Quando Hélio Tenório, de 5 anos, vê outras crianças na rua, fica difícil para ele esconder um sorriso. Segundo sua mãe, Thaís Sêco, por ter passado a maior parte dos últimos dois anos fora das aulas presenciais e sem brincar pessoalmente com colegas da mesma idade, ele, que é naturalmente sociável, fica em êxtase quando encontra alguém que possa se tornar seu amigo.
O isolamento do pequeno não foi à toa. Hélio toma um medicamento imunossupressor desde seu primeiro ano de vida, já que foi diagnosticado com AVB (atresia de vias biliares) logo após o nascimento e, aos seis meses, precisou passar por um transplante de fígado.
De acordo com a SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), a doença é o motivo mais comum de transplante hepático em crianças, e sua causa não é completamente conhecida. No caso de Hélio, a cor amarelada da pele que não sumiu depois dos banhos de sol e as fezes claras quando deveriam ser amarelas foram sinais que ajudaram no diagnóstico.
Em um organismo com o quadro, há uma inflamação e obstrução dos ductos biliares, responsáveis por transportar a bile, líquido que ajuda na digestão de gorduras e carrega algumas substâncias para serem eliminadas pelo intestino. A bile fica retida no fígado, provocando rapidamente danos ao órgão, o que pode evoluir para cirrose e óbito, caso o paciente não seja tratado precocemente.
Para muitas crianças, a saída é fazer um procedimento conhecido como 'cirurgia de Kasai', que tem como objetivo fazer uma ligação do intestino delgado ao local de maior acumulação de bile no fígado e pode retardar a necessidade de um transplante de fígado em mais de uma década. No caso de Hélio, a cirurgia não teve sucesso, o que fez com que ele precisasse receber um pedaço do fígado do pai.
'Conto com a ciência desde que ele nasceu'
O fígado é o único órgão capaz de se regenerar, o que permitiu que seu pai, Thiago Duque, continuasse vivendo saudavelmente após doar 30% do órgão para o filho.
"O volume ainda era muito superior ao tamanho de um bebê, por isso, os médicos reduziram ainda mais. Foi uma cirurgia extremamente delicada que demorou 13 horas. Para que ele pudesse viver, conto com a ciência desde que ele nasceu. Agora, com a vacina, não seria diferente", diz Thaís, que tem 36 anos e é professora do departamento de Direito da UFLA (Universidade Federal de Lavras) e está licenciada para se dedicar à pesquisa de doutorado.
Por diferentes intercorrências na saúde, até um ano e meio, Hélio passou por sete procedimentos cirúrgicos. Depois, o menino foi crescendo e levando uma vida como qualquer outra criança, com a ajuda do imunossupressor que impede que o corpo rejeite o órgão transplantado.
Mas como o nome sugere, a droga tem o efeito de deixar o sistema imune mais fraco. "Esses pacientes têm maior risco de contrair qualquer tipo de infecção, assim como de desenvolver formas mais graves delas", explica Lucas Fadel, pediatra e coordenador da UTI Pediátrica e Neonatal da Santa Casa de São José dos Campos (SP).
Por isso, a família de Hélio o manteve em casa durante a maior parte da pandemia, com medo que ele pudesse ter contato com o Sars-CoV-2.
'Esse coronavírus nunca vai embora, mãe?
A pergunta foi feita por Hélio em dezembro de 2021. Assim como boa parte dos brasileiros, ele estava ansioso para retomar a vida "normal", sem os perigos impostos pela covid-19. Ao ouvir da mãe que os cientistas estavam produzindo o imunizante, ele voltou à sala alguns minutos mais tarde, com sua própria versão da vacina, feita de lego, em mãos. A cena fez a mãe rir e ansiar ainda mais por uma vacina de verdade.
"Ele pode tomar a maioria das vacinas. Embora vá ter uma taxa de resposta inferior, ainda vale muito para fortalecer o sistema imunológico dele. Mas a proteção dele também depende muito da imunidade comunitária, e por isso, faço o apelo para que outros pais também vacinem seus filhos", diz Thais.
