sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Menina de 10 anos grava seu próprio estupro para que adultos acreditem em denúncia

Menina assustadaDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionCaso chocou a sociedade uruguaia e promotora pediu que ele sirva de alerta para que as crianças sejam escutadas com mais atenção
"É algo que deve envergonhar a todos nós", disse a promotora uruguaia Mariela Nuñez sobre um caso de abuso sexual que chocou seu país: o de uma menina de dez anos que gravou os estupros a que foi submetida pelo pai de uma amiga para que os adultos acreditassem nela.
A menina costumava brincar e escutar música na casa da amiga da mesma idade, na cidade de Artigas, norte do Uruguai.
Segundo Nuñez, o pai da amiga "aproveitava momentos em que a esposa estava trabalhando, mandava a filha ao mercado para ficar a sós com a menina e começava a tocar suas partes genitais".
O abuso se repetiu diversas vezes ao longo de um ano, tendo sido testemunhado pela filha do abusador em alguns momentos, de acordo com as investigações.
Tanto que as duas meninas articularam juntas o plano de gravar os estupros.
"(A filha) disse à amiguinha que sabia o que seu pai estava fazendo com ela, que tinha muito medo do pai e que ninguém acreditaria nelas, motivo pelo qual planejaram filmar tal situação, algo que conseguiram fazer depois de várias iniciativas", afirmou Nuñez, de acordo com a imprensa uruguaia.
Notebook como o distribuído pelo governo uruguaio aos estudantes do paísDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionMeninas gravaram abusos com a 'ceibalita', como é chamado o notebook distribuído pelo governo uruguaio aos estudantes do país

'Mais frequente do que acreditamos'

Em comunicado, a promotora uruguaia pediu que o caso sirva de alerta para que as crianças sejam escutadas com mais atenção.
"Esse ato valente de uma menininha estuprada deveria servir não apenas para que se faça justiça, mas sim para que toda a sociedade tome consciência de que essas coisas acontecem com mais frequência do que acreditamos e que as crianças não mentem, não inventam", afirmou, segundo a imprensa local.
"É um caso extremamente doloroso que mostra a visão das crianças sobre o mundo adulto. Essa visão de que não acreditamos em sua palavra, a ponto de (a menina) submeter-se voluntariamente à violação para registrá-la. Não dá para separar o lado de promotora do de mãe e avó. (...) As consequências desse caso são imensuráveis. Arruinou a vida de duas meninas."
Nuñez disse também que o acusado era "uma pessoa respeitada, de classe média, de quem ninguém suspeitaria uma atitude semelhante. Ele só negava (o estupro), mesmo diante das provas. Custou muito até que admitisse e não deu uma explicação. Eu mesma tive de sair do interrogatório para conter minha própria ira e cumprir com a minha função".

Laptop escolar

As meninas, que não foram identificadas, gravaram os abusos com uma "ceibalita", como são chamados os notebooks que o governo uruguaio entrega a todos os estudantes do país.
O caso chegou à Justiça depois que a menina mostrou os vídeos à tia. Em seguida, o pai da vítima denunciou os abusos.
O acusado, identificado apenas pelas iniciais JCSB, é um homem de 62 anos, sem antecedentes criminais. Ele foi preso. Se condenado, sua pena pode variar de dois a seis anos de reclusão.
Sua mulher e outro filho também chegaram a ser detidos, mas foram libertados, segundo a Justiça, pela ausência de "elementos que demonstrassem que eles tinham conhecimento dos fatos".
Menina cobrindo o rostoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionCrianças são comumente desacreditadas por adultos na hora de denunciar abusos, diz especialista
Especialistas no tema explicam que casos de abuso infantil muitas vezes ocorrem dentro de casa - e muitas vezes não são denunciados. Há também os casos que, mesmo reportados, deixam de ser punidos por falta de provas.
Segundo Andrea Tuana, da associação uruguaia El Paso, que combate a violência doméstica e sexual, "a realidade é que conhecemos pouco da magnitude real do problema", já que existe uma subnotificação de casos.
"Há uma grande quantidade de adultos que admitem ter sofrido abusos na infância e conta que, na época da denúncia, não acreditaram neles", diz ela à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
"O caso dessa menina demonstra que não acreditamos na palavra das crianças, não as escutamos. O problema é cultural: é não querer aceitar que o abuso sexual existe."
De BBC
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Como vive a única família brasileira na Coreia do Norte


