O médico Albert Wymer Henley servia como cirurgião do Exército dos Estados Confederados na Guerra Civil americana (1861-1865) quando começou a usar morfina.
Durante o conflito, o então tenente do 36º Regimento de Infantaria do Mississippi contraiu febre tifóide e passou a sofrer de diarreia crônica. Em 1863, aos 28 anos de idade, foi capturado por forças da União e mantido prisioneiro por várias semanas, o que debilitou ainda mais sua saúde.
"Seguindo o conselho de ilustres médicos (…), tive de usar opiáceos devido a complicações de doenças formidáveis e dolorosas", escreveu Henley em 1878. "Era morte ou ópio. Eu, naturalmente, preferi o segundo. Mas, se pudesse prever o futuro, teria escolhido a primeira opção de bom grado."
Quando fez essa confissão, Henley já lutava contra a dependência de morfina havia 15 anos. "Só Deus sabe quantas vezes tentei me livrar e quantas vezes fracassei", escreveu Henley, que descrevia sua condição como uma "escravidão cruel"
Hoje, mais de 150 anos depois do fim daquela guerra, o país enfrenta uma nova epidemia de drogas, iniciada na década de 1990 e que, segundo os dados mais recentes, deixou mais de 100 mil mortos por overdose somente no período entre abril de 2020 e abril de 2021.
Segundo historiadores, há vários paralelos entre as duas crises, entre eles o fato de que ambas começaram com medicamentos legais prescritos por médicos, se estenderam por várias décadas e deixaram milhares de mortos.
O historiador Jonathan Jones, professor do Instituto Militar da Virgínia, pesquisou arquivos médicos, diários pessoais, registros de serviço militar e de pedidos de pensão, entre outros documentos do século 19, para reconstruir a vida e a morte de 200 soldados que ficaram dependentes de opioides durante a Guerra Civil.
"A maioria morreu de causas ligadas ao abuso de opioides", diz Jones à BBC News Brasil.
Sua pesquisa sobre a origem e o impacto daquela crise resultou no livro Opium Slavery: The Civil War Veterans and America's First Opioid Crisis ("Escravidão do Ópio: Os Veteranos da Guerra Civil e a Primeira Crise de Opioides da América", em tradução livre), com lançamento previsto para 2023.
Morfina pelo correio
"Opioides já eram amplamente usados nos Estados Unidos antes da Guerra Civil", ressalta Jones.
No século 19, o ópio e substâncias derivadas, como morfina e láudano (mistura de ópio e álcool), eram medicamentos comuns no país, vendidos sem restrições e recomendados por médicos para tratar de uma série de problemas de saúde, como dor de cabeça, cólicas menstruais, febre, tosse, diarréia e insônia.
"Havia tantas maneiras de consumir", observa Jones. "Você podia injetar ópio ou morfina, e também usar ambos em forma de pó ou comprimidos."
O historiador ressalta que as substâncias eram legais, acessíveis e baratas, além de servirem de ingrediente em uma série de outros remédios. Em lojas de departamentos, como a Sears, Roebuck & Co, era até mesmo possível encomendar kits com a droga e seringas e receber a mercadoria pelo correio.
"Foi só no início do século 20 que os narcóticos começaram a ser regulados nos Estados Unidos", lembra Jones.
Amputações e sequelas
Mas, com o início da Guerra Civil, em 1861, os opioides e, principalmente, a morfina, passaram a ser usados mais amplamente para aliviar a dor dos feridos, e houve uma explosão no número de prescrições.
O conflito entre a União e os Estados Confederados deixou mais de 700 mil mortos. Muitos dos sobreviventes tiveram de superar ferimentos gravíssimos, amputações e sequelas permanentes.
As péssimas condições sanitárias dos campos de batalha levavam a diarreia, disenteria e outras doenças que debilitavam os soldados e podiam ser fatais e que também eram tratadas com opioides.
Além disso, alguns soldados usavam as substâncias para se automedicar e combater o medo e o estresse antes das batalhas.