Atualmente, a família mora em Bicas, Minas Gerais, cerca de 40 quilômetros de distância de Juiz de Fora. Na cidade, a vacinação ainda não teve início. "Em Juiz de Fora já começou, mas não há nenhuma menção sobre imunossuprimidos. Aqui, um carro de som passa avisando. Estou ansiosa para ouvir o anúncio", diz a mãe.
Entenda o que é considerado comorbidade
A ordem de vacinação estabelecida pelo Ministério de Saúde começa com crianças de 5 a 11 anos com deficiência permanente ou com comorbidades, depois crianças indígenas e quilombolas, seguidas por aquelas que vivem em lar com pessoas com alto risco para evolução grave de covid-19. Depois desses grupos, vêm as crianças sem comorbidades, começando dos mais velhos para os mais novos.
No entanto, cada estado (e em alguns casos, municípios), podem apresentar diferenças na logística de vacinação. Veja mais detalhes aqui.
Além de crianças imunossuprimidas por qualquer causa, são consideradas comorbidades para o público infantil pelo Ministério da Saúde: diabetes mellitus; pneumopatias crônicas graves; hipertensão arterial resistente ou de estágio 3; hipertensão arterial estágios 1 e 2 como lesão em órgão-alvo; insuficiência cardíaca; cor-pulmonale e hipertensão pulmonar; cardiopatia hipertensa; síndromes coronarianas; valvopatias; miocardiopatias e pericardiopatias; doenças da aorta, do grandes vasos e fístulas arteriovenosas; arritmias cardíacas; cardiopatias congênita no adulto; próteses valvares e dispositivos cardíacos implantados; doenças neurológicas crônicas; doença renal crônica; hemoglobinopatias graves; obesidade mórbida; síndrome de Down; e cirrose hepática.
Os primeiros da fila da vacina
Acompanhado de sua mãe, Enzo Cronemberger de Azevedo, de 9 anos, foi o primeiro a chegar no posto de saúde localizado na Vila Anastácio, bairro da zona oeste de São Paulo, para receber a vacina em dose pediátrica no último dia 17.
Milene chora ao falar do filho vacinado. "É algo que a gente esperou demais. Acompanhávamos o passo a passo das aprovações. Ter a vacina, para nós, é uma esperança. Ele estava ansioso, até disse que faria um bolo para comemorar o dia da vacina", conta a mãe, acrescentando que ele não teve nenhuma reação adversa ao imunizante.
O menino pôde ser atendido por fazer parte das crianças com comorbidades e imunossuprimidas. Nos primeiros meses de vida, ele foi diagnosticado com diabetes e hipotireoidismo. Logo depois, teve um distúrbio renal que fazia com que seu corpo eliminasse proteína em excesso na urina. O quadro, pouco comum em crianças, levou os médicos que o acompanhavam a suspeitar de uma síndrome rara.
Enzo foi então diagnosticado com a doença autoimune IPEX, quadro hereditário e raro que causa a disfunção de várias glândulas endócrinas e a inflamação do intestino. Desde então, ele faz utilização contínua de um medicamento imunosupressor, e com isso, manteve uma boa saúde.
Quando a pandemia começou, Milene, que é gerente de projetos, já passou a trabalhar remotamente. "Nos primeiros meses, ficamos totalmente sem sair de casa. O contato dele é com a família - minha mãe, minha irmã, o pai dele e os irmãos por parte do pai", explica ela, hoje mora com o filho e o marido, padrasto de Enzo.
O pequeno ficou quase dois anos sem ir para escola presencialmente. Em novembro de 2021, com os cuidados indicados pelos médicos, ele voltou a estudar na mesma sala que outros colegas durante um mês, antes das férias e da nova onda causada pela variante ômicron começar.
Mesmo tomando os cuidados regularmente, Milene foi infectada pelo Sars-CoV-2 duas vezes, mas em ambas as ocasiões conseguiu proteger o filho, deixando-o na casa do pai.