Embaixada do Brasil em PyongyangDireito de imagemMRE
Image captionBrasil mantém embaixada na capital norte-coreana, Pyongyang, desde 2009; família de Schenkel mora nos andares de cima

"É um funcionário corajoso, cumprindo bem o seu papel, sobretudo para nos dar informações sobre aquilo que acontece num ponto nevrálgico da política mundial. E nós vamos mantê-lo lá", disse há duas semanas em Pequim o ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes, quando questionado sobre o possível fechamento da embaixada brasileira em Pyongyang, capital da Coreia do Norte.
Na ocasião, o país, liderado por Kim Jong-un, havia acabado de testar a poderosa bomba H, seu mais significativo teste nuclear até então. Depois disso, ainda lançou um míssil de médio alcance que sobrevoou o Japão.
O "funcionário corajoso" a que Nunes se referiu é o gaúcho Cleiton Schenkel, de 46 anos, atualmente encarregado de negócios da embaixada. Morando com a mulher, também servidora pública (em licença), e seu filho pequeno há pouco mais de um ano em Pyongyang, ele é o único integrante do corpo diplomático brasileiro no país que se tornou o principal foco de tensão global.

Schenkel e funcionários norte-coreanosDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionSchenkel foi chamado de 'funcionário corajoso' por chanceler brasileiro, Aloysio Nunes

Os três são, atualmente, a única família brasileira vivendo na Coreia do Norte. Fora eles, só há mais uma brasileira: a mulher do embaixador da Palestina. Ela nasceu no Brasil e tem cidadania, mas saiu do país ainda criança.
"Temos a exata noção da sensibilidade da situação. Não vivemos com medo ou em pânico. Mas não se pode negar que estamos apreensivos, especialmente por causa do atual momento", diz ele em entrevista por telefone à BBC Brasil, durante a qual se evitou tocar em assuntos políticos ou polêmicos.
Na semana passada, durante a Assembleia Geral da ONU em Nova York, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, fez um discurso com duras críticas ao regime norte-coreano. Segundo ele, "se os Estados Unidos forem forçados a defender a si mesmos ou seus aliados, não teremos outra escolha senão totalmente destruir a Coreia do Norte".
Trump também zombou de Kim Jong-un, que descreveu como "o homem-foguete em uma missão suicida".
O líder norte-coreano reagiu, dizendo que Trump pagaria caro por seu "discurso excêntrico".
"Seja lá o que Trump estivesse esperando, ele irá enfrentar resultados além de sua expectativa. Eu certamente e definitivamente irei domar o mentalmente perturbado senil dos EUA com fogo", afirmou Kim Jong-un, prometendo medidas "do mais alto nível".
Há 11 anos no Itamaraty, com passagens por Harare (Zimbábue) e Genebra (Suíça), Schenkel chegou a Pyongyang em junho do ano passado, pouco antes da saída do embaixador Roberto Colin, hoje em Tallinn (Estônia). Passou, então, a comandar sozinho a representação diplomática, que conta com seis funcionários locais e fica no térreo da casa de dois andares onde mora com a família. A embaixada brasileira foi inaugurada em 2009.
"Minha função é, predominantemente, de observação política. O Brasil é o único país das Américas com embaixadas nas duas Coreias. Nossa presença aqui nos permite formar uma visão própria sobre as questões na península", destaca.

Michel Temer e Kim Jong-unDireito de imagemAFP
Image captionComércio entre Brasil e Coreia do Norte totalizou cerca de R$ 34 milhões em 2016