"Milhões de soldados da Guerra Civil sofreram problemas físicos horríveis, ferimentos a bala, amputações, lesões realmente traumáticas. E não havia muito o que os médicos pudessem fazer além de oferecer analgésicos", afirma Jones.
'Indispensável como pólvora'
Vários relatos da época ilustram como ópio e morfina eram administrados em enormes quantidades para tratar dos feridos.
O médico Silas Weir Mitchell, que era cirurgião no hospital Turner's Lane, na Filadélfia, escreveu sobre como, em apenas um ano, cerca de 40 mil injeções de morfina foram aplicadas em soldados naquele estabelecimento.
Mitchell destacava casos como o de um soldado da União que recebeu injeções com altas doses de morfina três vezes por dia durante os quatro meses em que ficou internado.
Jones cita um manual médico usado pelas forças confederadas segundo o qual "o ópio é a droga mais indispensável do campo de batalha, tão importante para o cirurgião como pólvora para a artilharia".
Segundo o manual, cirurgiões militares deveriam usar opioides para aliviar a dor dos feridos, tratar de vômitos, diarreias, sangramentos internos, inflamação de ferimentos a bala e espasmos musculares nos amputados e até mesmo para sedar os pacientes.
'Comedores de ópio'
Quando esses combatentes voltaram para casa, continuaram a usar morfina e outros opioides para aliviar dores e problemas crônicos resultantes da guerra.
"Muitos desses ferimentos nunca foram curados, eram lesões que causaram dor para o resto da vida", salienta Jones.
Um relatório da comissão de saúde do Estado de Massachusetts em 1872 afirmou: "Soldados que adquiriram o hábito em hospitais militares ainda estão dependentes do uso de ópio".
Em 1889, quase 25 anos depois do fim da guerra, o médico James Adams escreveu sobre o "grande número" de veteranos que ainda sofriam de diarreia crônica. "Como era de se esperar, muitos se tornaram comedores de ópio", disse o médico.
Mesmo entre os que se curaram completamente dos ferimentos e doenças contraídas na guerra, muitos já estavam dependentes e mantiveram o uso de opioides, que continuavam a ser facilmente obtidos, sem restrições.
Crise de proporções nacionais
Antes da Guerra Civil, médicos e até mesmo muitos americanos comuns já sabiam que o consumo de opioides podia levar à dependência. "Mas o número de casos ainda não havia explodido. As pessoas sabiam que o problema existia, mas ainda não era urgente", observa Jones.
Após a guerra, no entanto, o problema se tornou uma epidemia de proporções nacionais. Não há números exatos mas, segundo historiadores, centenas de milhares de americanos enfrentavam dependência de opioides no final do século 19.
Apesar de a crise afetar também a população geral e especialmente as mulheres, a atenção da imprensa e da sociedade se concentrava nos ex-soldados que haviam se tornado dependentes.
"Esses veteranos tinham um lugar especial na sociedade americana, eram celebrados, colocados em um pedestal. Então, o fato de terem se tornado dependentes (de drogas) virou notícia", ressalta Jones.
Corpo coberto de feridas
Depoimentos da época ilustram o sofrimento físico e mental enfrentado por esses ex-combatentes. Era comum que precisassem usar opioides diariamente, durante décadas, em doses cada vez maiores à medida que a tolerância às drogas aumentava.
Muitos sofriam de fadiga, náusea, constipação, indigestão, perda extrema de peso, impotência e tinham o corpo coberto de feridas nos locais das injeções. Como não conseguiam trabalhar, dependiam da família e de amigos.
"Eu não conseguia dormir até receber uma injeção. Minha esposa tinha de acordar a qualquer hora da noite para aplicar a seringa. Minha saúde estava tão debilitada que eu vivia confinado a uma cama", escreveu em 1871 o médico John Patterson, que havia lutado pela União e começou a usar morfina na guerra, por prescrição de outro médico.
Registros de um hospital militar no Estado de Indiana descrevem o estado físico do marinheiro George Gardner, que lutou com as forças da União, ao ser admitido na instituição, em 1891.
