segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Irã: reforma ou revolução?

O Irã muitas vezes parece estar à beira da democracia. Durante o século XX, o país passou por três levantes políticos expressivos: a Revolução Constitucional, entre 1905 e 1911, o movimento de nacionalização do petróleo, entre 1951 e 1953, e a Revolução Islâmica, de 1978 a 1979. Eles diferiam significativamente entre si, mas constituíam uma reação à corrupção, ao desgoverno e à autocracia. Caracterizavam-se por uma aspiração a alguma forma de governo democrático – mesmo assim, em todas as vezes, essa ambição se frustrou.
A Constituição de 1906 criou um Parlamento para conter o poder do xá e dar ao povo iraniano controle definitivo sobre seu país. Mesmo assim, duas décadas depois, o xá governava de novo como monarca absoluto, o Parlamento tinha se tornado uma formalidade e a nova Constituição era amplamente ignorada. O movimento dos anos 1950 foi impulsionado pela demanda pela nacionalização da indústria petrolífera do Irã, controlada, na época, pelo governo britânico. O então líder, o primeiro-ministro Mohammad Mosaddeq, era um populista, reformista e defensor da autoridade parlamentar no lugar da monárquica. Mesmo assim, novamente, o que alguns acreditavam ser uma perspectiva de democracia foi podada quando, em 1953, Mosaddeq foi derrubado por um golpe arquitetado pela CIA e pela Inteligência britânica. O xá manteve seu trono, e seguiu-se uma repressão régia sobre a atividade política.
Em seu livro de 2016, Democracy in Iran (Democracia no Irã, sem edição no Brasil), o sociólogo Misagh Parsa examina por que as forças de repressão sempre levam vantagem sobre os impulsos democráticos do Irã e como a democracia pode, por fim, surgir. Para Parsa, dado o caráter da República Iraniana, se a democracia chegar, será por uma revolução – não a partir de reformas graduais. Parsa afirma que a Revolução Islâmica poderia ter levado a um governo democrático. O clero mobilizou uma grande multidão diversificada para sair às ruas: universitários, comerciantes, intelectuais, trabalhadores braçais e administrativos. Mas Ruhollah Khomeini, o líder da revolução, estava empenhado na ideia de um Estado islâmico encabeçado pelo clero. Instruído por conselheiros seculares que se juntaram em torno dele durante seu breve exílio em Paris, em 1978, Khomeini defendia princípios democráticos da boca para fora. Em seu famoso tratado sobre o governo islâmico, composto em 1970, durante um exílio muito mais longo no Iraque, Khomeini deixou claro que os clérigos deveriam governar em um Estado islâmico. Mesmo em Paris, ele insistia que a charia, a lei islâmica, deveria prevalecer em um governo islâmico verdadeiro. Depois da derrubada da monarquia, os iranianos votaram, em imensa maioria, por uma república explicitamente islâmica e por uma Constituição que colocava um clérigo, Khomeini, em seu ápice.
No centro do projeto revolucionário estava a doutrina do velayat-e faqih, a ideia de que o mais eminente jurista islâmico vivo deve estar investido do poder supremo, com o clero determinando a estrutura básica das leis, do sistema judiciário e de como o país deve ser governado. O resultado, escreve Parsa, foi que “Khomeini e seus aliados se movimentaram para estabelecer uma teocracia. Eles contavam com mecanismos ideológicos, políticos e repressivos para ganhar apoio popular e desmobilizar a oposição crescente”. Enquanto o novo líder do Irã aderia a práticas de justiça distributiva em favor dos pobres e oprimidos, eliminava rivais que reivindicassem poder e silenciava dissidências de forma implacável.
