sábado, 3 de outubro de 2020

Salário mínimo mais alto do mundo? Cidade na Suíça aprova piso de R$ 25 mil



Franco suico
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Franco suíço é uma moeda com cotação forte em comparação com euro, dólar e real

A população da cidade de Genebra, na Suíça, aprovou nesta semana em um referendo a criação de um salário mínimo de 23 francos suíços por hora — o que equivale a 4.086 francos mensais em uma jornada semanal de 41 horas, ou R$ 25 mil por mês.

A quantia parece exorbitante para os padrões brasileiros, onde o salário mínimo é de apenas 4% do valor suíço — R$ 1.045 (ou 170 francos). No Brasil, o presidente brasileiro tem salário mensal de R$ 27 mil reais, um pouco superior ao mínimo de Genebra.

Mas Genebra é considerada uma das cidades mais caras do mundo. Um cafezinho em Genebra costuma custar cerca de 5 euros, ou mais de R$ 30.

Os sindicatos de trabalhadores, que promoveram a proposta do salário mínimo, dizem que houve um aumento grande no número de pessoas procurando centros de doações de comida por conta da pandemia de coronavírus.


Uma das atividades econômicas mais importantes de Genebra é o turismo, setor que foi fortemente afetado pela doença.

Segundo os sindicalistas, é difícil sobreviver na Suíça com renda inferior a 4 mil francos suíços mensais — justamente o valor que foi aprovado de salário mínimo.

Habitação, serviços com água e luz, transporte público, seguro de saúde e alimentação estão entre os itens mais caros, quando comparados com outras cidades em outros países.

O aluguel mensal de um apartamento de um quarto na região central de Genebra custa por volta de 1,8 mil francos (R$ 11 mil). Um trabalhador pode gastar em um mês mais de 670 francos (R$ 4 mil) em transporte, seguro de saúde e contas da casa.

Mas quando comparado com outros países, o salário mínimo da cidade suíça é extremamente alto. São quase 3,8 mil euros por mês — mais do que o dobro do salário mínimo pago nos países vizinhos Alemanha e França (por volta de 1,5 mil euros). E muito superior aos 2 mil euros pagos em Luxemburgo, que tem o maior salário mínimo em âmbito nacional da Europa.

A Suíça não possui uma política nacional de salário mínimo, cabendo a cada cidade decidir sobre esta questão por conta própria.

O país é conhecido por dar aos seus cidadãos a possibilidade de tomar diversas decisões via referendo.

A proposta de estabelecimento de salário mínimo havia sido rejeitada em Genebra em referendos em 2011 e 2014. Agora a municipalidade já é o terceiro cantão suíço a estabelecer um piso de salário.

Brasil

O contraste entre os salários pagos na Suíça e os praticados no Brasil é enorme. Mas isso acontece porque o poder de compra das moedas e os custos de vida são muito distintos.

Genebra
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Genebra tem um dos maiores custos de vida do planeta e teve economia muito afetada pela covid-19

Na Suíça, um salário mínimo brasileiro, de R$ 1.045 ou 170 francos suíços, seria suficiente para pagar apenas um cafezinho por dia do mês, aproximadamente (tomando por base o preço de 5 euros ou 5,40 francos por café).

Já em território brasileiro, um mínimo é suficiente para comprar duas cestas básicas em São Paulo, cidade brasileira com os preços mais caros de alimentos.

A cesta básica é uma estimativa do custo mensal para se alimentar uma família de quatro pessoas, com 13 gêneros alimentícios, como carne, arroz, feijão, legumes e frutas. Ela varia nas capitais brasileiras entre R$ 520 e R$ 380.

Mas quando é considerado o custo de vida total, e não apenas da alimentação, o poder de compra do salário mínimo brasileiro deixa muito a desejar. Para sustentar minimamente os gastos de uma família de quatro pessoas, um trabalhador precisaria receber R$ 4.347 por mês — mais de quatro vezes o valor atual do salário mínimo, segundo um cálculo feito no começo do ano pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socieconômicos (Dieese).

