domingo, 2 de fevereiro de 2020

'Aprendendo a aprender': 3 técnicas indicadas por cientistas para qualquer pessoa melhorar nos estudos


caderno de exercíciosDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionNeurociência nos dá pistas de como o cérebro absorve melhor a informação, o que pode nos tornar melhores aprendizes
A volta às aulas às vezes é encarada com desânimo por muitos alunos, diante das dificuldades em aprender conteúdos difíceis ou se preparar para exames importantes, como o Enem.
Mas será que há jeitos mais eficientes de estudar e de aprender, diferentes daqueles a que recorremos sempre?
Um livro recém-lançado no Brasil coloca isso em discussão. Aprendendo a Aprender para Crianças e Adolescentes - Como se Dar Bem na Escola (editora Best Seller) foi feito por três pesquisadores: a PhD Barbara Oakley, professora de Engenharia na Universidade e Oakland (EUA) e pesquisadora de psicologia cognitiva, o PhD Terrence Sejnowski, especialista em neurociência e neurobiologia computacional, e Alistair McConville, diretor de aprendizagem e inovação em uma escola britânica.
Oakley é a criadora de um curso online gratuito de mesmo nome ("Aprendendo a aprender") que foi um dos mais populares da plataforma Coursera em 2018, com mais de 1,7 milhão de pessoas inscritas. A pesquisadora ensina a tirar melhor proveito da forma como o cérebro registra informações, com base em evidências científicas.
A experiência vem dela própria: como má aluna de matemática e ciências na escola, Oakley se dedicou a aprender essas disciplinas mais tarde na vida porque percebeu que com elas poderia melhorar suas perspectivas profissionais. O caminho para isso, diz, foi se tornar uma "boa aprendiz" e "mudar seu cérebro".
A seguir, a BBC News Brasil seleciona técnicas sugeridas por ela e os demais pesquisadores do livro, que podem ser úteis para alunos de qualquer idade — e em qualquer tipo de estudo.

1. Empacou em um exercício?

Nosso cérebro, diz Oakley, trabalha de dois jeitos diferentes, que se complementam no aprendizado: o modo focado (quando estamos prestando atenção a um exercício, a um filme ou ao professor, por exemplo) e o modo difuso (quando o cérebro está relaxado).
Menino demonstrando frustração ao estudarDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionSe você empacar em um exercício ou atividade, dê tempo a seu cérebro - seja com uma pausa de cinco a dez minutos, seja alternando entre exercícios
"Acontece que o cérebro precisa alternar entre o modo difuso e o focado para aprender de forma efetiva", explica a cientista. Ou seja, relaxar a mente muitas vezes permite encontrar soluções para problemas — é o motivo pelo qual às vezes temos boas ideias durante caminhadas ou depois de uma boa noite de sono, quando o cérebro entra no modo difuso.
Então, se você empacar em um exercício ou atividade, mesmo tendo entendido a explicação inicial (o que é fundamental para seguir adiante), Oakley diz que é preciso dar ao cérebro a chance de sair do modo focado e entrar no difuso, seja com uma pausa de cinco a dez minutos para fazer outra coisa, seja alternando entre exercícios.
"Quando você estiver empacado em um exercício de matemática, o melhor a fazer é mudar o foco e estudar um pouco de geografia. Assim, você conseguirá avançar quando voltar à matemática", sugere Oakley.
"Se você sempre fica empacado em uma disciplina, comece por ela quando for estudar. Assim, consegue alternar com outras tarefas ao longo do dia (e dá ao cérebro a chance de alternar). Não deixe o mais difícil para o fim, pois você já estará cansado e sem tempo para a aprendizagem difusa."
A propósito, enquanto Oakley defende a alternância de atividades para manter o cérebro eficiente, ela é contra o multitasking — fazer muitas coisas ao mesmo tempo, por exemplo, ficar no WhatsApp enquanto estuda. "É um erro. Só conseguimos focar em uma coisa por vez", diz ela. "Quando mudamos o foco de atenção, perdemos energia mental e nosso desempenho piora."