"Ele entende a situação atual e é bem consciente em relação à imunidade dele, às medicações, e se manteve tranquilo no isolamento. Mas antes da volta à escola já estava chegando a um estágio em que ficar tão recluso fazia mal para ele. Não saíamos com ele para as festas, ele deixou de brincar com outras crianças e de fazer atividade física, já que as aulas de natação não eram mais possíveis", diz a mãe.
"Conversei com a médica imunologista dele, que me deu um atestado para que ele tomasse a vacina. Fiquei com medo, mas os médicos falaram: é muito melhor que ele tome a vacina."
Mitos atrapalham a vacinação
"As dúvidas sobre a vacina devem ser esclarecidas com o pediatra da criança", aconselha o médico Lucas Fadel para que as famílias não caiam em notícias falsas. Abaixo, o especialista esclarece tópicos que frequentemente são usados para desencorajar a vacina, mas que não são verdadeiros:
- A vacina não interage com o DNA celular e não causa alterações genéticas. Ela funciona como uma "receita" pronta para que o sistema imunológico possa produzir anticorpos e estar pronto para combater uma possível infecção.
- O RNAm (ou RNA mensageiro), utilizado na vacina Pfizer, não ficará indefinidamente nas células que ele entrou. Após cumprir seu papel, é inativado (como todo RNAm que o corpo humano produz). As proteínas spike do coronavírus também serão inativadas pelo organismo, assim como todas as proteínas reconhecidas como invasoras.
- Miocardite, pericardite e outros eventos vacinais são extremamente raros. "Basta olhar o número de vacinado, que são milhões, e o número de eventos, de apenas algumas dezenas", aponta Fadel.
Os eventos vacinais mais preocupantes são ainda mais improváveis e todos mostraram curso benigno. "Além do mais, o risco de desenvolver uma miocardite pela infecção por coronavírus chega a ser mais de dez vezes maior que pela vacina."
Diagnóstico recente fez Lívia entrar para o grupo prioritário
Os pais de Lívia Martins Pinto, de 7 anos, também anseiam pela vez da filha receber o imunizante, o que deve ocorrer nos próximos dias na cidade de Indaiatuba (SP). Após ter mononucleose em 2021, a febre da menina não cessou por 15 dias seguidos. O sintoma preocupante foi o começo da luta dos pais por um diagnóstico. Os sinais que apareceram a seguir foram dores nas articulações e ânsia de vomito, o que levava Lívia a não comer e a perder peso.
Mais 15 dias se passaram, com a criança internada, antes que a equipe multidisciplinar de médicos que a examinava descobrisse o problema. Após uma bateria extensa de exames e testes, os pais receberam a notícia de que ela possuía artrite idiopática juvenil sistêmica.
"A doença faz com que os anticorpos que deveriam servir de proteção no sistema imunológico ataquem o próprio corpo. Ela inflama as articulações, causando dor, inchaço e dificuldade de movimento. Lívia tem o subtipo mais grave (sistêmica), que causa febre e alterações importantes no sangue. Além disso, ela também teve síndrome de ativação macrofágica, que causa a excessiva proliferação de macrófagos (células do sistema imune), e pode ser fatal", explica a reumatologista pediátrica Maria Teresa Terreri, professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), e parte da ONG Acredite, onde conheceu Lívia.
Durante o ano, Lívia precisou ser internada seis vezes e agora, fazendo o uso de três medicamentos imunossupressores, tem a saúde estável. "Eu tenho medo que ela pegue qualquer coisa, mas principalmente a covid-19. Só saímos com máscaras PFF2, ainda tiramos as roupas antes de entrar em casa e não deixo ninguém se aproximar demais dela", diz a mãe, Shirlei, que tem 52 anos e é professora do ensino fundamental.
Para poder ter mais segurança, Terreri explica que não é só seguro, como também extremamente indicado, que pacientes imunossuprimidos recebam a vacina.
"Espero que o imunizante possa permitir que ela faça mais coisas. É uma menina muito especial, brilhante na escola, que até tem uma boa compreensão do que acontece com ela, mas que ainda quer brincar e visitar as amigas", diz a mãe.
- Giulia Granchi
- Da BBC News Brasil, em São Paulo
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