"Nós gastamos um volume absurdo de dinheiro ajudando os curdos, em termos de munição, armas, dinheiro, salários", eles atuaram sim ao lado dos Estados Unidos contra o Estado Islâmico, mas os curdos "estão lutando por sua terra". E, para falar a verdade, eles nem "nos ajudaram na Segunda Guerra Mundial, não nos ajudaram na Normandia, por exemplo".
É assim que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, explica sua decisão de retirar forças militares americanas da região na Síria controlada pelos curdos, o que terminou por abrir caminho para uma ofensiva da Turquia, que quer dominar a região à força.
Ao citar a ausência curda no Dia D, o líder americano se referia a um texto do articulista conservador Kurt Schlichter, que rejeitava qualquer obrigação dos Estados Unidos de defender os curdos no conflito contra a Turquia. Pelo contrário, segundo ele, já que os turcos fazem parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), precisariam ser socorridos caso sofram um ataque.
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Os curdos formam uma população estimada entre 25 milhões e 35 milhões e habitam uma região montanhosa que se espalha pelos territórios de cinco países: Turquia, Iraque, Síria, Irã e Armênia. Eles compõem o quarto maior grupo étnico do Oriente Médio, mas nunca conseguiram um país próprio.
Na luta contra o Estado Islâmico na Síria, passaram a comandar uma vasta área no país, mas agora o domínio está ameaçado pela ofensiva turca.
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, afirma que a ação militar visa "criar uma "zona segura e evitar a criação de um corredor terrorista ao longo da fronteira".
Nos últimos dias, a ofensiva da Turquia contra os curdos na Síria deixou dezenas de soldados mortos de ambos os lados e causou a morte de 11 civis. Esse é o capítulo mais recente de um conflito que dura décadas em torno de lutas por independência.
Qual é a origem dos curdos?
Os curdos são um dos povos originários das planícies da Mesopotâmia — território compreendido entre os rios Tigre e Eufrates — e dos planaltos da região onde hoje estão o sudeste da Turquia, o nordeste da Síria, o norte do Iraque, o noroeste do Irã e o sudoeste da Armênia.
Hoje, eles formam uma comunidade unida por raça, cultura e linguagem, ainda que não tenham um dialeto padrão. Eles têm diversas religiões e credos, mas a maioria é muçulmana sunita.
Por que os curdos não têm um Estado nacional?
No início do século 20, muitos curdos começaram a considerar a criação de um Estado, geralmente conhecido como Curdistão.
Depois da Primeira Guerra Mundial e da derrota do Império Otomano, os países ocidentais vitoriosos fizeram uma provisão para a criação de um Estado curdo em 1920 no Tratado de Sèvres.
Mas os planos foram frustrados três anos depois, quando o Tratado de Lausanne, que estabeleceu as fronteiras da Turquia moderna, não tratou de um Estado curdo e os deixou com status minoritário em seus respectivos países. Nas oito décadas seguintes, qualquer ação dos curdos para estabelecer um Estado independente foi brutalmente anulada.
Por que os curdos estavam à frente da luta contra o Estado Islâmico?
Em meados de 2013, o grupo jihadista Estado Islâmico (EI) voltou seus olhos para três enclaves curdos que faziam fronteira com o território sob seu controle no norte da Síria. O EI lançou uma série de ataques que, até meados de 2014, eram revidados pelas Unidades de Proteção do Povo (YPG) — a ala armada do Partido da União Democrática Curda da Síria (PYD).
O avanço do Estado Islâmico no norte do Iraque em junho de 2014 também arrastou os curdos daquele país para o conflito. O governo da região autônoma do Curdistão no Iraque enviou suas forças de Peshmerga para áreas abandonadas pelo Exército iraquiano.
Em agosto de 2014, os jihadistas lançaram uma ofensiva surpresa, e os Peshmerga precisaram se retirar de diversas áreas. Várias cidades habitadas por minorias religiosas foram tomadas, principalmente Sinjar, onde militantes do Estado Islâmico mataram ou capturaram milhares de yazidis.