O salário mínimo de Genebra também provocaria indignação nos professores brasileiros — cujo piso nacional está pouco acima de R$ 2,8 mil. Isso significa que um professor brasileiro ganhando o piso precisaria economizar nove meses de salário para receber o equivalente a um mínimo em Genebra.

No Brasil um salário de R$ 25 mil coloca o trabalhador imediatamente no topo da pirâmide salarial. Um levantamento feito pela Oxfam no ano passado mostrou que 99% dos trabalhadores brasileiros recebem menos que R$ 23 mil.

Ainda assim, houve quem reclamasse desse valor. Em 2019, um procurador de Minas Gerais reclamou do "miserê" que é seu salário mensal de R$ 24 mil, provocando indignação nas redes sociais.

Mas uma consideração importante a se fazer, ao comparar o salário mínimo brasileiro com o de uma cidade na Suíça, é sobre a cotação internacional das moedas.

O real foi uma das moedas do mundo que mais se desvalorizou em relação ao dólar desde o começo do ano. A moeda brasileira perdeu cerca de 40% do seu poder de compra internacional desde janeiro — um dólar vale hoje no Brasil cerca de R$ 5,64, em vez de R$ 4,02 na cotação vigente em janeiro.

Pela cotação do real do começo do ano, um salário mínimo como esse anunciado por Genebra valeria R$ 17 mil naquela época — 30% a menos. No ano passado, quando o real estava ainda mais forte, os mesmos 4.086 francos suíços equivaliam a R$ 14 mil A mera variação cambial é capaz de criar grandes diferenças no valor.

BBC
Professor Edgar Bom Jardim - PE

'Sem wi-fi': pandemia cria novo símbolo de desigualdade na educação


Jovem com celular sem conexão
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'Muitos falam que não conseguem acessar as aulas', conta jovem do segundo ano do ensino médio. 'Alguns nem pegaram a apostila ainda'

Desde que as aulas remotas começaram, em março, Matheus Lopes de Oliveira, 18, tem dependido da ajuda da irmã e da apostila que buscou na escola para conseguir continuar estudando.

Isso porque uma combinação de problemas tem tornado mais difícil acompanhar as aulas pela internet: Matheus, aluno do segundo ano do ensino médio na rede estadual do Rio de Janeiro, não consegue fazer o login no ambiente remoto escolar desde que precisou trocar de celular. Sua casa, no Complexo do Alemão, tem conexão com a internet, mas ela é instável. "Cai toda hora, a área (de cobertura) é ruim. E quando passa caminhão ou voam com pipas aqui na rua, estragam o fio."

Ele continua estudando cerca de uma hora por dia (bem menos do que passava na escola antes da pandemia), mas nem sempre consegue conciliar as tarefas escolares com o seu trabalho na ONG Educap. Por causa da pandemia, aumentou a demanda pelas cestas básicas que ele organiza e distribui na comunidade.

Na prática, Matheus está desde março sem participar ativamente das aulas online, fazendo apenas os exercícios da apostila, que ele vai levar de volta à escola em outubro para que seja corrigida pelos professores. A irmã e outros conhecidos têm ajudado a tirar as dúvidas do conteúdo.

"A gente tem um grupo de WhatsApp (da turma da escola), e muitos falam que não conseguem acessar as aulas", conta à BBC News Brasil. "Alguns nem pegaram a apostila ainda."

Questionado se teme ficar para trás nos estudos, Matheus diz que tem mais medo de passar de ano sem sentir que aprendeu o suficiente. "Queria fazer tudo de novo. Não adianta eu passar para o terceiro ano sem ter aprendido nada. Prefiro voltar e fazer o segundo ano de novo, do zero."

Em São Paulo, na comunidade do Jardim São Luís (extremo sul), Vânia Rocha tem internet em casa, mas apenas um aparelho eletrônico: o seu próprio celular, que não tem sido o bastante para dar conta das aulas dos dois filhos, Gabriel e Giovana. Com a filha mais nova, de sete anos, a maior dificuldade é conseguir ajudá-la nos estudos, já que, aos 7 anos, ela ainda é pequena para estudar sozinha.