Trabalho e lazer

Munido de seu inseparável chimarrão, Schenkel trabalha de 9h às 18h todos os dias, quando atualiza os colegas de Brasília sobre os desdobramentos da política norte-coreana. Ocasionalmente, tem reuniões com membros do governo ou com representantes dos outros postos e organizações internacionais no país.
Apesar das sanções internacionais, o Brasil é um dos países que ainda negocia com a Coreia do Norte. No ano passado, segundo dados do Mdic (Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços), o fluxo comercial foi de US$ 10,75 milhões (cerca de R$ 34 milhões em valores atuais) - bem aquém do auge de 2008, quando somou US$ 375,2 milhões.
No tempo livre, Schenkel dedica-se a assistir aos jogos de seu time do coração, o Grêmio, pela internet, ouvir MPB e passear com a família pelas ruas do bairro diplomático, onde a embaixada está localizada. A família também costuma frequentar um clube restrito à comunidade internacional, que conta com piscina, academia e área de lazer. O acesso ao bairro é minuciosamente controlado: só entra quem é diplomata ou funcionário das 24 embaixadas em Pyongyang.
São poucas as opções de lazer, contudo. Na vizinhança, há poucos restaurantes e um único centro de compras para estrangeiros, com barbearia, supermercado e lojas de roupa. Produtos internacionais, como queijos, vinhos e cervejas, estão disponíveis, mas em pequena quantidade. Ali também é possível se comunicar mais facilmente em inglês.
Tampouco há entretenimento ocidental. Cinemas, por exemplo, só passam filmes locais - sem legenda. Produções de Hollywood são vetadas.
A internet também não é completamente livre, mas sites como Google, Facebook ou Instagram não são bloqueados.
"Acabamos ficando bastante em casa pelas peculiaridades do país", conta.
Ele diz sentir falta da comida brasileira, especialmente do "churrasco".

Cleiton Schenkel
Image captionEstrangeiros não usam moeda local, o won, diz Schenkel (Crédito: Arquivo pessoal/Cleiton Schenkel)

"É difícil encontrar o tipo de corte que temos no Brasil. E as carnes não têm a mesma qualidade do que a nossa. Mas cozinhamos arroz e feijão para matar a saudade", explica.
Estrangeiros também não usam a moeda local, o won. Todos os gastos só podem ser feitos em euro, dólar ou yuan chinês. A única exceção fica por conta de uma feira - a Tong-il ("Unificação", em coreano) que acontece em um grande pavilhão fora do bairro diplomático, onde a família costuma comprar frutas e verduras frescas.
"Ali a gente se comunica basicamente por mímica. O valor é assinalado na calculadora. Tiramos o dinheiro e fechamos o negócio", resume.
Uma situação curiosa envolvendo a barreira do idioma, por exemplo, aconteceu quando Schenkel obteve sua permissão para dirigir no país.

Cleiton Schenkel
Image captionDiplomata gaúcho Cleiton Schenkel vive com mulher e filho pequeno em Pyongyang há pouco mais de um ano; eles são a única família brasileira na Coreia do Norte (Crédito: Arquivo pessoal/Cleiton Schenkel)

"No caminho ao local onde faria o teste, percebi que meu intérprete revisava anotações. Não sabia que haveria prova escrita. 'Mas eu não deveria ter estudado?', perguntou. 'Não necessariamente. Sou eu quem tenho de dar a resposta certa em coreano', respondeu o tradutor", lembra.

Limitações

Embora tenham livre circulação dentro do bairro diplomático, fora dele a movimentação é limitada - e usualmente monitorada e, dependendo do local, acompanhada por funcionários do governo norte-coreano. É preciso pedir autorização para frequentar os museus e até usar o metrô.
O mesmo acontece se a família quiser deixar Pyongyang para ir às praias na costa leste, por exemplo, a cerca de duas horas de carro da capital norte-coreana.
Para quem vem de fora, chegar à isolada Coreia do Norte também não é tarefa fácil. A imensa maioria dos voos parte de um único lugar: a China, a principal aliada do país.
Por essa razão e pela distância do Brasil, os Schenkels ainda não receberam nenhuma visita de parentes. A maioria das que ocorreram foi de colegas do Itamaraty servindo na Ásia.

Bandeiras do Brasil e da Coreia do Norte
Image captionSegundo dados da ONU, Brasil foi 8º maior importador de produtos norte-coreanos do mundo no ano passado

