes. Aos 18 anos serviu o quartel. My Black, Meu Nego, música dedicada a uma moça, que mais tarde foi rebatizada de Pérola Negra, foi gravada por Gal Costa em 1971 e tornou Melodia conhecido no meio.

Antes, porém, a descoberta do talento do cantor e compositor veio de uma situação típica carioca da época: famosos que frequentavam comunidades se deparavam com talentos artísticos e o carregavam ao asfalto. No caso de Melodia, essa figura que fez esse papel foi Hélio Oiticica, que depois o leva a Waly Salomão e Torquato Neto. O rapaz do moro então começa a fazer parte das rodas de música da Zona Sul, tem a oportunidade de apresentar suas canções, conhecer instrumentistas, dividir noitadas e drogas. 

Esse pessoal era ligado ao Tropicalismo, mas Luiz Melodia não era relacionada à poesia concreta, uma característica do movimento, mas da poesia do morro, originária do samba, de versos curtos, frases idem, palavras simplórias que ora se conectam ora mostram-se soltas, mas de uma enorme resolução musical, efeito comunicacional e significado.

O realismo absurdo dos poetas populares em Estácio, Holly Estácio, de Luiz melodia: “Se alguém quer matar-me de amor / Que me mate no Estácio / Bem no compasso / Bem junto ao passo / Do passista da escola de samba / Do largo do Estácio”. No outro verso da mesma música, o sem nexo aparente, mas cheio de significados imaginários e envolventes: “Estácio acalma o sentido dos erros que faço / Trago, não traço, faço, não caço / O amor da morena maldita domingo no espaço.

Aliás, foi essa música gravada por Maria Bethânia em 1972 que deu a Luiz Melodia o reconhecimento de compositor profícuo.

 

Artista pleno

A biografia de Toninho Vaz, que já escreveu sobre Torquato Neto, entre outros, é valorosa nesse aspecto porque desvenda o personagem carioca pobre que sobressaiu na música com sua poesia, delicadeza, amorosidade.  Cantava bem, no ritmo e tempo seu, originalíssimo. Suas composições são extensões de seu corpo. Um artista pleno e na essência, dia e noite.

Os aspectos da vida de artista badalado, exaltações da mídia e amigos e festas protocolares são abordados na obra com certa insistência, talvez para mostrar que Luiz Melodia é muito maior artisticamente do que o espaço hoje reservado a ele na história cultural do país. E isso é pura verdade.

Luiz Melodia evitou ser bibelô da indústria da música. Por conta disso, tinha fama do termo horrendo “maldito”. Pelo contrário, tentou ser ele próprio o tempo todo: um moleque nascido na quebrada, negro que sofreu preconceito a vida inteira, mas tinha algo forte a revelar e a interpretar, sem muita concessão. O livro expõe essa face de Melodia de forma contundente.

Era um cara que frequentou balcão de bar de esquina a vida inteira, até antes de morrer de câncer aos 66 anos em 2017. Além disso, gostava de perambular pela noite depois de shows após décadas de estrada, sem se importar com as aparências, embora estivesse sempre elegante.

Esse tipo é muito bom em livro, mas costuma ferir o status quo. O jeito malandro de ser do cantor, nunca perdido e autêntico dele, precisa ser criticado para o grupo dominante se autoafirmar superior na conduta padrão de fachada. Destaques ainda na obra o papel da mulher Jane Reis na organização da vida anárquica do boêmio Melodia, e o violão de Renato Piau, escolhido para ser seu braço direito musical.

Luiz Melodia foi um dos mais brilhantes artistas brasileiros. A continuidade da ligação que fez do morro com asfalto é necessária e urgente.  O livro de Toninho Vaz faz lembrar o quanto isso mudou hoje, com cada um no seu quadrado, se autoproduzindo. Isso é também bacana, mas impõem restrições. Há muitos talentos espalhados por aí a serem descobertos. 

Carta Capital

Professor Edgar Bom Jardim - PE