Complexo do Alemão, em foto de arquivo
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No Complexo do Alemão, onde mora Matheus, seu acesso à internet é instável

"Nós recebemos a apostila da escola, mas eu não consegui acompanhar os estudos dela. (...) Acabei desistindo, infelizmente", conta. "Outro dia, a Giovana me perguntou: 'mãe, no ano que vem, quando passar a pandemia, eu vou voltar para a escola e ir para o segundo ano (do ensino fundamental) sem saber ler e escrever?' A gente respira e não sabe o que responder. (...) A desigualdade é muito grande, os filhos da periferia não estão acompanhando as aulas."

18% dos alunos sem acesso às atividades da escola

A pandemia do coronavírus acentuou as desigualdades na educação e tornou mais comuns, pelo Brasil inteiro, as dificuldades de conectividade enfrentadas por Matheus e Vânia. Enquanto redes e alunos com mais estrutura avançaram (mesmo que com percalços) no ensino remoto, uma parcela dos alunos e de locais mais carentes não conseguiu se manter conectada e foi perdendo tanto conteúdo quanto entusiasmo pelos estudos.

No momento em que as redes estaduais e municipais começam a planejar a retomada para o ensino presencial (ou ao menos híbrido), reengajá-los será um dos grandes desafios.

Ainda em julho, uma pesquisa do Datafolha para as fundações Lemann, Itaú Social e Imaginable Futures com pais ou responsáveis de 1.556 estudantes de escolas públicas do país concluiu que aumentou de 74% (desde maio) para 82% o índice de alunos que estavam recebendo atividades escolares em casa, seja por material impresso ou celulares, TV, rádio e computador, ou uma combinação desses meios.

Mas isso ainda deixa quase 1 em cada 5 estudantes da rede pública sem ter feito atividades remotas da escola.

A proporção de alunos sem acesso aos conteúdos escolares era ainda maior na região Norte (38% contra 18% do resto do país) e em casas que concentram três ou mais estudantes.

Além disso, a falta de motivação dos jovens com as atividades remotas passou de 46% em maio para 51% em julho.

Mas o dado mais preocupante da pesquisa é de que os pais de mais de um terço dos estudantes dizem que seus filhos consideram muito difícil a rotina de estudos remotos e correm o risco de abandonar a escola por causa disso.

Mãe estudando com a filha
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Enquanto parte dos alunos têm se mantido conectado e engajado nas aulas remotas, outra parte corre risco grave de evasão escolar

O déficit tecnológico vem de antes da pandemia. A pesquisa TIC Domicílios de 2019 apontava que, naquela época, 43% dos domicílios urbanos brasileiros e apenas 18% dos rurais tinham computador em casa. No que diz respeito à conexão com a internet em casa, os percentuais subiam para 75% em lares urbanos e 51% em lares rurais.

Embora esses números estejam desatualizados por conta da pandemia - já que parte dos alunos ganhou pacotes de dados e dispositivos eletrônicos, de redes públicas ou doadores particulares, para continuar estudando -, eles exemplificam a desigualdade de acesso à tecnologia, à conectividade e à informação no país.

'Mais vulneráveis ficam para trás'

"O abismo digital, que já era preocupante, na pandemia vai piorar. (...) A falta de conectividade implica em deixar as crianças mais vulneráveis para trás", diz à BBC News Brasil Ítalo Dutra, chefe de educação do Unicef (braço da ONU para a infância) no Brasil. Isso porque o grupo de alunos mais desconectados coincide com o grupo que tem renda per capita menor, mais incidência de pobreza e mais chance de abandonar a escola antes de concluir os estudos.

Dutra destaca, porém, que a maioria das redes públicas de educação do país têm conseguido combinar atividades digitais com materiais físicos, para minimizar a dependência da conexão com a internet. O Unicef também promove, desde 2017, em parceria com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), um projeto de busca ativa dos alunos, que consiste em ir atrás de estudantes que não têm frequentado as aulas.

Na pandemia, diz ele, o parâmetro estabelecido pela Undime é de que alunos que estão há no máximo três semanas sem manter contato com a escola ou realizar tarefas devem ser ativamente buscados. "A gente ainda vai precisar conviver com o vírus por um tempo. A grande preocupação nesse contexto é a perda de vínculo desses alunos com a escola, e de eles perderem seu direito à educação", afirma.

Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (Ceipe) da FGV, também destaca o esforço da grande maioria das redes públicas do país em manter o ensino vivo, a despeito dos desafios de conectividade.

Aula remota da rede amazonense
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Muitas redes, como a amazonense na foto acima, conciliaram ensino online com atividades impressas, pela TV e por rádio

Mas ela destaca também que "o Brasil não tem direito, como nona maior economia do mundo, a ter expectativas baixas quanto a suas escolas". E lembra que o o ensino da cultura digital faz parte da Base Nacional Curricular Comum, documento que define as competências principais que as crianças devem aprender na educação básica brasileira e que prevê que todos devem ser capazes de "comunicar-se, acessar e produzir informações e conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria".

Ambos os especialistas destacam, também, que o acesso por si só à internet e ao material digital das aulas não é garantia de mais aprendizado.

"O que garante a qualidade do aprendizado é a boa mediação do professor, seu feedback ao aluno", afirma Dutra. "E tem havido uma grande diversidade de mediações (nas aulas em meio à pandemia)."

Carência de aparelhos, de wi-fi e de comida

De volta ao Jardim São Luís, em São Paulo, Vânia Rocha conseguiu alguns aparelhos para distribuir às crianças locais e ajudá-las nos estudos, por intermédio da ONG onde trabalha, a Orpas. "Mas a procura é imensa, e não temos recursos para atender todos", conta.

"A carência de estrutura é total: desde ter uma boa internet para assistir a um vídeo até ter um aparelho. A mãe que consegue ter wi-fi em casa precisa trabalhar para pagar isso, e fica sem tempo para acompanhar o filho nos estudos — e ele precisa disso, porque não aprende sozinho", afirma.

Em regiões de maior vulnerabilidade, há preocupações com questões ainda mais urgentes do que a conectividade: a fome.

Pessoa estudando online
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'A internet é para quem é mais privilegiado por aqui, para quem tem um bom aparelho de celular. No nosso contexto rural, isso praticamente não existe''

Na divisa entre a zona da mata e o agreste de Pernambuco, Lilian Prado tem um projeto para apoiar mães empreendedoras, o que lhe permitiu acompanhar de perto a realidade de algumas famílias da região.

"A internet é para quem é mais privilegiado por aqui, para quem tem um bom aparelho de celular. No nosso contexto rural, isso praticamente não existe. Minha mãe é professora e muitos de seus alunos nem têm comida direito em casa. Ela imprime os materiais, e as crianças vêm pegar", conta Prado.

"É horroroso que no Brasil, nos dias de hoje, a gente ainda veja pessoas morando em condições tão ruins — em casas de taipa, pessoas com fome, mulheres que sequer têm documentos, muito menos smartphone. Então é só um grupo pequeno e privilegiado daqui que tem conseguido estudar pela internet."

Para Claudia Costin, à medida que a pandemia se estende e a necessidade de rodízio de alunos em sala (quando as aulas presenciais voltarem) vira uma possibilidade crescente para muitas redes, vai ser cada vez mais importante incluir a conectividade dos alunos no planejamento orçamentário de Estados e municípios, apesar das dificuldades fiscais.

"Se a gente conseguir ampliar o acesso a equipamentos e a pacotes de dados, vamos ajudar muito esses alunos", conclui.

  • Paula Adamo Idoeta
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Sequelas da covid-19: vaquinhas online para pacientes curados pedem de fraldas a oxigênio


Diego Garcez teve complicações após quase 3 meses internado
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Diego Garcez teve complicações após quase 3 meses internado

"Meu irmão deve estar entre o número divulgado de 'curados da covid-19'. Mas e todos os outros problemas que vieram junto?"

A porta-voz do pedreiro Diego Garcez, de 35 anos, é sua irmã mais velha, a técnica de enfermagem Andreza, de 36.

Depois de quase três meses doente e internado por causa do novo coronavírus e às infecções hospitalares que se seguiram, Diego ficou com dificuldade de falar e andar.

Também precisou voltar a morar na casa da família, com a mãe e a irmã, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Sem renda (já que não consegue mais trabalhar), Diego conta com a solidariedade de amigos, vizinhos e desconhecidos, que fazem doações de material médico, como curativos e pomadas, e contribuem com uma vaquinha online feita por Andreza para complementar o orçamento familiar.