Diferença cultural

Schenkel conta que, além das peculiaridades locais, a principal diferença que sentiu ao chegar à Coreia do Norte foi o que chamou de "cultura militar" do povo.
"Eles são muito disciplinados. Existe uma cultura militar que é muito forte aqui e isso se reflete em toda a sociedade", conta.
"É normal passar de carro diante de um ponto de ônibus aqui e ver 50 norte-coreanos esperando pelo transporte em fila indiana. Outros povos asiáticos têm costume parecido, mas não deixa de surpreender", acrescenta.
Em meio à intensificação da guerra retórica entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos, Schenkel diz estar "acompanhando de perto" os últimos desdobramentos.
Por enquanto, o retorno ao Brasil não está nos planos do diplomata e de sua família.
Questionado pela BBC Brasil sobre um possível fechamento da embaixada brasileira em Pyongyang, o Itamaraty afirmou, em nota, que "dedica atenção constante àqueles postos nos quais possam vir a ocorrer situações capazes de colocar em risco nacionais brasileiros".
"O Ministério das Relações Exteriores mantém contato permanente com toda a rede de postos no exterior. Nesse contexto, os setores apropriados do Ministério vêm mantendo diálogo regular com o Encarregado de Negócios do Brasil em Pyongyang", informou o órgão.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Desigualdade atrapalha crescimento e corrói a coesão social, diz FMI