Em sua campanha, Khomeini e seus prepostos mobilizavam a polícia religiosa, a Guarda Revolucionária Islâmica, a força militar paralela além do Exército regular, responsável por proteger o caráter islâmico do Irã, e os valentões da milícia Ansar-e Hezbollah (Combatentes do Partido de Deus), com seus cassetetes em riste. Membros desses grupos desbaratavam reuniões de dissidentes, enquanto o novo regime fechava jornais críticos à ordem emergente e bania organizações de oposição, incluindo o Partido Democrático Curdo, que Khomeini rotulou de “o partido do diabo”. Centenas de curdos morreram em conflitos com a Guarda Revolucionária ou foram executados depois de serem presos por crimes como “travar guerra contra Deus”. Outros movimentos que faziam campanha por minorias étnicas tiveram um destino similar. Por fim, o clero no entorno de Khomeini se virou até contra seus antigos aliados. Grupos radicais de esquerda, como o Mujahideen-e Khalq, e outros mais moderados, como a Frente Nacional e o Movimento pela Liberdade no Irã, chefiado por Mehdi Bazargan, o primeiro primeiro-ministro de Khomeini, em poucos meses viram-se alvo do regime.  
O primeiro presidente do país depois da revolução foi Abolhassan Bani-Sadr, um independente que tentou traçar um caminho moderado durante a crise que começou em novembro de 1979, quando revolucionários capturaram 66 americanos na embaixada dos Estados Unidos em Teerã (eles mantiveram 52 deles como reféns por mais de um ano). Bani-Sadr acabou atolado em um conflito com clérigos importantes e foi impedido pelo Parlamento em junho de 1981, depois de apenas 16 meses de Presidência. Quando seus seguidores se insurgiram, o regime clerical mandou matar 2.665 prisioneiros políticos em seis meses. “Até mesmo os mais altos líderes religiosos não estavam imunes”, diz Parsa. O aiatolá Mahmoud Taleghani, um conhecido clérigo liberal, foi marginalizado. O aiatolá Kazem
Shariat-Madari, que rejeitou a doutrina do velayat-e faqih, foi posto em prisão domiciliar.  
Cartaz anti-americano em protesto de 1951.Entre as demandas,estava a nacionalização da indústria petrolifera,em 1951 (Foto:  Bettmann Archive/Guetty Images)
Parsa mostra que a repressão continua sendo uma característica proeminente da República Islâmica, mas também que a dissidência nunca foi eliminada. As ideias de reforma, do império da lei e de governo democrático e transparente permanecem vivas. Sempre houve divisões no seio da elite dirigente e as vozes dissidentes que falam abertamente sempre se fizeram ouvir, especialmente em assuntos como assassinato de prisioneiros políticos, interdição de jornais e adulteração de eleições. Em 1981, um dos netos de Khomeini disse à BBC que o governo islâmico era “pior que o do xá e os mongóis” e acusou o regime de “matar as pessoas ou prendê-las sem motivo”.
De tempos em tempos, essas subcorrentes vêm à tona. Em 1997, Mohammad Khatami foi eleito presidente por uma grande maioria com promessas de mais direitos sociais e políticos, liberdade de imprensa, respeito pelo império da lei e direito à privacidade. Khatami não era nenhum revolucionário. Ele não queria derrubar a República Islâmica. Ainda assim, as forças conservadoras intensificaram suas táticas repressivas em 1998, e foi curta a vida do momento reformista de Khatami. No ano seguinte, o Irã passou por um dos momentos mais explosivos de dissidência pública de sua história recente. Em julho, depois que os tribunais fecharam um bem-­sucedido jornal de tendência liberal, protestos eclodiram na Universidade de Teerã. O regime respondeu brutalmente, mandando forças de segurança entrar nos dormitórios antes do amanhecer para bater nos estudantes e destruir suas moradias. O incidente significava problemas para o sistema. Duas décadas depois da revolução, a população de estudantes universitários tinha aumentado quase dez vezes: de 160 mil no começo dos anos 1980 para 1,5 milhão em 2000. Só uma minoria normalmente se engajava em ativismo político, mas não foi preciso muito para politizar o resto.
Nas eleições parlamentares de 2004, depois de dezenas de candidatos reformistas terem sido desqualificados pelo Conselho dos Guardiães, os conservadores ganharam maioria. O vitorioso na eleição presidencial do ano seguinte, Mahmoud Ahmadinejad, era um populista que, nas palavras de Parsa, “promovia plataformas que exacerbavam a crescente natureza autoritária do Estado e podavam esperanças de reforma política”. O novo presidente “não demorou muito para introduzir mudanças cruciais que refletiam o interesse do Estado em maior controle, politização e militarização da sociedade”.