Essa é a realidade de muitas famílias brasileiras, que precisam de ajuda para lutar contra as sequelas deixadas pela covid-19 — desde aquelas diretamente ligadas à doença, como tosse persistente, falta de ar, inflamação e fibrose pulmonar e perda ou mudança prolongada no paladar e no olfato, às causadas pelos longos períodos de internação.

O Vakinha, um dos mais populares sites de arrecadação de dinheiro no Brasil, detectou um crescimento de 40% das campanhas criadas mensalmente com "viés solidário" em comparação com os meses anteriores à pandemia (antes de março).

São em média mais de 2 mil novas campanhas abertas por dia, segundo a empresa, muitas relacionadas às pessoas com sequelas. Uma busca rápida leva a dezenas de pedidos de ajuda.

A BBC News Brasil conta a história de três famílias que recorreram a essa alternativa — e para quem os efeitos da doença estão longe de passar.

Oxigênio para sobreviver

Kátia precisa andar com a ajuda de um cilindro de oxigênio
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Kátia precisa andar com a ajuda de um cilindro de oxigênio

Com ajuda de uma amiga, a paulista Kátia Silene, de 52 anos, decidiu criar uma vaquinha ao perceber que sua renda não seria suficiente para pagar pelos cuidados necessários na recuperação da covid-19. Sem grande alcance nas redes sociais, conseguiu arrecadar até então apenas R$ 500, um dinheiro, porém, que já ajudou no aluguel de cilindros de oxigênio portáteis. Como não sabe quando poderá se locomover sem esse suporte, a campanha segue aberta. Ela contou sua história à BBC News Brasil:

"Eu já não tinha uma vida fácil. Diabética e transplantada renal, sobrevivo com um salário mínimo por causa de um auxílio-doença. Para complementar renda, vendia bolachinhas caseiras nos bairros de Marília, interior de São Paulo.

No fim de junho, comecei a me sentir estranha. Não sentia paladar nem cheiro, mas também não tinha febre. Fui ao hospital da minha cidade três vezes, mas disseram que eu tinha dengue.

Cerca de 1 semana depois, tive que ir a uma consulta de monitoramento no Hospital do Rim, em São Paulo. Quando falei o que estava sentindo, eles imediatamente me isolaram. Mediram meu nível de saturação de oxigênio, que já estava muito baixo, e disseram que eu ficaria internada.

(Um nível de saturação de menos de 95% pode comprometer os órgãos do doente, segundo informa a Sociedade Brasileira de Infectologia em uma campanha.)

No outro dia, saiu o resultado positivo para a covid-19.

Eu só piorava: passei a ter febre, falta de ar, nível de saturação de oxigênio sempre baixo, e os exames mostraram meu pulmão comprometido.

Como não melhorava, precisei ir para a UTI, onde poderia receber melhor o oxigênio.

Eu vi muita gente morrer. Tinha pavor de dormir, ouvia os enfermeiros comentando a morte dos pacientes, dizendo que precisavam ligar para a família e entregar os pertences das pessoas. Eu só fechava os olhos.

No fim de julho, o exame mostrou que eu estava curada. Mas meus pulmões seguiam comprometidos e tinha muita falta de ar. Passei mais alguns dias no hospital, mas pude ir para casa devido ao cilindro de oxigênio fornecido pela prefeitura da minha cidade.

Na minha situação, até hoje, o aparelho precisa estar na tomada 24 horas por dia. Se eu ficar só sentada, até consigo respirar sem ele. Mas se eu me levantar, é tontura, falta de ar…

Eu continuo tendo que ir ao Hospital do Rim cinco vezes por mês para avaliar minha situação e não correr o risco de perder o meu transplante. Mas, para isso, eu preciso alugar cilindro de oxigênio portátil. São R$ 100 cada aluguel, somado aos remédios caros que tomo.

Uma amiga me indicou fazer a vaquinha. Na hora, fiquei com vergonha. Mas por causa da necessidade, resolvi aceitar que ela fizesse. Eu preciso do oxigênio para sobreviver.