2. Costuma deixar estudos e tarefas para a última hora?

A estratégia que os especialistas sugerem para evitar a procrastinação requer um despertador (ou qualquer outro tipo de temporizador) e uma "recompensa":
- Desligue todas as distrações (celular, TV etc.) e marque o temporizador para 25 minutos. Concentre-se na tarefa o máximo que puder, sem alternar com outra. Não pare para comer e rejeite interrupções;
cérebro aprendendoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionEstudo de última hora não dá ao cérebro a chance de consolidar o aprendizado - e a tendência é você esquecer tudo o que estudou
- Depois dos 25 minutos, dê a si mesmo uma recompensa (como assistir a um vídeo engraçado, ouvir uma música, brincar com o cachorro etc.) por cinco ou dez minutos. O anseio pela recompensa vai ajudar o cérebro a manter o foco nos 25 minutos de estudo. Isso vai colocá-lo em modo difuso e o ajudará a descansar, para então retomar o aprendizado com mais eficiência.
A sugestão é fazer esse procedimento quantas vezes forem úteis ao longo do dia para manter a motivação.
Explicar a um amigo ou escrever pontos-chave do aprendizado também ajudam o cérebro a guardar informações.
Mas talvez você se pergunte: para que estudar na segunda-feira se a prova é só na sexta? Oakley explica que deixar tudo para a última hora atrapalha o cérebro na hora de aprender.
Aprender, na prática, consiste em criar novas (ou mais fortes) correntes cerebrais. Quanto mais nos dedicamos a coisas novas, mais criamos correntes no cérebro. Quanto mais praticamos essas coisas e acrescentamos complexidade ao aprendizado, mais fortes e compridas ficam essas correntes.
Se você deixa o estudo para a última hora, não dá tempo para o seu cérebro fortalecer as correntes cerebrais — ou seja, para aprender de fato. O cérebro precisa, inclusive, de noites de sono para "ensaiar o que aprendeu durante o dia".
"Tempo e treino trabalham juntos para ajudá-lo a consolidar as ideias no seu cérebro. Se o tempo é curto, você não consegue criar novas estruturas no cérebro e ainda perde energia preocupando-se com isso", agrega Oakley.
"Quando aprendemos algo novo, precisamos revisar logo, antes que as espinhas dendríticas e as conexões sinápticas (termos técnicos que se referem à atividade em nossos neurônios durante a aprendizagem) comecem a desaparecer. Se elas desaparecerem, temos de começar o processo de aprendizagem todo novamente."

3. Esquece facilmente o que leu e aprendeu?

É comum a gente entender o conteúdo em aula, mas esquecê-lo quando vai estudá-lo em casa. Ou sublinhar o texto de um livro, mas mesmo assim não guardar na cabeça o que está escrito nele.
É que quando não praticamos o conteúdo, não focamos profundamente ou não damos tempo para ele ser assimilado, as conexões entre os neurônios do cérebro relacionadas àquele conhecimento podem facilmente desaparecer.
Jovem fazendo exercício de matemáticaDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionOlhou a solução de um exercício de matemática e acha que entendeu o conceito? Então pratique-o. Apenas ler a solução não vai consolidar o entendimento no seu cérebro
"Não se engane: quando você apenas lê suas anotações, a informação não entra na cabeça", diz a autora.
Para isso, Oakley ensina uma técnica chamada de "recordar ativamente", que significa trazer ideias-chave de volta à mente.
Funciona assim: leia com calma o texto e anote, na margem ou em outro papel, uma ou outra ideia que você achar crucial no texto. Agora, o mais importante: depois de ler alguns trechos, tire os olhos do livro e veja se consegue lembrar, sem olhar, as ideias-chave que anotou. Repita-as na sua mente ou em voz alta.
Depois, tente lembrar a mesma informação em horários e lugares diferente — outra forma interessante de fixar a informação na nossa cabeça.
"Pesquisas mostram que recordar ativamente durante estudos garante resultados melhores na prova", diz o livro. Isso porque "a técnica não apenas coloca a informação na memória, como constrói o entendimento".