Ainda assim, foi sob o governo de Ahmadinejad (2005-2013) que o Irã viu o desafio mais grave ao sistema conservador desde 1979. Em 2009, Ahmadinejad, apoiado implicitamente pelo sistema dirigente, incluindo o líder supremo e muitos comandantes da Guarda Revolucionária, concorreu a um segundo mandato como presidente. Ele foi desafiado por dois políticos proeminentes: Mir Hossein Mousavi, um ex-primeiro-ministro, e Mehdi Karroubi,
um clérigo de destaque e ex-presidente do Parlamento. Ambos eram figuras do sistema, mas fizeram campanhas com plataformas de reforma e fim do isolamento internacional do Irã. A fome por mudança era tal que os dois atraíram amplo apoio. Os comícios da campanha de Mousavi eram especialmente grandes e despertavam entusiasmo. Incentivados pelas multidões, Mousavi e Karroubi foram ficando cada vez mais ousados em suas críticas ao governo e clamor por mudanças.
Às vésperas da eleição, todos os sinais – o tamanho dos comícios de oposição, o entusiasmo dos apoiadores de Mousavi e o grande comparecimento no dia da votação em si – apontavam para uma vitória de Mousavi. Mas quando os resultados foram anunciados, suspeitamente cedo, Ahmadinejad foi declarado vencedor por uma margem improvável. Protestos estouraram no dia seguinte. Multidões imensas inundaram as ruas de Teerã gritando “Cadê o meu voto?”. Nos dias que se seguiram, para desespero do regime, o Movimento Verde (batizado pela cor adotada pelos apoiadores de Mousavi durante a campanha) só crescia e começou a clamar por mudanças radicais, muito além das reformas moderadas adotadas pelos dois líderes da oposição.
O regime reagiu de forma brutal. Grandes contingentes de polícia de choque e paramilitares foram enviados para as ruas, onde prenderam manifestantes e cercearam líderes simpáticos ao movimento de reforma. O governo acabou com organizações políticas de oposição, baniu manifestações (elas aconteceram mesmo assim) e despejou um dilúvio de propaganda contra os manifestantes. Muitos deles foram mortos em combates com as forças de segurança nas ruas ou por atiradores de elite em telhados. Uma vez contidos os protestos, começaram as represálias. Em uma ocasião, vários ex-membros proeminentes do governo e do Parlamento foram levados a julgamento juntos, revelando rachaduras profundas no seio da elite dirigente.
“O Movimento Verde”, escreve Parsa, “chacoa­lhou o alicerce da República Islâmica como nenhum outro acontecimento nos 30 anos desde a revolução. O movimento se desdobrou com tal velocidade que rapidamente parecia ser a última fase da revolução de 1979.” Ainda assim, fracassou em parte porque seus líderes, Mousavi e Karroubi,
eram reformistas graduais, não os agentes de mudanças radicais que as multidões buscavam. Em várias ocasiões, Mousavi até tentou controlar os manifestantes. Mas o vácuo entre os líderes e os descontentes enfraqueceu a campanha. Além disso, Mousavi e Karroubi não tinham planos para lidar com a repressão do regime quando ela veio. E os manifestantes também não estavam organizados o suficiente para manter o movimento diante da pressão do governo. 
Os líderes não conseguiram mobilizar grupos sociais além da base da oposição: estudantes, mulheres e profissionais de classe média. Como resultado, diferentemente da revolução de 1978 e 1979, a ampla maioria dos clérigos, comerciantes e trabalhadores da indústria se mantiveram à distância. Funcionários das fábricas não fizeram greve, lojistas não interromperam as redes de distribuição e os trabalhadores não bloquearam a produção e a exportação de petróleo. Parsa atribui essas falhas a uma deficiência da liderança, à fraqueza ou à falta de estruturas de apoio dos sindicatos e associações profissionais, e, claro, a uma repressão severa.  