Desigualdade
Garotos chineses jogam cartas em uma vila para migrantes do interior do país em Pequim, em 7 de setembro. A desigualdade se alastra
Em duas manifestações diferentes realizadas nos últimos dias, o Fundo Monetário Internacional (FMI) destacou que a crescente desigualdade social é um fator desestabilizador para a coesão social e política dos países e também atrapalha o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) das nações.
Uma das indicações desta ideia pelo FMI está no texto Growth That Reaches Everyone: Facts, Factors, Tools ("Crescimento que atinge a todos: fatos, fatores e ferramentas", em tradução livre), publicado no blog do fundo em 20 de setembro. O documento é assinado por Rupa Duttagupta, vice-diretora do Departamento de Estudos Econômicos Mundiais do FMI, Stefania Fabrizio, segunda no comando do Departamento de Estratégia, Políticas Públicas e Revisão, e Davide Furceri e Sweta Saxena, economistas seniores do fundo.
No texto, o quarteto lembra que, nas últimas décadas, o crescimento da economia mundial elevou os padrões de vida e criou inúmeras oportunidades de emprego, tirando milhões da pobreza, mas destacam que a "desigualdade aumentou em diversas economias avançadas e permanece teimosamente alta em muitas que ainda estão se desenvolvendo". Isso é preocupante, lembram os economistas, pois pesquisas deixam claro que a persistente falta de inclusão social "pode afetar a coesão social e prejudicar a sustentabilidade do próprio crescimento".
O estudo destaca que a desigualdade salarial cresceu "fortemente" em muitos lugares e que no mundo desenvolvido isso se deu entre os anos 1990 e a metade dos anos 2000. Nas economias emergentes, a desigualdade salarial caiu em muitos países, mas ainda é muito alta. O Brasil é um exemplo evidente disso. Na segunda-feira 25, a ONG Oxfam Brasil mostrou que os seis brasileiros mais ricos detêm a mesma fatia da renda nacional que os 100 milhões mais pobres.
Além da desigualdade salarial, lembra o FMI, a falta de inclusão se manifesta por meio de acesso desigual a empregos e serviços básicos, como educação e saúde; por altas taxas de mortalidade em segmentos específicos da população (caso de jovens e negros no Brasil); pela falta de acesso ao sistema bancário e financeiro; e pela desigualdade de gênero, que "levou a diferenças persistentes em [níveis] de saúde, educação e renda entre homens e mulheres em grandes partes do mundo". Este também é o caso do Brasil, onde as mulheres trabalham em média 5 horas a mais que os homens e recebem 76% do salário.
O FMI lembra também que a tecnologia e a integração econômica trouxeram muitos benefícios a diversas economias, como aumento de produtividade e redução de preços, o que beneficiou os mais pobres, mas lembra que a tecnologia "aumentou a demanda quase que exclusivamente por trabalho qualificado, enquanto o comércio em algumas oportunidades deslocou os trabalhadores menos qualificados".
Os economistas afirmam que a resposta a esses problemas não é parar reformas que aumentem a produtividade e o crescimento, mas "focar em políticas que oferecem oportunidades para todos".
Entre os exemplos estão gastos em infraestrutura, como estradas, aeroportos, a malha energética e educação; a ampliação de acesso a serviços financeiros, o que facilita o consumo e o investimento; auxílio na busca por empregos; uma política fiscal que garanta crescimento inclusivo, reduzindo as desigualdades educacionais e de saúde entre diversos grupos, e que promova benefícios sociais, como transferências de renda para proteger os mais vulneráveis. Este último caso existe no Brasil, sob o nome de Bolsa Família.
Obstáculo para o crescimento
Cinco dias depois da publicação do artigos dos economistas, Tao Zhang, vice-diretor-gerente do FMI, destacou que a redução da classe média em economias avançadas, como os Estados Unidos, em meio ao aumento da desigualdade, está prejudicando o crescimento global. Ele fez as afirmações à agência AFP.
A previsão do fundo é que a economia mundial avance 3,5% em 2017, um patamar baixo em termos históricos. Para os EUA, a previsão é de 2,1%, mas Zhang lembrou que mais da metade das famílias norte-americanas têm rendimentos mais baixos do que tinham no ano 2000. Essa desigualdade de renda, afirmou Zhang, está pesando sobre o consumo global, reduzindo-o em cerca de 3,5% nos últimos 15 anos, disse ele. "Isso representa um importante obstáculo ao aumento da demanda", afirmou. "Todos nós estamos conscientes das ramificações sociais e políticas que acompanharam essas mudanças na distribuição da renda familiar", afirmou. 
Pobreza Filipinas
Contraste: em frente ao centro financeiro de Manila, capital das Filipinas, uma área de pobreza extrema (Foto: Noel Celis / AFP)
Assim como os quatro economistas do fundo, Zhang pediu programas específicos de assistência social, aumento da educação e formação profissional, salário mínimo mais elevado, apoio à assistência à infância, bem como maior assistência previdenciária aos pobres como formas de combater a desigualdade.
Mudança de postura?
O fato de o FMI destacar o papel deletério da desigualdade é significativo pois a instituição teve papel decisivo para desenhar as diretrizes da economia atual, como o foco prioritário no crescimento e a integração comercial.
Ao lado do Banco Mundial e do Tesouro dos EUA, o FMI é uma das instituições que compôs o chamado consenso de Washington que impôs um receituário único a diversos países que envolviam estabilização macroeconômica, abertura das economias ao comércio e aos fluxos de investimento e a expansão das forças de mercado na economia doméstica, por meio, por exemplo, de privatizações.
Este receituário, como o próprio FMI reconhece agora, produziu desigualdade e instabilidade política, um cenário para o qual diversos grupos políticos alertaram quando essas políticas começaram a ser aplicadas e seus efeitos, sentidos. Mais recentemente, muitos analistas colocam a crescente desigualdade como um dos fatores para o fortalecimento de alternativas políticas populistas, como Donald Trump nos Estados Unidos e o Brexit, no Reino Unido.
Em 2015, o FMI já havia alertado para os danos que a desigualdade trazia, com a publicação do documento Causas e consequências da desigualdade de renda em uma perspectiva global, assinado por cinco economistas. No relatório, o grupo contestava a ideia de que o enriquecimento dos mais ricos contagiaria o resto da sociedade, a chamada trickle down economics, base conceitual das políticas neoliberais que tomaram o mundo a partir das eleições de Margaret Thatcher e Ronald Reagan justamente por meio do FMI e do Banco Mundial.
No documento, os economistas defendiam políticas de distribuição de renda para retomar crescimento, como programas assistenciais e impostos sobre grandes fortunas.
Em 2016, o mesmo FMI trouxe novamente a questão à tona, com a publicação do artigo Neoliberalism: Oversold?, em sua revista trimestral Finance & Development. O texto aborda especificamente os efeitos de duas políticas neoliberais, a remoção das restrições ao movimento de capitais (liberalização das contas de capital) e a consolidação fiscal (“austeridade” para reduzir déficits fiscais e o nível da dívida) e reconhece que seu receituário tem efeitos nocivos no longo prazo, acentuando a desigualdade.
O fato de o FMI reconhecer o desastre das políticas que ajudou a implantar não significa, no entanto, que elas vão retroceder. Após a publicação do artigo Neoliberalism: Oversold?CartaCapital entrevistou o sociólogo alemão Wolfgang Streeck, autor do livro Tempo Comprado: A Crise Adiada do Capitalismo Democrático, no qual discute as causas e efeitos da crise de 2008.
Streeck destacou que o artigo era uma "expressão da impotência" do fundo diante da crise econômica. "Não há nada ali que possa ser uma sugestão para substituir o neoliberalismo como regime de acumulação de capital – e acumulação de capital é do que se trata o capitalismo", afirmou. Para Streeck, estamos em um mundo "no qual as velhas receitas não estão funcionando mais, embora, ao mesmo tempo, não tenhamos novas receitas plausíveis ou viáveis".
"O FMI sempre insiste na ideia de que os países devem honrar suas obrigações com os credores e não seria possível ser de outra maneira. Mas isso pode ser feito de duas formas: cortando gastos com os cidadão (austeridade!) ou estimulando o crescimento econômico", afirmou. "Na ausência de crescimento econômico, o FMI sempre irá pregar o caminho da austeridade. E uma vez que ninguém sabe como restaurar o crescimento econômico em condições socialmente aceitáveis, artigos como este, que parecem fascinantes, não passarão de artigos de pesquisa", disse.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Da violência doméstica no Pará à universidade nos EUA: a saga de uma jovem brasileira na mira da deportação

Valéria atualmente e quando pequena
Image captionValéria cresceu sob o medo constante de ser deportada | Foto: Arquivo pessoal
A decisão do presidente americano Donald Trump de revogar as autorizações de moradia e trabalho dadas por Barack Obama a mais de 750 mil crianças e adolescentes que entraram ilegalmente nos EUA trouxe à tona histórias dramáticas sobre o futuro de mexicanos e centro-americanos - principais beneficiados pelo Daca (Deferred Action for Childhood Arrivals), um programa criado em 2012 para regularizar a situação destes jovens, conhecidos como "dreamers" (ou sonhadores).
Mas o futuro é incerto não apenas para eles. Desde a revogação do decreto, em 5 de setembro, o grupo formado por 7,4 mil "dreamers" nascidos no Brasil, segundo os dados oficiais mais recentes (junho de 2017), voltou a dormir e acordar com o fantasma de oficiais de imigração batendo na porta com ordens de deportação.
A maioria mal fala português, nunca voltou ao Brasil e cresceu cercada por referências americanas - dos livros e colegas de escola, às comidas e aos programas favoritos de TV.
O Brasil ocupa o sétimo lugar no ranking de países de origem mais atendidos pelo Daca. No topo estão México (622,7 mil beneficiários), El Salvador (28,5 mil) e Guatemala (20 mil).
Os opositores do programa argumentam que ele dá anistia a imigrantes ilegais, autorizando estrangeiros irregulares a disputarem postos de trabalho que poderiam ser ocupados por americanos ou imigrantes em situação regular. Defendem também que, quem desrespeitou a lei, não deve se beneficiar de políticas lenientes. Alguns alegam ainda que esses filhos de imigrantes não são confiáveis e oferecem risco à segurança nacional.
Já quem o defende afirma que o Daca apenas evita a deportação imediata, sem garantir residência permanente ou cidadania futura. Seria, para estes, uma forma de assegurar condições minimamente decentes a pessoas que não escolheram atravessar a fronteira de forma irregular - e que comprovaram que estudam e não têm antecedentes criminais.
A iminência da deportação para um passado distante ou praticamente inexistente (muitos vieram para os EUA ainda bebês de colo) reacende traumas antigos - como os da estudante Valéria do Vale, que chegou aos Estados Unidos aos 7 anos, fugindo com a mãe e a irmã da pobreza e da violência doméstica no interior do Pará.
"Você era tão pequena. Deve ser difícil se lembrar do que aconteceu naquele dia, não?", pergunta a BBC Brasil à estudante, que na noite da travessia foi separada da família e entregue a estranhos para cruzar um rio na fronteira entre México e Estados Unidos, no fim de 2004.
Protesto na Califórnia pela manutenção do DacaDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionPlano do governo americano de extinguir o Daca levou a uma série de protestos no país
"Lembro de cada segundo como se fosse hoje", responde a estudante de ciências políticas de 19 anos, filha de uma faxineira.
Depois de guardar o segredo de sua ilegalidade por 12 anos e enfrentar preconceito de onde menos esperava ("sempre ouvi historias de brasileiros que delatavam brasileiros para a imigração"), hoje, Valéria é a primeira pessoa da família a chegar à universidade, graças ao Daca.