Dicas finais:

- Antes de dormir, faça anotações ou repense sobre o que aprendeu no dia. "Isso abastece seus sonhos e sua aprendizagem", diz o livro;
- Olhou a solução de um exercício de matemática e acha que entendeu o conceito? Então pratique-o. Apenas ler a solução não vai consolidar o entendimento no seu cérebro;
- Não estude com a TV ligada. O som captura parte da sua atenção, mesmo que você não esteja efetivamente prestando atenção na tela. A mesma ideia vale para o celular, que "rouba" as correntes cerebrais que deveriam estar focando nos estudos;
- Dormir bem (constantemente, e não só no fim de semana) ajuda a consolidar o que você já aprendeu e a abrir espaço para aprendizados novos;
Jovem dormindo com livroDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionÉ durante o sono que o cérebro consolida o que aprendemos durante o dia
- Exercício físico faz novos neurônios crescerem, além de proporcionar momentos ótimos para estimular o modo difuso do cérebro, essencial ao aprendizado;
- Comida saudável e nutritiva, como frutas e vegetais, melhora a capacidade do cérebro de aprender e recordar.
Barbara Oakley diz que sempre tivemos interesse em melhorar nosso aprendizado — a diferença é que agora conseguimos usar a neurociência a nosso favor.
"Durante séculos, tivemos pouco conhecimento sobre como o cérebro realmente aprende", diz a pesquisadora por e-mail à BBC News Brasil. "Com a neurociência moderna, isso mudou. Por exemplo, podemos ver o que está acontecendo no cérebro, (mostrando que) reler e sublinhar são tão ineficientes se comparados com técnicas ativas, como relembrar, que promovem crescimento neural. Quando você entende como seu cérebro trabalha durante o aprendizado, é muito mais fácil usá-lo de modo mais eficiente e evitar técnicas que não funcionem."
Mas ela lembra que isso não dispensa um esforço individual.


"Como o bom aprendizado é geralmente mais difícil, nossa tendência às vezes é cair nas 'ilusões de aprendizado', de fazer as coisas do jeito fácil. Por exemplo, reler a página de um livro e achar que pegamos as ideias principais, mas não pegamos. Ou olhar a solução de um exercício e achar que entendemos como resolvê-lo, mas não entendemos. (...) Se você souber como usar seu cérebro com mais eficiência, vai economizar muito tempo, evitar muita frustração e expandir seus horizontes de aprendizado — até mesmo para matérias para as quais você acha que não tem aptidão."
Professor Edgar Bom Jardim - PE

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Sars, Mers, Ebola, coronavírus – por que há cada vez mais surtos de vírus mortais pelo mundo?


Uma jovem usa máscara na Tailândia em meio ao temor da disseminação do coronavírus da ChinaDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionPessoas começaram a usar máscaras na Tailândia depois que seis turistas chineses foram diagnosticados com novo coronavírus
Nos últimos 30 anos, os surtos de vírus aumentaram, e doenças que se espalham rapidamente — como o coronavírus, na China, agora — se tornaram mais comuns. Mas por quê?
É fato que há mais gente no planeta do que nunca, a população mundial hoje é de 7,7 bilhões de pessoas. E estamos vivendo cada vez mais próximos uns dos outros.
Uma concentração maior de pessoas em espaços menores significa um risco maior de exposição a patógenos causadores de doenças.
Mapa de surtos em todo o mundo desta semana, registrado por HealthMap.orgDireito de imagemHEALTHMAP.ORG
Image captionSite Healthmap.org monitora surtos à medida que são registrados em todo o mundo: todos estes surtos estão acontecendo agora
O coronavírus, que surgiu na cidade chinesa de Wuhan, parece ser transmitido entre os seres humanos por meio de gotículas, quando as pessoas tossem ou espirram. Como o vírus sobrevive por um tempo limitado fora do corpo, as pessoas precisam estar relativamente próximas umas das outras para que se propague.
Em 2014, a epidemia de Ebola se espalhou por meio do contato direto com sangue ou outros fluidos corporais — e só pessoas bem próximas aos pacientes infectados poderiam pegar a doença.
Nem todos os vírus são transmitidos entre seres humanos. Mas, mesmo o vírus da zika, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, se beneficia quando estamos mais próximos. Os mosquitos prosperam em áreas urbanas onde podem se alimentar de sangue humano. E se reproduzem mais rápido em locais densamente povoados, úmidos e quentes.
Desde 2007, há mais gente morando em centros urbanos do que fora deles. Mais de quatro bilhões de pessoas agora vivem em 1% da massa terrestre do planeta.
E muitas das cidades para onde estamos nos mudando não estão preparadas para nos receber. Com isso, muita gente acaba indo para áreas de favelas, onde não há água limpa encanada ou sistema de saneamento básico, o que facilita a propagação de doenças.

