terça-feira, 25 de agosto de 2020

Biografia de Melodia alerta à falta de ligação do morro com o asfalto




Meu Nome É Ébano, a Vida e a Obra de Luiz Melodia, de Toninho Vaz (Editora Tordesinhas), lançado dias atrás, trata de um artista cada vez mais difícil de encontrar no universo musical, com tamanha autenticidade.

Luiz Carlos dos Santos nasceu numa estreita rua no Morro de São Carlos, no Rio de Janeiro, das mãos de uma parteira em 7 de janeiro de 1951. Jogava bola, convivia com a turma de lá, de moradores comuns da comunidade a envolvidos em ilicitudes. Aos 18 anos serviu o quartel. My Black, Meu Nego, música dedicada a uma moça, que mais tarde foi rebatizada de Pérola Negra, foi gravada por Gal Costa em 1971 e tornou Melodia conhecido no meio.

Antes, porém, a descoberta do talento do cantor e compositor veio de uma situação típica carioca da época: famosos que frequentavam comunidades se deparavam com talentos artísticos e o carregavam ao asfalto. No caso de Melodia, essa figura que fez esse papel foi Hélio Oiticica, que depois o leva a Waly Salomão e Torquato Neto. O rapaz do moro então começa a fazer parte das rodas de música da Zona Sul, tem a oportunidade de apresentar suas canções, conhecer instrumentistas, dividir noitadas e drogas. 

Esse pessoal era ligado ao Tropicalismo, mas Luiz Melodia não era relacionada à poesia concreta, uma característica do movimento, mas da poesia do morro, originária do samba, de versos curtos, frases idem, palavras simplórias que ora se conectam ora mostram-se soltas, mas de uma enorme resolução musical, efeito comunicacional e significado.

O realismo absurdo dos poetas populares em Estácio, Holly Estácio, de Luiz melodia: “Se alguém quer matar-me de amor / Que me mate no Estácio / Bem no compasso / Bem junto ao passo / Do passista da escola de samba / Do largo do Estácio”. No outro verso da mesma música, o sem nexo aparente, mas cheio de significados imaginários e envolventes: “Estácio acalma o sentido dos erros que faço / Trago, não traço, faço, não caço / O amor da morena maldita domingo no espaço.

Aliás, foi essa música gravada por Maria Bethânia em 1972 que deu a Luiz Melodia o reconhecimento de compositor profícuo.

 

Artista pleno

A biografia de Toninho Vaz, que já escreveu sobre Torquato Neto, entre outros, é valorosa nesse aspecto porque desvenda o personagem carioca pobre que sobressaiu na música com sua poesia, delicadeza, amorosidade.  Cantava bem, no ritmo e tempo seu, originalíssimo. Suas composições são extensões de seu corpo. Um artista pleno e na essência, dia e noite.

Os aspectos da vida de artista badalado, exaltações da mídia e amigos e festas protocolares são abordados na obra com certa insistência, talvez para mostrar que Luiz Melodia é muito maior artisticamente do que o espaço hoje reservado a ele na história cultural do país. E isso é pura verdade.

Luiz Melodia evitou ser bibelô da indústria da música. Por conta disso, tinha fama do termo horrendo “maldito”. Pelo contrário, tentou ser ele próprio o tempo todo: um moleque nascido na quebrada, negro que sofreu preconceito a vida inteira, mas tinha algo forte a revelar e a interpretar, sem muita concessão. O livro expõe essa face de Melodia de forma contundente.

Era um cara que frequentou balcão de bar de esquina a vida inteira, até antes de morrer de câncer aos 66 anos em 2017. Além disso, gostava de perambular pela noite depois de shows após décadas de estrada, sem se importar com as aparências, embora estivesse sempre elegante.

Esse tipo é muito bom em livro, mas costuma ferir o status quo. O jeito malandro de ser do cantor, nunca perdido e autêntico dele, precisa ser criticado para o grupo dominante se autoafirmar superior na conduta padrão de fachada. Destaques ainda na obra o papel da mulher Jane Reis na organização da vida anárquica do boêmio Melodia, e o violão de Renato Piau, escolhido para ser seu braço direito musical.

Luiz Melodia foi um dos mais brilhantes artistas brasileiros. A continuidade da ligação que fez do morro com asfalto é necessária e urgente.  O livro de Toninho Vaz faz lembrar o quanto isso mudou hoje, com cada um no seu quadrado, se autoproduzindo. Isso é também bacana, mas impõem restrições. Há muitos talentos espalhados por aí a serem descobertos. 

Carta Capital

Professor Edgar Bom Jardim - PE

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