Em resposta, uma coalizão multinacional liderada pelos Estados Unidos lançou ataques aéreos no norte do Iraque e enviou assessores militares para ajudar os Peshmerga. O YPG e o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que lutam pela autonomia curda na Turquia há três décadas e têm bases no Iraque, também ajudaram no combate.
Em setembro de 2014, o Estado Islâmico fez um ataque em Kobane, região curda na Síria, forçando dezenas de milhares de pessoas a fugirem pela fronteira turca. Apesar da proximidade dos combates, a Turquia se recusou a atacar posições do Estado Islâmico ou permitir que curdos turcos cruzassem a fronteira para lutar.
Em janeiro de 2015, após uma batalha que deixou pelo menos 1.600 pessoas mortas, as forças curdas recuperaram o controle de Kobane.
Os curdos — lutando ao lado de várias milícias árabes locais sob a bandeira da aliança das Forças Democráticas Sírias (SDF) e auxiliados por ataques aéreos, armas e conselheiros da coalizão liderada pelos EUA — em seguida expulsaram o Estado Islâmico de dezenas de milhares de quilômetros quadrados de território no nordeste da Síria e estabeleceram o controle sobre uma grande extensão da fronteira com a Turquia.
Em outubro de 2017, os combatentes do SDF capturaram a "capital" do Estado Islâmico, Raqqa, e depois avançaram para sudeste na província vizinha de Deir al-Zour, o último ponto de apoio dos jihadistas na Síria.
O último reduto do território mantido pelo Estado Islâmico na Síria — ao redor da vila de Baghouz — foi tomado pelas Forças Democráticas Sírias em março de 2019. O grupo falou em "eliminação total" do "califado" do Estado Islâmico, mas alertou que as células adormecidas jihadistas continuam como a "grande ameaça" para o mundo.
O SDF passou também a lidar com os milhares de suspeitos de serem militantes do Estado Islâmico que foram capturados ao longo dos últimos dois anos da batalha, assim como as dezenas de milhares de mulheres e crianças associadas a esses suspeitos. Os EUA defenderam o repatriamento dos suspeitos estrangeiros, mas a maioria de seus países de origem rejeitou o plano.
Agora, os curdos enfrentam uma ofensiva militar da Turquia, que pretende implementar uma "zona segura" que avança 32 km pelo território do nordeste da Síria para "proteger sua fronteira" e reassentar até 2 milhões de refugiados sírios que vivem no país.
Em resposta, as Forças Democráticas Sírias dizem que defenderão o território "a todo custo" e que os avanços conquistados na batalha contra o Estado Islâmico estão sendo colocados em risco.
É preciso considerar também o governo sírio, de Bashar al-Assad, que tem o apoio da Rússia, e pretende retomar o controle de todo o território da Síria.
Por que a Turquia considera os curdos uma ameaça?
Há uma hostilidade enraizada entre o Estado turco e os curdos do país, que representam de 15% a 20% da população da Turquia, em torno de 80 milhões de habitantes.
Os curdos receberam tratamento duro nas mãos das autoridades turcas ao longo de diversas gerações. Em resposta aos levantes nas décadas de 1920 e 1930, muitos curdos foram reassentados, nomes e roupas foram proibidos, o uso da língua curda foi limitado e até a existência de uma identidade étnica curda foi negada, com pessoas designadas como "Turcos da Montanha" .
Em 1978, Abdullah Ocalan fundou o PKK, que defendia um Estado independente curdo na Turquia. Seis anos depois, o grupo iniciou uma luta armada. Desde então, mais de 40 mil pessoas foram mortas e centenas de milhares foram desalojadas.
Nos anos 1990, o PKK recuou em seu pleito por independência, pedindo maior autonomia cultural e política, mas continuou a lutar. Em 2013, um cessar-fogo foi acordado após a realização de conversas a portas fechadas.
O cessar-fogo entrou em colapso em julho de 2015, depois que um atentado suicida atribuído ao Estado Islâmico matou 33 jovens ativistas na cidade de Suruc, de maioria curda, perto da fronteira com a Síria. O PKK acusou as autoridades da Turquia de cumplicidade e atacou soldados e policiais turcos. Em seguida, o governo turco lançou o que chamou de "guerra sincronizada ao terror" contra o PKK e o Estado Islâmico.
Desde então, milhares de pessoas, incluindo centenas de civis, foram mortas em confrontos no sudeste turco.
Forças estacionadas
A Turquia mantém uma presença militar no norte da Síria desde agosto de 2016, quando enviou tropas e tanques pela fronteira para apoiar uma ofensiva rebelde síria contra o Estado Islâmico. Essas forças capturaram a principal cidade fronteiriça de Jarablus, impedindo que as Forças Democráticas da Síria, liderados pelo curdo YPG, tomassem esse território e se ligassem ao reduto curdo de Afrin, a oeste.
Em 2018, tropas turcas e rebeldes sírios aliados lançaram uma operação para expulsar combatentes do YPG da região de Afrin. Dezenas de civis foram mortos e milhares deixaram suas casas.
O governo da Turquia diz que o YPG e o PYD são extensões do PKK, compartilham seu objetivo de independência por meio de luta armada e são organizações terroristas que devem ser eliminadas.
O que querem os curdos da Síria?
Os curdos representam entre 7% e 10% da população da Síria, que antes da guerra chegava a 24,5 milhões de habitantes, e hoje está em 18 milhões, segundo estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU).
Antes do levante rebelde contra o autoritário presidente Bashar al-Assad, em 2011, a maioria vivia nas cidades de Damasco e Aleppo, e em três áreas não contíguas em torno de Kobane, Afrin e na cidade de Qamishli, no nordeste.
Os curdos da Síria há muito foram reprimidos, sem acesso a direitos básicos. Cerca de 300 mil tiveram sua cidadania negada desde os anos 1960, e as terras curdas foram confiscadas e redistribuídas aos árabes na tentativa de "arabizar" as regiões curdas.
Quando a revolta contra Assad evoluiu para uma guerra civil, os principais partidos curdos evitaram declarar preferência política publicamente. Em meados de 2012, forças do governo se retiraram da região para se concentrar na luta contra os rebeldes em outras partes do país, e os grupos curdos assumiram o controle.
Em janeiro de 2014, os partidos curdos, incluindo o dominante Partido da União Democrática (PYD), declararam a criação de "administrações autônomas" nos três rincões de Afrin, Kobane e Jazira.
Em março de 2016, anunciaram o estabelecimento de um "sistema federal" que incluía principalmente áreas árabes e turcomenas capturadas durante batalhas contra o Estado Islâmico.
O anúncio foi rejeitado pelo governo sírio, pela oposição síria, pela Turquia e pelos EUA.
O PYD afirma que não está buscando independência, mas insiste que qualquer acordo político para acabar com o conflito na Síria deve incluir garantias legais para os direitos curdos e o reconhecimento da autonomia curda.
O presidente Assad prometeu retomar "cada centímetro" do território sírio, seja por meio de negociações ou ações militares. Seu governo também rejeitou as exigências curdas de autonomia, dizendo que "ninguém na Síria aceita falar sobre entidades independentes ou federalismo".
Qual é a situação dos campos entre a Síria e a Turquia?
As forças curdas operam diversos campos de refugiados para desabrigados e campos de detenção para familiares de pessoas suspeitas de ligação com o Estado Islâmico tanto dentro quanto fora da prometida "zona segura".
Mulheres e filhos de suspeitos de elo com o Estado Islâmico são mantidos em Ein Issa e Roj, que ficam nessa zona. Mas o maior ponto é o al-Hol, próximo à fronteira com o Iraque e quase 60 km ao sul da Turquia. Há 70 mil pessoas detidas em al-Hol, quase 90% mulheres e crianças, incluindo 11 mil estrangeiros. Os suspeitos de serem guerrilheiros do EI são mantidos em Raqqa, mais ao sul.
Os curdos dizem que não vão processar mulheres e crianças com comprovodas ligações com jihadistas, e tem havido pouca iniciativa da comunidade internacional para repatriar os estrangeiros.
A Casa Branca afirmou que a Turquia assumirá a responsabilidade sobre os acusados de ligação com o Estado Islâmico que foram presos pelas forças curdas.
Mas, se os curdos forem atacados, a capacidade e a disposição de cuidar desses campos serão colocados em xeque, e governos europeus temem que jihadistas e seus familiares sejam soltos e retornem aos países de origem.
Os curdos do Iraque conquistarão a independência?
Os curdos representam cerca de 15% a 20% da população do Iraque, que chega a 38,3 milhões de habitantes. Historicamente, eles gozam de mais direitos nacionais do que os curdos que vivem em Estados vizinhos, mas também enfrentaram uma repressão brutal.
Em 1946, Mustafa Barzani formou o Partido Democrata do Curdistão (KDP) para lutar pela autonomia no Iraque. Mas foi somente em 1961 que ele lançou uma luta armada completa.
No final da década de 1970, o governo começou a assentar árabes em áreas com maiorias curdas, principalmente em torno da cidade de Kirkuk, rica em petróleo, e a desalojar curdos à força.
Essa política ganhou força na década de 1980 durante a Guerra Irã-Iraque, na qual os curdos apoiaram o Irã. Em 1988, o iraquiano Saddam Hussein lançou uma campanha de vingança contra os curdos, incluindo o ataque químico a Halabja.
Quando o Iraque foi derrotado na Guerra do Golfo de 1991, o filho de Barzani, Massoud, e Jalal Talabani, da União Patriótica do Curdistão (PUK), lideraram uma rebelião curda.
A violenta repressão local levou os EUA e seus aliados a imporem uma zona de exclusão aérea no norte, que permitia aos curdos desfrutarem de um domínio próprio. O KDP e o PUK concordaram em compartilhar o poder, mas as tensões aumentaram e uma guerra de quatro anos eclodiu entre eles em 1994.
Os partidos cooperaram com a invasão liderada pelos americanos em 2003, que derrubou Saddam Hussein e governaram em coalizão no Governo Regional do Curdistão (KRG), criado dois anos depois para administrar as províncias de Dohuk, Irbil e Sulaimaniya.
Massoud Barzani foi nomeado presidente da região, enquanto Jalal Talabani se tornou o primeiro chefe de Estado não árabe do Iraque.
Em setembro de 2017, foi realizado um referendo sobre a independência na região do Curdistão e nas áreas disputadas pelos Peshmerga em 2014, incluindo Kirkuk. A votação foi contestada pelo governo central do Iraque, que classifica o pleito de ilegal.
Mais de 90% dos 3,3 milhões de pessoas que votaram apoiaram a secessão. Autoridades do KRG disseram que o resultado lhes deu um mandato para iniciar negociações com Bagdá, mas o primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, exigiu a anulação da votação.
No mês seguinte, as forças iraquianas pró-governo retomaram o território disputado pelos curdos. A perda de Kirkuk e sua receita com o petróleo foi um grande golpe para as aspirações curdas por seu próprio estado.
Após sua aposta sair pela culatra, Barzani deixou o cargo de presidente da região do Curdistão. Mas as divergências entre os principais partidos fizeram com que o cargo permanecesse vago até junho de 2019, quando ele foi sucedido por seu sobrinho Nechirvan.
BBC
Professor Edgar Bom Jardim - PE
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