Circulação de pessoas

Funcionários aplicam solução antisséptica em avião na Tailândia, em 2015, como prevenção à síndrome respiratória MersDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionFuncionários aplicam solução antisséptica em avião na Tailândia, em 2015, como prevenção à síndrome respiratória Mers
As viagens de avião, trem e automóvel permitem que um vírus atravesse meio mundo em menos de um dia. Poucas semanas após o início do surto do coronavírus, havia suspeitas em mais de 16 países.
Em 2019, as companhias aéreas transportaram 4,5 bilhões de passageiros — dez anos antes, apenas 2,4 bilhões.
Wuhan é a principal estação do serviço ferroviário de alta velocidade da China, e o vírus chegou no momento em que o país estava prestes a realizar a maior migração humana da história — mais de três bilhões de viagens são feitas pelo país na época do Ano Novo Chinês.
Uma das piores pandemias já registradas no mundo foi a da gripe espanhola em 1918 — ela eclodiu na Europa durante outro período de migração em massa, no fim da Primeira Guerra Mundial.
A gripe se espalhou enquanto os soldados estavam voltando para casa, em seus respectivos países, levando a doença com eles para comunidades que não tinham resistência ao vírus — o sistema imunológico delas foi pego completamente de surpresa.
Durante a epidemia de gripe espanhola em 1918, depósitos foram usados para manter as pessoas infectadas em quarentenaDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionDurante epidemia de gripe espanhola em 1918, depósitos foram usados para manter as pessoas infectadas em quarentena
Um estudo conduzido pelo virologista John Oxford diz que a origem do vírus poderia estar em um acampamento militar, pelo qual cerca de 100 mil soldados passavam todos os dias.
Mesmo antes das viagens aéreas, a epidemia se espalhou por quase todas as partes do mundo. Matou entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas.
Ainda assim, a gripe espanhola levou de seis a nove meses para se propagar ao redor do globo. Em uma época em que somos capazes de atravessar o planeta em um dia, um novo vírus da gripe pode se espalhar muito mais rápido.

Mais carne, mais animais, mais doenças

O Ebola, a síndrome respiratória aguda grave (Sars, na sigla em inglês) e o coronavírus surgido na China são todos vírus zoonóticos — ou seja, foram transmitidos aos seres humanos por animais.
O novo coronavírus parece ter se originado em um mercado em Wuhan, e as informações preliminares indicam que pode ter vindo de cobras.
Atualmente, cerca de três em cada quatro novas doenças são zoonóticas.
Nossa demanda por carne está aumentando a nível mundial, e a produção animal está se expandindo à medida que diferentes partes do mundo enriquecem e desenvolvem o gosto por uma dieta rica em carne.
Os vírus da gripe tendem a chegar aos seres humanos por meio de animais domésticos. Portanto, a probabilidade de animais infectados entrarem em contato com o homem também está aumentando.
O coronavírus é transmitido de animais selvagens para humanos. Na China, os mercados de carne e de animais vivos são comuns em áreas densamente povoadas. Isso poderia explicar por que duas das epidemias mais recentes se originaram lá.
Além disso, à medida que as cidades se expandem, somos empurrados para áreas rurais onde o homem entra em contato com animais selvagens.
A Febre de Lassa é um vírus que se espalha dessa maneira — quando as pessoas desmatam florestas para usar a terra para a agricultura, os ratos que vivem nessas áreas se abrigam em residências e levam o vírus com eles.

Só não estamos preparados

Profissional de saúde se prepara para tratar paciente com Ebola na Guiné em 2015Direito de imagemGETTY IMAGES
Image captionQuando Ebola atingiu África Ocidental em 2013, equipes médicas demoraram a detectar o vírus
Embora o mundo esteja mais conectado do que nunca, ainda não temos um sistema de saúde global capaz de responder a essas ameaças na origem.
Para conter o surto, dependemos do governo do país onde ele se originou. Se fracassam, o planeta todo está em risco.
Em nenhum lugar isso foi mais evidente do que na África Ocidental durante o surto de Ebola. Quando os sistemas de saúde locais na Guiné, Libéria e Serra Leoa falharam, o vírus se espalhou.
O Ebola matou 11.310 pessoas na África Ocidental.
Para a sorte do resto do planeta, trata-se de um vírus que se propaga relativamente devagar, mas os vírus respiratórios — como influenza ou coronavírus — se disseminam muito mais rápido.
Não ajuda o fato de que é mais provável que haja surtos em lugares pobres, com sistemas de saúde frágeis. A falta de regulamentação e educação sobre higiene e saneamento, assim como a alta densidade populacional, aumentam o risco.
Ao mesmo tempo, muitos destes países estão passando por uma fuga de cérebros de seus melhores profissionais de saúde.
Muito poucos sistemas de saúde estão dispostos a investir seus escassos recursos em surtos extremos de doenças que podem não acontecer. No caso da gripe suína, houve um lançamento global de medicamentos, o que foi criticado como uma reação exagerada porque o vírus acabou sendo muito brando.
Embora tenhamos tecnologia para desenvolver medicamentos capazes de combater alguns destes vírus, muitos não justificam o investimento das empresas farmacêuticas.
Mesmo sabendo que estão chegando, não podemos prever quando e onde a maioria dos surtos vai acontecer — e os surtos de doenças infecciosas quase sempre nos pegam de surpresa.