Integrantes da revolução Constitucionalista.Entre 1905 e 1911 a luta era paraconter o poder do xá (Foto:  Paul Fearn / Alamy Stock Photo)
É diante desse pano de fundo de reforma abortada, protesto e repressão que Parsa responde à pergunta com que começa seu livro: “Que rumo a democratização do Irã pode tomar: reforma ou revolução?”. Para comparar, Parsa examina dois países com suas histórias próprias de democratização: Coreia do Sul e Indonésia. Na Coreia do Sul, depois de um levante estudantil em 1960, os militares estabeleceram uma ditadura e impuseram uma Constituição que privilegiava o Exército como elite dirigente. Mas não rejeitaram a democracia em princípio nem tentaram eliminar a oposição da classe média. Com o tempo, as forças moderadas se reagruparam e fizeram de novo pressão por uma reforma democrática. Além disso, a ditadura sul-coreana permitiu que um vigoroso setor privado dominasse a economia, deixando aberto o caminho para a industrialização e a prosperidade.
Na Indonésia, em contraste, a ditadura montada pelo general Suharto em 1967 rejeitou qualquer ideia de democracia e fechou a porta para a política de competitividade. Navegando nas receitas da pujante indústria de exportação de petróleo do país, o Estado tomou o controle de grande parte da economia. Isso deu aos militares um papel importante nas questões políticas e econômicas. Em 1997, quando a Indonésia foi devastada pela crise financeira asiática, o resultado das décadas de repressão e corrupção de Suharto foi uma revolução. No início do ano seguinte, protestos em massa e rebeliões começaram. Em cinco meses, eles tinham custado a Suharto o apoio do Exército e o forçaram a renunciar.
Julgado pelos critérios que Parsa aplica para determinar se Estados autocráticos vão se democratizar por meio de reforma ou revolução, o Irã, ele conclui, se encaixa melhor no modelo da Indonésia. A República Islâmica é um “Estado autoritário exclusivo”. O poder se concentra nas mãos de uma elite clerical restrita. Até a oposição reformista moderada é em grande medida deixada de fora da esfera de influência. A ideologia estatal rejeita a democracia em princípio. O Estado interfere de forma extensiva nas esferas social e cultural, forçando a população a uma resistência passiva ou oposição direta e exacerbando as tensões entre o governo e a sociedade.
O Estado também monopoliza a economia. Os resultados são um setor privado fraco, ausência de competição, um grande papel dos militares na economia e na política, amplas disparidades de riqueza e renda e altos níveis de corrupção e favorecimento. Há um abismo significativo entre o povo iraniano e seus governantes. “O clero dirigente,” escreve Parsa, “não tem nenhum interesse em transformação democrática”, já que “a democratização minaria seu privilégio econômico e poder político.”
Quaisquer que sejam as perspectivas de uma revolução, as últimas três décadas mostraram mais de uma vez que o povo iraniano, no geral, prefere mudança pacífica a levante. Eles votaram duas vezes em grande número pelo presidente reformista Khatami e, nas duas últimas eleições presidenciais, escolheram de novo um moderado reformista, Hassan Rouhani. Como o próprio Parsa observa, durante os protestos em massa de 2009, trabalhadores da indústria, comerciantes e a grande maioria do clero se mantiveram afastados. Isso sugere que essas comunidades-chave não têm estômago para outro levante do tipo que eles experimentaram nos primeiros anos da República Islâmica e que as feridas da repressão passada ainda estão abertas.
O regime parece ter aprendido com a experiência em 2009. Permitiu a eleição de Rouhani em 2013 e evitou interferência ostensiva na votação. Essa cautela por parte do regime e a confusão que os iranianos testemunharam durante a Primavera Árabe – no Egito, Síria e Iêmen – e nos  países vizinhos, como Afeganistão e Iraque, reforçaram a preferência por mudança por meio de reforma gradual e por chegar a ela pelas urnas, não pela bala. Os revolucionários ainda não estão às portas.
Fonte:Revista Época
Professor Edgar Bom Jardim - PE

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