Eu não me sinto curada. Estou inchada, com o rosto enorme, ainda não sinto o gosto da comida, tenho muita afta por causa da imunidade baixa.

Só quem viu — e viveu — de perto sabe a gravidade dessa doença."

Reaprendendo a comer e andar

Diego Garcez (sentado) precisou voltar a morar com a família
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Diego Garcez (sentado) precisou voltar a morar com a família

A família de Diego Garcez, de 35 anos, recorreu a amigos e desconhecidos para poder pagar pelo tratamento em casa, após alta do hospital. A história dele se espalhou por Nova Iguaçu, e a família recebeu dezenas de doações, principalmente de fraldas, que já não são mais necessárias. Pela vaquinha, foram pouco mais de R$ 3 mil arrecadados, que ajudaram na compra de materiais de curativo, pomadas e suplemento alimentar. Agora, a família tenta ir atrás dos serviços de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia. A irmã de Diego, Andreza, compartilhou a experiência dele:

"Como o Diego morava só, em Queimados (RJ), ele passou duas semanas mal, em casa, sem a gente saber direito o que acontecia. Quando tivemos a consciência que poderia ser covid-19, já estava se agravando bastante.

Inicialmente, ele foi diagnosticado com dengue, mas eu, como técnica de enfermagem, não acreditei. Procurei outro hospital, e veio o diagnóstico. Fomos para casa, para seguir o protocolo de remédios que nos passaram no hospital.

Mas ele só piorava. A respiração faltava, ele ficava mais cansado, a febre não cessava.

Diego nunca fumou e sempre foi saudável. Acho que o que pode ter complicado sua situação foi que ele nunca se cuidou nas obras em que trabalhava, não usava máscaras para lixar parede, essas coisas. Isso pode ter comprometido parte do pulmão já aí.

Como ele estava ficando pior, o levei novamente ao hospital e insisti por uma tomografia. Ficou comprovado que 60% do pulmão dele estava comprometido. Ele foi internado, no início de maio.

Começou, então, nossa saga.

Depois de três dias de luta, consegui a transferência dele para um hospital de campanha. Mas ele chegou muito grave e já foi intubado.

A partir daí, foram várias complicações, com infecções hospitalares, enfisema subcutâneo, que é quando o ar ao invés de ir pro pulmão, vai para a pele. Ele ficou completamente inchado.

Meu irmão criou um ferimento bem grande em cima da nádega, pois ele não podia mudar de posição, devido à gravidade do caso.

(Em um manual sobre os cuidados com pacientes de covid-19, o Ministério da Saúde alerta para o aparecimento de úlceras de decúbito, popularmente conhecidas como escaras, devido ao tempo prolongado da internação de pacientes com covid-19. A orientação é mudar a pessoa de posição a cada duas horas)

As infecções foram piorando muito, a ponto de informarem, dois meses depois do início internação, que ele estava curado da covid-19, mas que o caso era seríssimo por causa das complicações.

Ele acabou tendo uma inflamação na região do tórax e foi novamente transferido, para fazer uma possível cirurgia.

Mas aí, nessa internação no novo hospital, começou a responder aos antibióticos. Diminuiu o inchaço, tirou o tubo, acordou. Como ele havia sido traqueostomizado, ele não falava, não andava. Mas ao menos melhorou da infecção.

O quadro mental e emocional, porém, se agravou, com confusão mental, depressão e ansiedade. Por isso, a melhor decisão foi levar para terminar o tratamento em casa, e ele teve alta em agosto.

O que mais pesou para recorrer à vaquinha foi o fato de meu irmão precisar de toda ajuda possível para voltar a viver bem. Nossa família não tinha condições de pagar por tudo que ele necessitava.

Eu engoli o orgulho e pedi ajuda com a vaquinha aos parentes e aos amigos.

Nos dedicamos a pagar por fonoaudióloga, fisioterapia. Precisávamos também de fraldas, curativos, pomadas, luvas. E as pessoas nos ajudaram muito com isso.

Agora, ele já começou a comer vários alimentos, até sólidos, mas ainda não voltou a falar direito. A perna direita ainda não responde bem, mas finalmente ele conseguiu tomar banho em pé.