Segundo o documento, Gardner havia perdido um terço de seu peso, chegando a apenas 45kg, e apresentava feridas em marcas de injeção que cobriam "toda a superfície de seu corpo, do pescoço para baixo". Ele morreu de overdose dois anos depois.
'Dor não é desculpa'
Mas, em vez de simpatia, o drama desses soldados provocava críticas. Os ex-combatentes, antes respeitados por seus sacrifícios durante a guerra, passaram a ser humilhados e vistos como imorais, fracos e sem força de vontade para deixar o vício.
Segundo Jones, mortes por overdose eram noticiadas como sendo culpa dos dependentes e não dos médicos que haviam receitado a droga.
"É incrível como a reação do público, da mídia e até do governo depois da Guerra Civil é semelhante ao que vimos nas duas últimas décadas em relação à atual crise de opioides", compara.
Muitos foram presos ou internados contra a vontade em instituições para doentes mentais, onde era comum que sofressem abusos. O estigma em relação à dependência de drogas também dificultava que conseguissem receber pensão ou tivessem acesso à moradia pública.
Um exemplo é o caso de Clinton Smith. Ferido com um tiro durante a guerra, ele passou a depender de morfina para combater a dor crônica e acabou morrendo de overdose em 1884, duas décadas após o fim do conflito.
Quando sua mulher, Eliza Smith, conquistou o direito de receber pensão militar, o então presidente americano, Grover Cleveland, condenou o veterano por sua incapacidade de suportar dor sem recorrer a drogas e vetou o pagamento à viúva. Segundo o presidente, dor não era "desculpa" para tomar morfina.
Curas milagrosas e golpes
Muitos tentavam se livrar da dependência por conta própria, mas a maioria não suportava os sintomas da ausência súbita de narcóticos no organismo e acabava recaindo. Esse fracasso era recriminado pela sociedade da época.
"Se eu não tomasse morfina, ficava completamente prostrado. Sentia muito calor em um momento e muito frio no instante seguinte", descreveu Joseph Darrow, que havia lutado com as forças da União, em um depoimento em 1868.
"Eu tentei tantos remédios diferentes e fracassei que fiquei completamente desencorajado e desisti, em desespero", confessou Darrow, na época com 35 anos de idade, ao afirmar que era "escravo do hábito de usar morfina" havia seis anos.
As supostas curas para dependência logo se transformaram em uma indústria milionária. Centenas de clínicas de tratamento se espalharam pelo país, mas essas eram caras e inacessíveis para a maioria dos dependentes.
Muitos acabavam vítimas de golpes e falsos "antídotos milagrosos", que eram anunciados em grande número nos jornais da época e na verdade continha opioides, agravando ainda mais o problema.
"Havia muita fraude na época, quando nem as drogas e nem a prática de medicina eram reguladas", salienta Jones. "As pessoas se aproveitavam do desespero dos dependentes."
Tarde demais
Segundo Jones, com o tempo e o enorme número de dependentes, muitos veteranos de guerra passaram a resistir à recriminação e a insistir que sua situação era culpa dos médicos que haviam receitado os opioides.
"Por volta da década de 1890, a situação começou a mudar, e as pessoas passaram a ser mais solidárias com os veteranos dependentes de drogas", afirma o historiador.
"Foi também nessa época que o governo americano começou a proibir o uso de ópio entre imigrantes chineses", ressalta Jones, lembrando que esses imigrantes substituíram os ex-soldados como alvo das críticas da sociedade.
Mas, segundo Jones, apesar da simpatia que conquistaram no fim de suas vidas, os ex-combatentes que enfrentavam dependência nunca receberam ajuda.
"É realmente uma história muito trágica", diz Jones. "A crise só terminou quando eles morreram, seja de overdose, de outros problemas exacerbados pelo abuso de opioides ou pela idade avançada."
"Gradualmente, o governo, médicos e ativistas de proteção ao consumidor passaram a adotar medidas que ajudaram a solucionar a epidemia, mas já era tarde demais para os veteranos da Guerra Civil", afirma o historiador.
- Alessandra Corrêa
- De Washington (EUA) para a BBC News Brasil
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