Boa notícia

Menina é vacinada contra Ebola no CongoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionCientistas desenvolveram vacina contra o Ebola
Embora haja mais surtos do que nunca, menos gente está ficando doente e morrendo por causa deles, de acordo com um estudo da Royal Society, instituição científica britânica.
Quando as economias crescem rapidamente, como vemos na China, o acesso à higiene básica e à saúde melhora. O mesmo acontece com os sistemas de comunicação, que disseminam recomendações sobre como evitar infecções.
Os tratamentos estão mais avançados, mais gente tem acesso a eles, e estamos ficando mais eficientes na prevenção. As vacinas estão sendo desenvolvidas muito mais rápido.
Embora o sistema de resposta global não seja de forma alguma perfeito, estamos ficando melhores em detectar e responder a surtos de doenças.
Um país como a China é capaz de construir um hospital com 1.000 leitos em uma semana, algo que seria inimaginável em 1918.

Professor Edgar Bom Jardim - PE

Iemanjá é Branca ou Preta? Por que a divindade de origem africana se transformou em 'mulher branca' no Brasil


Mulher negra observa estátua de IemanjáDireito de imagemALEXANDRE MACIEIRA/RIOTUR
Image captionPara historiadores, imagem ocidentalizada da entidade tem raízes na opressão das religiões dos negros escravizados e se massificou com sincretismo da umbanda
"Dois de Fevereiro, dia da Rainha / Que pra uns é branca, pra nóiz é pretinha", canta Emicida, na música 'Baiana', lançada em 2015, em referência à Iemanjá, divindade cultuada no Brasil como Rainha do mar.
Quase seis décadas depois de o baiano Dorival Caymmi gravar Dois de Fevereiro anunciando querer "ser o primeiro a saudar Iemanjá" na tradicional festa realizada anualmente na orla de Salvador e em dezenas de outras cidades do país, o rapper paulista celebrou a data trazendo para a música o debate que tem crescido nos terreiros de candomblé e umbanda: qual a cor dessa divindade que chegou ao Brasil com as religiões de negros escravizados, mas passou a ser predominantemente representada aqui como uma mulher branca, magra, de cabelos lisos, em um vestido azul?
Para historiadores e seguidores das religiões afrobrasileiras ouvidos pela BBC News Brasil, o que aconteceu com a representação de Iemanjá — orixá associado a rios e mares, símbolo da fertilidade, e que originalmente não era reverenciado em uma forma humana — foi um processo similar ao embranquecimento da imagem de Jesus Cristo.
O Jesus histórico, um homem que viveu há dois milênios no Oriente médio, muito provavelmente era moreno, baixinho e mantinha os cabelos aparados, como os outros judeus de sua época, acreditam especialistas. No entanto, a imagem que se sobrepôs ao longo dos séculos de dominação política e cultural europeia ao redor do mundo é de um homem de pele clara, barbudo, de longo cabelo castanho claro e olhos azuis.
Da mesma forma, entende Helena Theodoro, pesquisadora em história comparada da UFRJ, a imagem de Iemanjá branca tem raízes no processo de colonização do Brasil, que impôs uma visão de superioridade europeia sobre os povos indígenas e africanos. "Houve uma demonização das religiões negras e indígenas a partir do que a Europa situou como sendo civilizado, humano. Nesse contexto, o humano é europeu, branco de olho azul", nota ela.
Quadro de Iemanjá, da artista Valeria Felipe, mostra representação negra de Iemanjá, fora dos padrões de magrezaDireito de imagemREPRODUÇÃO/ACERVO PESSOAL CAROLINA ROCHA
Image captionQuadro de Iemanjá, da artista Valeria Felipe, mostra representação negra de Iemanjá, fora dos padrões de magreza
Essa dinâmica, continua Theodoro, provocou um processo de sincretismo religioso em que os escravos e seus descendentes aproveitavam as datas de festejos de santos católicos para cultuar seus orixás, usando inclusive imagens desses santos. Iemanjá, mãe de grande parte dos orixás, foi sincretizada com várias santas, como Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora dos Navegantes, ambas celebradas em 2 de fevereiro, e Virgem Maria, a mãe de Jesus.
"Foi uma grande luta de Mãe Estela de Oxossi, (falecida em 2018, por décadas ialorixá) do terreiro Ilê Axé Opó Afonjá, que se tirasse as imagens de santo do candomblé. Durante um determinado período isso era necessário porque a gente não podia excercer o nosso culto", lembra Theodoro.
A massificação da imagem de Iemanjá branca, representada em estátuas de gesso, porém, ocorre com o surgimento da umbanda, no início do século passado. Essa religião aprofundou o sincretismo no Brasil, unindo elementos do espiritismo, do cristianismo, do candomblé e também de culturas indígenas.
"Essa imagem de Iemanjá, como mulher branca, nasceu, muito provavelmente, no ambiente da umbanda, uma religião sincrética, surgida num contexto de 'desafricanização' da cultura afrobrasileira", respondeu por email à BBC News Brasil o cantor Nei Lopes, estudioso das culturas africanas e autor de diversos livros como "Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-africanos".
"Mesmo porque as modalidades de culto (de matriz africana) mais tradicionais não representam as divindades em forma humana, pois elas são, sobretudo, energias, forças cósmicas", ressalta ainda Lopes.
Casa de Iemanjá, na Praia do Rio VermelhoDireito de imagemTATIANA AZEVICHE/SETUR/GOVERNO DA BAHIA
Image captionCasa de Iemanjá, na Praia do Rio Vermelho