Precisamos seguir se dedicando ao tratamento dele, que infelizmente não acontece pelo SUS.

Ele está morando conosco novamente, na nossa casa. Já estamos inclusive planejando construir uma suíte para ele no terreno, por achar que ele vai ter que permanecer aqui por um bom tempo."

'Perdi meu pai e minha voz'

Paula Helena perdeu o pai antes de ser internada
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Paula Helena perdeu o pai antes de ser internada

A mobilização para arrecadar dinheiro partiu dos amigos da época do colégio, sensibilizados com a história de Paula Helena Souza, de 30 anos. Reunidos no WhatsApp, divulgaram a luta dela contra a covid-19 para pessoas próximas, em Santos, no litoral paulista. Até agora, conseguiram pouco mais de R$ 1 mil. O valor já ajudou nas despesas da família, abalada financeira e emocionalmente após a morte do pai, por covid-19. Paula relata a seguir o que enfrentou:

"O coronavírus chegou com tudo na minha casa. Meu pai, que já tinha uma saúde debilitada por fazer hemodiálise, foi o primeiro a pegar. Não desconfiamos logo dos sintomas, porque ele já ficava sempre cansado. Mas quando descobrimos, foi tarde. Ele morreu aos 62 anos, em Santos.

Nas vésperas da morte dele, eu já comecei a me sentir mal. Não tive nem tempo para o luto.

No dia seguinte ao enterro, senti muita falta de ar. Cheguei a pensar que seria emocional, diante de tudo que estava vivendo.

Mas fui ao pronto-socorro, onde fiquei internada. Já no outro dia, fui encaminhada ao lugar de isolamento para pacientes com suspeita de covid-19.

Já precisava de cateter de oxigênio no nariz para conseguir respirar, porque minha saturação estava baixa. Dois dias depois, comecei a me sentir muito mal, com arritmia cardíaca, e fui transferida para um hospital de campanha.

A partir daí, não lembro muita coisa. Só de uma conversa com um médico, que falou que seria necessário intubar caso eu não respondesse ao decúbito ventral, que é a posição de bruços. Acabei sendo intubada.

Foram oito dias assim, não acreditavam mais que eu ia sobreviver, porque estava muito grave. Eu acredito em milagre de Deus, porque acordei sozinha da sedação.

Fui melhorando, fui extubada, e me disseram que não havia mais o coronavírus no meu corpo.

Mas devido à intubação e sedação, perdi os movimentos do corpo e a fala. Fiz fisioterapia respiratória, e meus movimentos foram voltando.

A alta veio depois de 23 dias internada. Recebi um atestado médico de sete dias, mas sabia que não conseguiria voltar à rotina normal.

Eu cansava para fazer qualquer coisa. Para subir escada, era uma luta.

Eu continuava recebendo pelo meu trabalho administrativo em uma igreja, mas, sem a renda do meu pai, a situação financeira apertou muito.

Meus amigos passaram a me ajudar e até fizeram essa vaquinha. Eu até fiquei constrangida, mas também muito feliz com a mobilização. Realmente estava precisando, me ajudou demais.

Ainda dependo de ajuda para ir aos especialistas que preciso, da fisioterapia ao fonoaudiólogo.

Eu também canto na igreja, mas a intubação agravou um problema que eu já tinha, criando um granuloma (uma espécie de queloide nas cordas vocais). Muitas vezes dói, e é necessário um acompanhamento de fonoterapia.

Isso mexe comigo, porque cantar é uma das coisas que mais amo.

Estou na luta da recuperação total. Infelizmente, o sistema público não dá apoio na questão das sequelas, como a depressão que eu desenvolvi após passar por tudo isso.

(Problemas de saúde mental, como depressão, ansiedade e dificuldades cognitivas, também aparecem entre as sequelas mais comuns pós-covid, segundo uma pesquisa com 60 mil pacientes.)

Além disso, preciso fazer fisioterapia respiratória, fonoterapia específica para voz e ir ao dermatologista, pois perdi pelo menos 90% do meu cabelo.

Mas eu tenho lutado."

  • Vitor Tavares
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE