segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

História:Cavernas revelam como viveram os últimos neandertais, nossos 'primos' extintos





Estátua de um neandertalDireito de imagemALAMY
Image captionParte do genoma neandertal ainda persiste nos seres humanos modernos

Há 40 mil anos, na Europa, o homo sapiens não era a única espécie humana existente — havia pelo menos outras três, entre elas os neandertais. Extraordinariamente parecidos conosco, eles viveram em regiões do continente por mais de 300 mil anos.
Os neandertais eram resilientes. Existiram por cerca de 200 mil anos a mais do que a existência total dos seres humanos modernos até hoje. As últimas evidências deixadas por eles datam de 28 mil anos atrás, o que dá uma estimativa de quando a espécie foi extinta.
Fósseis mostram que, no fim, os poucos que restavam sobreviviam em lugares como Gibraltar. As descobertas feitas neste território britânico no sul da Península Ibérica estão nos ajudando a entender mais sobre os últimos neandertais — e revelando que eles eram muito mais parecidos com nós do que acreditávamos.
Por causa disso, Gibraltar recebeu em 2016 o status de patrimônio mundial da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco).
Há um especial interesse em quatro grandes cavernas, das quais três mal foram exploradas até agora. Mas escavações realizadas em uma delas, a caverna de Gorham, mostram que os neandertais "não estavam apenas sobrevivendo", como conta o diretor de arqueologia do Museu de Gibraltar, Clive Finlayson.
"[A caverna de Gorham] era de certa maneira a cidade dos neandertais. Este era o lugar com a maior concentração de neandertais da Europa."



Reprodução de uma família Neanderthal em exposição no Museu de História Natural de ChicagoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionReprodução de uma família Neanderthal em exposição no Museu de História Natural de Chicago

Não se sabe se isso significa que havia ali apenas dezenas de pessoas ou algumas famílias, porque evidências genéticas sugerem que os neandertais viviam em "populações muito pequenas".
Sua ocupação de Gibraltar foi identificada pela primeira vez em 1848, com a descoberta do primeiro crânio de um neandertal adulto. Desde então, foram encontrados ossos de mais sete indivíduos, bem como inúmeros artefatos que usavam em seu cotidiano, como ferramentas, restos mortais de animais e conchas.
É possível datar cada descoberta com base em onde foi encontrada. Dentro da caverna de Gorham, existem muitos metros de camadas de sedimentos. Cada camada representa um momento diferente no tempo geológico.
Restos fósseis descobertos nessas camadas sugerem que os neandertais de Gibraltar ocuparam a caverna por mais de 100 mil anos.
Os neandertais podem ter vivido na região até há cerca de 24 mil a 33 mil anos, de acordo com a datação de uma das camadas. Isso aponta essa área como um dos últimos lugares conhecidos habitados por neandertais.
Eles também podem ter ocupado áreas costeiras vizinhas, mas o nível do mar subiu consideravelmente nos últimos 30 mil anos. Isso significa que qualquer outra evidência fóssil está submersa.
"Temos sorte de que, em Gibraltar, por causa de seus penhascos íngremes, as evidências permaneceram intactas", diz Finlayson, que, junto com sua mulher, Geraldine, e seu filho, Stewart, escava essas cavernas há muitos anos. Todos os três são cientistas.
Enquanto a parte da frente da caverna de Gorham é relativamente aberta, banhada por luz solar e com vista direta para o oceano, a parte de trás é mais escura e se divide em várias câmaras.
Estas cavernas permanecem frescas no verão e levemente quentes nos meses mais frios, o que as torna perfeitas para descansar ​​e ficar a salvo de predadores.



Clive Finlayson em caverna em GibraltarDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionClive Finlayson, diretor de arqueologia do Museu de Gibraltar, diz que os neandertais poderiam ter prosperado na caverna de Gorham

Hábitos de caça

Como o restante de sua espécie, os neandertais que moravam ali eram diferentes do que pensávamos — um grupo brutal e corpulento de humanos primitivos que só grunhiam para se comunicar e usavam violentamente seus porretes.
Como explica a pesquisadora Paola Villa, da Universidade do Colorado, em uma revisão de estudos sobre a espécie, os neandertais eram muito semelhantes a nós.
Essa visão ganha força com descobertas feitas a partir de análises genéticas. Não apenas compartilhamos 99,5% do mesmo DNA, como também carregamos em nós um pouco do DNA neandertal ainda hoje.
Isso porque houve vários cruzamentos entre eles e nossa espécie, quando chegamos à Europa, vindos da África. Todos os indivíduos fora da África ainda levam em si evidências dessa mistura pré-histórica. Entre milhares de indivíduos, pesquisadores identificaram um total combinado de 20% de DNA neandertal em humanos modernos hoje.
As descobertas na caverna de Gorham nos ajudam a compreender muitos outros aspectos sobre os neandertais, especialmente sobre seus últimos anos na Terra.
Restos encontrados no local indicam que eles consumiam frutos do mar e mamíferos marinhos. Isso não é surpreendente, dadas as evidências publicadas recentemente de que que eram capazes de nadar.
Acredita-se inclusive que caçavam golfinhos, diz Clive Finlayson. Ainda não está claro como o faziam, mas sabemos que caçavam — ou matavam — grandes animais selvagens, como mamutes, rinocerontes e veados.



Crânio fossilizado de um neandertalDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionO crânio fossilizado de um neandertal encontrado em Gibraltar é exibido no Museu de História Natural de Londres

Os restos de mais de 150 espécies diferentes de pássaros também foram descobertos na caverna de Gorham, muitos com marcas de dentes e cortes, o que sugere que os neandertais os comeram. Há até mesmo evidências de que eles caçavam aves de rapina, incluindo águias e abutres.
Não sabemos se usavam iscas e esperavam a oportunidade certa ou se caçavam ativamente pássaros, uma tarefa mais difícil. O que sabemos é que não comiam necessariamente todos os pássaros que caçavam, principalmente aves de rapina como abutres — que são cheios de ácido.
"A maioria das marcas de corte está nos ossos das asas, onde há pouca carne. Parece que eles as pegavam para usar suas penas", diz Finlayson.
Eles aparentemente tinham preferência por pássaros com penas pretas, o que indica que estes eram usados ​​para fins decorativos. Neste caso, os neandertais tinham uma compreensão e apreciação sofisticadas de símbolos culturais e eram dotados de habilidades cognitivas que poderiam estar em pé de igualdade com as nossas.
E, independentemente de quão inteligentes fossem, a criação desses artefatos culturais é uma das características que definem a humanidade.

Arte e linguagem

Eles podiam até mesmo produzir arte. Em uma surpreendente descoberta, os Finlaysons encontraram uma marcação na parede da caverna de Gorham, que apelidaram de "hashtag neandertal". Essa foi a primeira evidência de arte neandertal, diz Geraldine.
Apesar da simplicidade da marcação, Geraldine garante que houve preparação para fazê-la. "Não foi algo que aconteceu por um erro. Algum processo de pensamento estava em andamento", afirma ela.
Quando arqueólogos tentaram refazer a marcação, descobriram que o sulco mais profundo exigia 60 movimentos com uma ferramenta de pedra afiada. "Ficou claro que foi algo intencional", diz Geraldine.
A descoberta de conchas decorativas e do uso de pigmentos vermelhos também apontam para a possibilidade de terem utilizado objetos para fazer arte.
Novamente, se foi esse o caso, isso mostra que os neandertais tinham habilidades de criar símbolos antes consideradas exclusivamente humanas. Na Espanha, pinturas rupestres de animais e formas geométricas de 64 mil anos atrás também foram atribuídas aos neandertais.



Pinturas rupestres encontradas na EspanhaDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionPinturas rupestres encontradas na Espanha foram criadas 20 mil antes da chegada dos humanos modernos à Europa, possivelmente por neandertais

Se foram capazes de produzir arte e joalheria, talvez não surpreenda que estudos recentes indiquem que também possuíam sofisticadas habilidades de linguagem.
Um estudo que analisou um osso considerado crucial para a fala, o hioide, localizado na região do pescoço, abaixo da mandíbula, descobriu que o equivalente dos neandertais funcionava exatamente como o nosso.
De acordo com a equipe de cientistas liderada por Stephen Wroe, da Universidade da Nova Inglaterra, na Austrália, um modelo de computador criado com base nisso concluiu que os neandertais podiam falar como nós.
"Muitos argumentariam que nossa capacidade de fala e linguagem está entre as características mais fundamentais que nos tornam humanos. Se os neandertais também tinham linguagem, também eram verdadeiramente humanos", diz Wroe.
Se podiam falar, também eram capazes de transmitir informações entre si com eficiência, como, por exemplo, ensinar uns aos outros a fazer ferramentas. Podem até mesmo ter ensinado uma coisa ou duas aos humanos modernos.



Macaco em penhasco de GibraltarDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionFinlayson diz que os penhascos íngremes de Gibraltar ajudaram a preservar os restos mortais dos neandertais

Novas evidências sugerem que foi exatamente isso que aconteceu quando os neandertais e os humanos modernos entraram em contato.
Um tipo de ferramenta óssea, descoberta em um conhecido local dos neandertais, também foi achada mais tarde onde viviam apenas humanos modernos.
A equipe de Marie Soressi, da Universidade de Leiden, na Holanda, analisa locais que foram habitados por neandertais há cerca de 40 mil a 60 mil anos.
As ferramentas que encontraram foram feitas com fragmentos de ossos de costelas de veados e, provavelmente, usadas para ajudar a tornar a pele do animal mais macia, possivelmente para confeccionar roupas.
"Esse tipo de ferramenta óssea é muito comum em qualquer local usado por humanos modernos após o desaparecimento dos neandertais", diz Soressi.
Isso sinaliza que os humanos modernos que se encontraram com os neandertais copiaram o uso deste tipo de ferramenta. "Para mim, é possivelmente a primeira evidência de que algo foi transmitido dos neandertais para os humanos modernos."
Quando o homo sapiens vivia mais perto da linha do Equador, não precisava de roupas quentes. Os neandertais, por outro lado, viviam nos climas mais frios da Europa por muitos anos antes da chegada dos humanos modernos. Aprender como eles a lidar com o frio teria sido um grande benefício para nós.
Muitos pesquisadores, incluindo Soressi, agora argumentam que conhecer outros humanos primitivos pode, portanto, ter sido crucial para nos tornarmos a espécie bem-sucedida que somos hoje.
O fato de os neandertais usarem muitas ferramentas diferentes revela novamente como eles eram semelhantes aos humanos modernos. Como nós, eles foram capazes de se adaptar e explorar com êxito seu ambiente.
"Os neandertais foram muito mais evoluídos do que pensávamos", diz Soressi. "Estamos agora em um ponto de virada em que devemos passar a considerar que os neandertais e os humanos modernos são iguais em muitos aspectos."
Isso se torna ainda mais evidente diante de evidências de que eles também enterravam seus mortos, outro ritual cultural que indica um "comportamento simbólico complexo".

Os últimos neandertais

Mas também havia diferenças claras entre os neandertais e os humanos modernos. Uma é o fato de que estamos aqui hoje, e eles não.
Nos últimos milênios de sua existência, eles enfrentaram novos desafios com os quais não estavam tão bem preparados para lidar quanto os humanos modernos.
John Stewart, da Universidade de Bournemouth, no Reino Unido, analisou as diferentes estratégias de caça de humanos e neandertais.
Ele explica que os neandertais não exploraram a caça de animais menores, como coelhos, tanto quanto os humanos modernos. Embora haja evidências na caverna de Gorham de que os neandertais caçavam coelhos, Stewart diz que eles faziam isso menos do que nós.
Suas táticas de caçar em contato próximo com a presa pode tê-los servido melhor no caso de animais maiores e tornado muito mais difícil pegar coelhos suficientes para sobreviver quando outros alimentos estavam escassos, por exemplo.
"Acho que os humanos modernos tinham mais tecnologias para capturar presas menores, como redes ou armadilhas. Quando os tempos ficavam difíceis, os humanos modernos sempre tinham mais alimento a seu dispor", diz Stewart.
As evidências climáticas indicam ainda que os neandertais viviam em um ambiente cada vez mais hostil. Períodos extremos de frio em outras partes da Europa os empurraram para o sul até chegarem a áreas como Gibraltar.
"A cada poucos milhares de anos, na Europa e na Ásia, o clima mudava drasticamente, de relativamente quente para muito frio", diz Chris Stringer, líder de pesquisa sobre origens humanas no Museu de História Natural de Londres, no Reino Unido.
"Como isso acontecia repetidamente, eles nunca foram capazes de ampliar a diversidade da sua espécie."



Reconstituição de um túmulo neandertalDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionEvidências apontam que os neandertais também enterravam seus mortos, outro ritual cultural que indica um 'comportamento simbólico complexo'

Isso significa que, quando os últimos neandertais chegaram ao seu lugar final na Terra, eles eram muito endogâmicos (com vários acasalamentos consanguíneos), uma má notícia para uma população que já estava diminuindo.
Ao mesmo tempo, uma descoberta feita em 2019 também sugere que sua fertilidade estava em declínio, talvez devido à falta de alimentos — a infertilidade pode ser resultado da diminuição da gordura corporal.
A pesquisa liderada por Anna Degioanni, da Universidade de Aix-Marselha, na França, sugere que, mesmo "uma ligeira mudança na taxa de fertilidade de mulheres mais jovens poderia ter tido um impacto dramático na taxa de crescimento da população neandertal e, portanto, na sua sobrevivência a longo prazo".
Sua população pode ter se tornado tão pequena que, eventualmente, alcançaram "um ponto sem retorno", diz Finlayson.
Infelizmente, isso significa que, embora os últimos neandertais vivessem da mesma maneira que seus ancestrais, mudanças climáticas tornaram isso insuficiente para garantir sua sobrevivência, o que, por sua vez, teria impactado diretamente sua capacidade de inovar e disseminar sua cultura.
Se a vida se torna apenas uma batalha pela sobrevivência, outras coisas, como a cultura, podem cair no esquecimento. Nos últimos anos dos neandertais na Terra, não seria preciso muita competição de outros seres humanos, animais ou doenças para acabar com eles.
Mas apesar de se tratar de uma espécie extinta, ela não desapareceu completamente. Algumas partes de seu genoma ainda vivem em nós. Os últimos neandertais podem ter morrido, mas deixaram sua marca na humanidade.

Professor Edgar Bom Jardim - PE

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Brasil é principal mercado de agrotóxicos 'altamente perigosos', diz ONG





Homens fumigando plantaçãoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionMaior parte dos pesticidas considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente é vendidos a países pobres ou emergentes

Aproximadamente um terço da receita das principais fabricantes de agrotóxicos do mundo vem de produtos classificados como "altamente perigosos" — que têm como destino, em sua maioria, países emergentes, como Brasil e Índia, e países pobres.
Essa foi a conclusão de um levantamento feito pela Unearthed, organização jornalística independente financiada pelo Greenpeace, em parceria com a ONG suíça Public Eye. Em 2018, as vendas desse tipo de pesticida renderam cerca de US$ 4,8 bilhões às cinco maiores companhias do setor.
"Quase metade (41%) dos principais produtos das gigantes agroquímicas Basf, Bayer, Corteva, FMC e Syngenta contêm pelo menos um pesticida altamente perigoso (HHP, sigla em inglês para highly hazardous pesticides)", afirma a publicação.
As vendas dessas mercadorias, por sua vez, representaram 35% da receita das cinco multinacionais, segundo a Unhearted. Mais de dois terços das vendas foram feitas a países de renda média e baixa, sendo o Brasil o principal mercado.
"O Brasil compra mais pesticida do que qualquer outro país", diz a publicação. "A aprovação de novos produtos pesticidas por reguladores brasileiros, incluindo os que contêm HHPs, cresceram nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro."
As empresas citadas discordam dos números por questionarem a classificação de agrotóxicos "altamente perigosos" feita pela Pesticide Action Network (PAN) e utilizada como base pela publicação.
Em entrevistas em meados do ano passado, quando o Brasil liberou novos defensivos agrícolas no mercado, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, afirmou que os produtos não eram "veneno no prato de ninguém" se fossem usados corretamente e que os produtos novos são "menos tóxicos".

Fumigação de uma plantação de soja no BrasilDireito de imagemAFP
Image captionGrandes culturas de soja e milho transformaram o Brasil no principal comprador de agrotóxicos do mundo

'Altamente perigosos'

O levantamento da Unearthed com a Public Eye apontou ainda que 27% dos agrotóxicos vendidos em países ricos são considerados altamente perigosos. No Reino Unido, a proporção é de apenas 11%.
Por outro lado, 45% dos agroquímicos vendidos pelas cinco empresas em países de renda média e baixa se encaixam na categoria. Na África do Sul, a cifra sobe para 65%, na Índia, para 59% e no Brasil, para 49%.
O Brasil é o país que mais compra pesticidas no mundo, diz o levantamento, movimentando um total estimado em US$ 3,3 bilhões (R$ 14,5 bilhões) apenas em 2018 - ano do recorte da pesquisa. Os produtos são usados principalmente para o cultivo de soja, milho e algodão.
A vizinha Argentina comprou aproximadamente US$ 229 milhões em agrotóxicos no período, sendo 47% deles de HHP. Já o México, US$ 115 milhões, sendo 42% HHP.

Como o levantamento foi feito

A Unearthed e a Public Eye analisaram dados dos 43 países que mais consomem pesticidas no mundo, cruzando-os com a lista de produtos altamente perigosos da Pesticide Action Network (PAN).
A tabela — questionada pelas empresas citadas — inclui produtos que contenham pelo menos um componente identificado como altamente prejudicial à saúde ou ao meio ambiente por autoridades como a Organização Mundial de Saúde, a Agência Europeia de Substâncias Químicas, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer e a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos.
"Os critérios considerados pela PAN são com frequência critérios ambientais ainda sem consenso ou respaldo (da OMS ou da FAO, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura)", afirmou Christoph Neumann, diretor de regulação internacional da CropLife, grupo lobista do qual fazen parte as cinco multinacionais mais a japonesa Sumitomo.
Ele acrescentou que 19 entre os produtos classificados como altamente perigosos e mais comercializados, 12 têm a venda permitida na União Europeia e 18, nos Estados Unidos.
De acordo com o jornal britânico The Guardian, a Bayer qualificou a análise feita pela Unearthed como "enganosa", ainda que não tenha apresentado outros dados.

BayerDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionGrandes empresas do setor questionam classificação de muitos dos pesticidas considerados altamente perigosos

A CropLife já argumentou no passado que os HHP são uma ferramenta importante para lutar contra a perda de colheitas e um importante último recurso para produzir alimento suficiente para uma população em crescimento.
O grupo diz ainda que a maior parte dos produtos considerados altamente perigosos vendidos nos países emergentes e pobres não são fabricados por seus membros e que tem "liderado com o exemplo" capacitando milhões de pessoas com técnicas de redução de risco.
Baskut Tuncak, relator especial das Nações Unidas para substâncias tóxicas e direitos humanos, rechaçou, contudo, a ideia de que os riscos representados pelos HHP possam ser manejados de uma forma segura.
"Estamos em meio a uma explosão invisível do uso de agrotóxicos em países de renda média e baixa que estão mal equipados para lidar com esses perigos", afirmou Tuncak à Unearthed.

O que são os HHP

A OMS e a FAO definem os HHP como "pesticidas que reconhecidamente representam riscos agudos ou crônicos à saúde ou ao meio ambiente segundo os sistemas de classificação internacionalmente aceitos".
Os riscos ambientais incluem a contaminação de fontes de água ou a "interrupção de funções do ecossistema", como a polinização.
A ONU, entretanto, não tem uma lista própria dos HHP.
Tomando como a base a tabela compilada pela PAN, quase um quarto das vendas das cinco maiores empresas do setor em 2018 vieram de pesticidas que ofereceriam algum risco à saúde humano, incluindo alguns possivelmente carcinogênicos, enquanto 10% viria de produtos que tóxicos para as abelhas.

Os 'vilões'

Levando-se em consideração o volume de vendas, o destaque é do glifosato, que movimentou mais de US$ 1 bilhão em 2018, de acordo com a publicação.
Desenvolvido pela Monsanto antes de a empresa ser adquirida pela Bayer, o pesticida foi identificado como "possível cancerígeno" pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc, na sigla em inglês), outra classificação questionada pelas companhias e por várias agências reguladoras.

GlifosatoDireito de imagemAFP
Image captionA proibição do glifosato é discutida em vários países europeus

Entre os agroquímicos que poderiam representar perigos crônicos à saúde há o glufosinato, herbicida produzido pela BASF, e o fungicida agrícola ciproconazol, da Corteva, que reguladores da União Europeia já classificaram como prejudiciais para o feto, à fertilidade e à função sexual.
A principal ameaça para as abelhas, por sua vez, são representadas pelos inseticidas neocotinoides produzidos pela Bayer e Sygenta, que já foram proibidos na União Europeia — mas que têm no Brasil um importante mercado.
A suíça Sygenta é também a principal vendedora de pesticidas classificados pela OMS como altamente tóxicos.
Entre eles se destaca o paraquat, herbicida tóxico proibido no país sede da companhia e na União Europeia.
BBC

Professor Edgar Bom Jardim - PE

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Da janela do sobrado a donas da folia: como as mulheres driblaram o machismo na história do Carnaval



Desfile de corso na avenida Beira Mar, no Rio, em 1922Direito de imagemGUILHERME SANTOS/ACERVO MIS-RJ
Image captionA tradição dos 'corsos' carnavalescos começou no Rio de Janeiro e se espalhou para outras cidades do país
Em 2014, depois que viralizou no Facebook a foto em que um homem segurava um cartaz com a frase "eu não mereço mulher rodada", Renata Rodrigues e Débora Thomé decidiram criar um evento na rede social para protestar com humor contra o machismo do post. O sucesso da ideia, que atraiu centenas de participantes, as levou a fundar "o primeiro bloco feminista" do Carnaval do Rio.
"O Carnaval é um espaço muito machista. Quando chegamos, tinha muita mulher segurando estandarte de bloco, mas quase nenhuma tocando ou na produção", diz Renata.
Hoje, Renata, Débora e mais duas amigas são responsáveis pela organização do Mulheres Rodadas, que se prepara neste ano para seu sexto desfile com uma banda formada por 11 mulheres e apenas um homem. Não há uma restrição para a participação masculina entre os instrumentistas, mas a liderança é feminina.
"Os homens já têm esse espaço nos outros blocos. Aqui, fazemos como a gente acha melhor."
Essa é uma transformação recente na história centenária do Carnaval, uma festa na qual, no início, mulheres "de família" não deveriam participar — e, mesmo quando isso mudou, coube a elas um papel secundário e por vezes invisível aos olhos da maioria, em uma folia dominada por homens.
Isso porque, mesmo que o Carnaval seja visto muitas vezes como uma chance de alguém ser o que desejar e de subverter os papéis sociais que exerce no resto do ano, a ideia não passa de um mito, dizem pesquisadores.
"Apesar de se dizer que o Carnaval subverte mecanismos de controle social, ele reflete a vida — e a maneira como os sexos se veem — nos outros 365 dias do ano. A mulher é subjugada no emprego e na família e também é subjugada no momento de festa", diz Olga von Simson, professora do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora de Carnaval em Branco e Negro (Edusp).

Entrudos, bailes e corsos

Desfile do Mulheres RodadasDireito de imagemDIVULGAÇÃO
Image captionO bloco feminista Mulheres Rodadas foi criado por duas amigas após um post machista viralizar nas redes sociais
A origem do Carnaval brasileiro remonta aos entrudos, tradição trazida pelos portugueses na época da colonização em que as pessoas saíam às ruas nos dias que antecediam a Quaresma para travar batalhas com baldes, seringas e bisnagas d'água, além de limões e laranjas-de-cheiro, bolas feitas de cera com água perfumada dentro. Esse costume logo se espalhou do Rio de Janeiro para outras cidades do país.
"Mas poucas mulheres participavam, porque, durante todo período colonial, a rua era um espaço masculino. O papel da mulher era ficar em casa", diz Luiz Felipe Ferreira, criador do Centro de Referência do Carnaval e professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
O pesquisador explica que era mais comum as mulheres participarem do chamado entrudo familiar, que ocorria dentro das residências. "Essas festas também eram uma forma de contato social e uma chance das mocinhas assumirem a iniciativa nas relações amorosas, ao jogar um limão-de-cheiro no rapaz em que elas estavam interessadas", afirma Ferreira.
Esse tipo de festa reinou sozinha até a primeira metade do século de 19. A partir de então, as antigas tradições ligadas aos portugueses foram aos poucos dando lugar ou se misturando com novos costumes importados da Europa. Entre eles, um Carnaval mais sofisticado e elegante, com bailes a fantasia e desfiles de carros alegóricos, organizados pelos homens que estavam à frente de sociedades carnavalescas.
Nos bailes, as mulheres podiam assistir à festa dos camarotes, mas não pular Carnaval no salão. Também era das janelas dos sobrados que elas viam os carros alegóricos desfilarem pelas ruas.
A participação feminina, entretanto, não era totalmente vetada nos cortejos. "As prostitutas polonesas e francesas das casas mais ricas e sofisticadas desfilavam luxuosamente despidas nos carros. Foram elas, inclusive, que ensinaram aos homens como se fazia um Carnaval, porque muitos deles nunca tinham ido à Europa", diz Von Simson.
A cientista social conta que não demorou para que mulheres cariocas, insatisfeitas por não poderem participar do Carnaval, procurassem o escritor José de Alencar em busca de uma solução. Ele propôs, então, que fossem feitos bailes em que elas "pudessem tomar parte e não ser meras espectadoras".
Os arquivos da Biblioteca Nacional apontam ainda que, em 1907, surgiu no Rio um novo tipo de celebração que seria adotada em outras cidades brasileiras. Nos "corsos", as famílias mais ricas da cidade desfilavam em luxuosos carros abertos pela antiga Avenida Central.
A iniciativa partiu das filhas do então presidente Afonso Pena e foi copiada pelos outros donos de automóveis na época. Os ocupantes jogavam confete, serpentina e lança-perfume em quem estava nos outros carros ao longo do trajeto, enquanto as classes populares assistiam a tudo do chão.
"Mesmo assim, as mulheres participavam dos bailes e desfiles como acompanhantes do pai ou do marido, em um papel secundário de filha ou mulher", diz Ferreira.

As matriarcas do Carnaval

Grupo de foliões no Carnaval de rua do Rio, em 1914Direito de imagemAUGUSTO MALTA/ACERVO MIS-RJ
Image captionCom os blocos e cordões, começou a se afrouxar o controle sobre a participação das mulheres na folia
O controle sobre a participação da mulher no Carnaval começou a se afrouxar com o surgimento dos cordões, blocos e ranchos carnavalescos, na segunda metade do século 19.
Organizados por grupos de amigos e famílias das camadas sociais menos abastadas, os cordões e blocos desfilavam a pé pelas ruas da cidade.
A presença feminina foi de início bastante restrita ou mesmo nula nestes cortejos, porque eles eram proibidos pela polícia. Foi somente mais tarde, nas primeiras décadas do século 20, com o fim da repressão, que as mulheres começaram a participar em maior número.
Já nos ranchos, que faziam desfiles mais organizados e traziam elementos até então inéditos, como enredo e instrumentos de sopro e cordas, a participação das mulheres foi mais precoce.
Elas cumpriam papéis fundamentais nestes festejos, confeccionando as fantasias e adereços e organizando eventos para arrecadar o dinheiro necessário para bancar o cortejo — mas não só.
O Carnaval como conhecemos hoje existe em grande parte graças às "tias", mulheres baianas que abriam suas casas para a reunião dos sambistas ao longo do ano e ofereciam assim um espaço seguro para que eles se reunissem sem serem perseguidos pela polícia.
"As tias são o epicentro dessa cultura do Carnaval. Suas casas eram espaços de sociabilização e proteção", diz a jornalista Bárbara Pereira, doutora em história social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Uma das mais famosas entre essas matriarcas do samba é Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata. Mas havia muitas outras, diz Pereira, que entraram para os registros históricos apenas como apoiadoras de seus maridos ou simplesmente foram esquecidas.
"Muitos dos relatos que temos hoje sobre o início do Carnaval foram feitos por homens, e quase não há registros da participação das mulheres, porque estes homens não as enxergavam. Elas foram invisibilizadas", afirma a pesquisadora.

As mulheres vão para a avenida

Desfile do Mulheres RodadasDireito de imagemDIVULGAÇÃO
Image captionDesfile do Mulheres Rodadas, no Rio de Janeiro
O Carnaval passaria por uma nova transformação entre o final dos anos 1920 e o início dos anos 1930, quando foram fundadas as primeiras escolas de samba — e, com elas, as mulheres começaram a conquistar um espaço próprio nos desfiles de Carnaval.
"O matriarcado na história do samba fez que houvesse uma presença feminina significativa desde o início das escolas, com a ala das baianas e a ala das pastoras, que cantavam em coro o samba-enredo junto com o puxador", diz o historiador e escritor Luiz Antônio Simas.
Isso abriu caminho para que as mulheres conquistassem com o tempo outros postos nos desfiles das escolas de samba. Simas destaca que a primeira mulher a sair na bateria foi Dagmar da Portela, em 1939.
Já os primeiros sambas-enredo assinados por autoras são da década de 1950. Carmelita Brasil, na Unidos da Ponte, foi a pioneira da composição, e, em 1965, Dona Ivone Lara tornou-se a primeira mulher a assinar um samba-enredo por uma grande escola.
"Aos poucos, como repercussão de mudanças na estrutura da sociedade brasileira, as mulheres vão conquistando espaços também em um meio bem machista como o do samba", diz Simas.
Foi a partir dos anos 1930 que as mulheres brasileiras conquistaram direitos políticos e de receber salários iguais. Passaram a não mais ter de pedir autorização aos maridos para trabalhar, ter conta em banco ou viajar sozinhas. E foram reconhecidas legalmente como iguais aos homens.
Ao mesmo tempo, na Avenida, elas ganham cada vez mais protagonismo nos desfiles, como passistas, rainhas de bateria e destaques de carros alegóricos.
Esses postos são frequentemente vistos apenas como mais uma expressão do machismo no Carnaval, que trata as mulheres como objetos sexuais. Mas Bárbara Pereira, que pesquisou as passistas em seu doutorado, diz que não é dessa forma que elas próprias se enxergam.
"Essas mulheres têm orgulho de serem passistas, porque muitas vezes é uma tradição passada de mãe para filha. E, a partir dos anos 1990, com o aumento da escolaridade feminina, muitas delas não são mulatas-show, mas estudantes e trabalhadoras que sambam porque querem sambar", diz a pesquisadora.
Ao mesmo tempo, as mulheres estão vencendo gradativamente o preconceito nas escolas de samba ao tocar instrumentos considerados "de homens", como surdo, caixa-de-guerra e tarol, e assumirem as funções de carnavalescas, diretoras e mestres de bateria, puxadoras e, inclusive, presidentes de agremiações.
"Mas ainda são poucas nestas posições, porque persiste a ideia de que há nas escolas lugar de mulher e de homem, especialmente nos postos de poder, como a diretoria, e de mais prestígio, como a composição", diz historiadora Marília Belmonte, que pesquisa a velha guarda e a ala das baianas de seis escolas de samba de São Paulo.

As mulheres conquistam espaço no Carnaval de rua

Desfile do Mulheres RodadasDireito de imagemDIVULGAÇÃO
Image captionDesfile do Mulheres Rodadas, no Rio de Janeiro
Belmonte diz que um movimento semelhante começou a ocorrer também com os blocos de rua, em meio a um debate recente e mais amplo sobre o papel das mulheres na sociedade atual.
"Isso gera uma maior conscientização entre as mulheres e faz com que elas questionem o machismo e busquem ter maior representação no Carnaval, ocupando espaços antes reservados aos homens e criando seus próprios blocos, onde conseguem se expressar sem serem cerceadas nem sofrer assédio", diz a historiadora.
Atualmente, já existe mais de uma dezena de blocos pelo país que são organizados por mulheres ou até mesmo exclusivamente femininos, como Ilú Obá de Min, Mulheres de Chico, Não é Não, Pagu, Filhas da Lua, Toco-xona e Siga Bem, Caminhoneira.
Renata Rodrigues, do Mulheres Rodadas, diz que o Carnaval de rua mudou nos seis anos em que seu bloco feminista desfila no Rio de Janeiro.
"Existe hoje uma discussão muito mais ampla sobre o assédio e uma consciência maior de que não é porque a mulher está pulando Carnaval que ela pode ser assediada ou violentada. Isso aconteceu porque as mulheres que apareceram no Carnaval colocaram esse assunto em pauta", diz.
Ao mesmo tempo, isso fez da folia um espaço mais seguro para as mulheres e no qual elas se sentem mais confortáveis para exibir o corpo conforme quiserem.
"Nós vemos hoje muito mais mulheres com o corpo à mostra. Com o maior número de mulheres, elas se sentem protegidas e capazes de dizer 'o corpo é meu, não quero que me toque'. É um corpo que não está ali para ser consumido. É um corpo político, que carrega uma mensagem de liberdade."
Também há mais mulheres participando ativamente do Carnaval, tocando instrumentos, montando suas bandas e fanfarras e criando seus próprios projetos. "Temos muito orgulho de ter ajudado nesta transformação junto com outros coletivos de mulheres."
O Mulheres Rodadas realiza oficinas ao longo do ano para ensinar mais mulheres a tocar instrumentos. O desejo de suas criadoras agora é passar a oferecer também cursos para que elas ocupem postos de comando em toda a cadeia do Carnaval.
"Ainda somos franca minoria na gestão. Queremos ter cada vez mais mulheres em posição de liderança, mas é justamente neste espaço que é mais difícil conseguir avançar."

Professor Edgar Bom Jardim - PE