Orixá não tem cor?

Como explica o portal do Museu Afro Brasil, a escravidão de negros, regime de exploração que perdurou no Brasil por mais de três séculos até ser abolido em 1888, "colocou em contato as religiões de diferentes povos africanos, que acabaram por assimilar e trocar entre si elementos semelhantes de suas culturas". Foi nessa mistura que se formaram as religiões afro-brasileiras.
O candomblé "não é um único culto religioso, mas antes uma série de cultos estreitamente aparentados", nota ainda o site. Suas divindades levam os nomes de orixás, inquices e voduns, de acordo com o povo de origem, se ioruba, banto ou jeje, respectivamente. No Brasil, as três formas estão presentes, mas a nomenclatura orixá é que a mais se popularizou.
Diferentemente de Jesus Cristo, descrito no catolicismo como uma encarnação humana de Deus, Iemanjá representa no candomblé uma força da natureza, uma energia. Nesse sentido, o orixá não tem uma cor de pele. Para a historiadora e candonblecista Carolina Rocha, porém, é importante afirmar a negritude de Iemanjá. Segundo ela, representá-la como branca faz parte de um processo de "epistemicídio", conceito usado pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos para se referir à destruição ou inferiorização de conhecimentos, saberes e culturas pelo colonialismo.
"Todas as entidades, símbolos, forças que são cultuadas, apesar de nao terem tido um existência humana propriamente dita, elas têm um origem, têm uma história", afirma a pesquisadora, que está concluindo um doutorado sobre conflitos religiosos contemporâneos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Rocha — que em sua casa tem um quadro de uma Iemanjá negra da artista plastica Valeria Felipe — questiona não só a cor, mas todo a "estética ocidental" presente na imagem mais popular da entidade como uma mulher "super magra, de cabelos lisos". Ela lembra que Iemanjá, assim como outros orixás femininos (yabás) relacionados à água como Oxum e Nanã, representa a fertilidade, a abundância e a transmissão de conhecimento.
"Em termos de religião negra africana, Iemanjá, obviamente, além de ser uma mulher negra, é uma mulher de seios muito fartos, de quadris largos, isso também passa pela prosperidade feminina, pelo símbolo de fertilidade. Então, há um completo apagamento do que significa esse símbolo nessa imagem branca com barriga chapada", crítica.
"É algo muito cruel essa imagem que tem uma capilarização no tecido social imensa e nega uma origem, num projeto de racismo em que a padrão ocidental branco é colocado como o bonito. Parece bobagem falar de estética, mas não é, porque na verdade você está falando de autoestima e sem autoestima você não é nada", reforça.
Procissão em CidreiraDireito de imagemFAUERS
Image captionEm Cidreira, no litoral do Rio Grande do Sul, uma grande procissão em homenagem a Iemanjá e a à Nossa Senhora de Candeias ocorre anualmente na noite de 1º de fevereiro

Resistências ao debate

Carolina Rocha diz que hoje "existe um debate enorme dentro das religiões de matriz africana" sobre a representação da divindade, mas reconhece que "muitas casas (de candomblé e umbanda) não refletem sobre isso".
Em Cidreira, no litoral do Rio Grande do Sul, uma grande procissão em homenagem a Iemanjá e a à Nossa Senhora de Candeias ocorre anualmente na noite de 1º de fevereiro até uma estátua de mais de oito metros de uma mulher branca, de vestido azul e adorno com estrela sobre os cabelos negros escorridos.
"Nossa procissão é a maior do país, reúne em torno de 40 mil, 50 mil pessoas", afirma o presidente da Federação Afro Umbandista e Espiritualista do Rio Grande do Sul (Fauers), Everton Alfonsin.
Questionado pela reportagem sobre como refletia sobre representação branca de uma divindade com origem africana, Alfonsin também lembrou que os escravizados recorriam às imagens e datas festivas católicas para cultuar seus orixás e reconheceu que houve racismo nesse processo. Ele disse, porém, não ver necessidade de uma revisão disso dentro da umbanda.
"A estátua em Cidreira representa Iemanjá sincretizada com Nossa Senhora dos Navegantes, não tem nada a ver com a Iemanjá de matriz africana", argumentou, destacando ainda que a divindade não é chamada de orixá na umbanda, mas de caboclo.
Um dos organizadores da procissão à Iemanjá que tradicionalmente parte do Mercadão de Madureira, na Zona Norte do Rio de Janeiro, até Cobacabana, dias antes do reveillon, congregando pessoas de diferentes credos, Hélio Sillman, não vê racismo na representação branca da entidade. Ele, que gerencia a loja Mundo dos Orixás, diz que é "católico, com um pezinho na umbanda".
"Essa discussão não leva a lugar nenhum, se é branco, se é negro, se é isso, se é aquilo. É criar um problema sem ter", diz.
O evento realizado há 17 anos ocorreu apenas dentro do mercadão pela primeira vez em 2019. Segundo Sillman, a prefeitura do Rio não liberou um alvará para a carreata. A cidade é governada pelo evangélico Marcelo Crivella.
Estátua de IemanjáDireito de imagemALEXANDRE MACIEIRA/RIOTUR
Image captionRepresentação de Iemanjá foi processo similar ao embranquecimento da imagem de Jesus Cristo, dizem especialistas

"Convencimento deve vir pela educação"

Pesquisador da afrobaianidade e professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Gildeci Leite diz que o debate sobre a cor de Iemanjá está vivo nos terreiros baianos, mas ressalta que ainda hoje predomina a representação branca da entidade na tradicional festa de dois de fevereiro na praia do Rio Vermelho, em Salvador, proporcionalmente a capital mais negra do Brasil.
Numa das pontas dessa praia, há uma estátua da yabá com calda de sereia esculpida em uma pedra de cor clara. Ela está em frente a uma casa dedicada à divindade que abriga uma espécie de altar em que uma grande Iemanjá branca fica rodeada por flores e representações menores de variados tipos, inclusive algumas esculturas negras.
Leite considera fundamental problematizar a atual representação do orixá, mas defende que isso seja feito com respeito às outras representações, de forma devagar. "Eu penso que Iemanjá tem que ter representação negra, mas pra isso eu não preciso depreciar outras representações. Até porque isso tem que ser um processo de educação, de convencimento com encantamento, não com opressão. Já fomos oprimidos demais", afirma.
"Minha mãe biológica ainda associa Iemanjá com Nossa senhora da Conceição. E eu vou dizer que está errado? Não, porque isso é um processo de construção. Já os meus filhos biológicos sabem que Iemanjá é Iemanjá e Nossa Senhora da Conceição é Nossa Senhora da Conceição e que ambas merecem respeito", diz ainda.


Professor Edgar Bom Jardim - PE