O caminho até chegar aos EUA

"Não tem como entender algo que você nunca viveu", adverte a estudante, enquanto conta sua história.
Após seguidas agressões do ex-marido e sem perspectivas de trabalho na pequena cidade de Jacundá, a 400 km de Belém (PA), a mãe de Valéria decidiu recomeçar com as duas filhas, então com 7 e 1 ano e meio de idade, nos Estados Unidos, onde a irmã já vivia legalmente.
"Minha mãe era vítima de violência doméstica. Em uma cidade pequena como Jacundá, não tem para onde ir. Não tem para onde crescer. E não tem lei", diz a atual moradora de Boston (Massachusetts).
Após ter o pedido regular de visto recusado, a família decidiu voar para o México. "O oficial (do consulado americano) viu que meu pai não viajaria e negou nosso visto. Aí minha mãe decidiu cruzar a fronteira (do México aos EUA) . Nenhuma de nós sabia bem o que isso significava", lembra Valéria, que intercala um português com sotaque americano com termos em inglês, como "you know" (sabe?) ou "whatever" (tanto faz).
"No México, passamos uma semana dentro de uma casa com um bocado de gente. Os coiotes (agentes ilegais que transportam imigrantes em condições precárias) ensinavam a gente o que teríamos que falar depois de cruzar."
"Ensinavam o quê?", pergunta a reportagem. "Eles formavam famílias de pai, mãe e filho. Então, a gente tinha que combinar para poder falar sobre um passado que não existiu. Como éramos três mulheres, me separaram de minha mãe e minha irmã, que era um bebê, e eu fui com desconhecidos", lembra a estudante.
Ela continua: "Fiquei num deserto um dia inteiro, cruzamos o rio e eu pensei que fosse me afogar. Fui nas costas da 'esposa' e a água estava no pescoço dela. Muito traumático."
Recebida por outros coiotes já nos Estados Unidos, Valéria ficou 20 dias sem ter notícias da mãe e da irmã.
"Foi bem emocionante encontrá-las de novo. Quando se cruza a fronteira, muita coisa pode acontecer. Tem o calor, tem fome e sede, tem gente sequestrada… Ela estava muito preocupada."

A vida sem documentos

Brasileira fala em palestra sobre os direitos dos imigrantes
Image captionBrasileira fala em palestra sobre os direitos dos imigrantes; 'Filho de imigrantes tem responsabilidades bem cedo', diz a jovem | Foto: Arquivo pessoal
"Nos EUA, o status migratório sempre vira uma arma contra a gente mesmo", diz Valéria do Vale.
Ela conta que, até os 16 anos, quando se tornou uma "dreamer", não contou o segredo a nenhum amigo, por medo de ser descoberta ou denunciada.
"As escolas não exigem a documentação, mas lá dentro ou fora a gente não podia contar pra ninguém. Até na comunidade brasileira a gente enfrenta um estigma. A gente ficava com medo do preconceito dos próprios brasileiros, porque sempre ouvia histórias de brasileiros que delatavam para a imigração. Muitos brasileiros chegam e pegam trabalho com brasileiros e depois não recebem, ou são ameaçados."
Durante o ensino fundamental, Valéria chorou quando não pode explicar, a uma professora, porque teve de faltar a um concerto musical e acabou sendo obrigada a assistir a uma aula em pé, como castigo.
"Filho de imigrantes tem responsabilidades bem cedo. Minha mãe estava trabalhando e eu tive que cuidar da minha irmã. A professora me deixou de castigo porque, diferente dos outros alunos, eu não tinha uma carta explicando por que faltei. Mas a minha mãe não sabia falar ou escrever em inglês. E eu não podia contar que estava cuidando da minha irmã, porque naquela idade isso também era ilegal."
"Ela me deixou tão exposta na frente dos outros alunos que eu não aguentei e chorei muito."
Considerada branca no Brasil, Valéria costuma ser encaixada na categoria "latina" nos Estados Unidos.
"Minha família é branca, a gente até parece americano, mas esquece que a discriminação vai além do olho. Quando estava aprendendo, eu tinha um sotaque muito forte. As pessoas faziam piada, tratavam diferente, me colocavam em outro lugar."

O decreto - e a reação à revogação

Aos 16 anos, Valéria decidiu compartilhar o aprendizado de imigrante com outros recém-chegados nos EUA.
Funcionária de uma organização social, ela se dedica a ensinar aos novatos os caminhos para a conquista de bolsas para faculdades e ajuda financeira.
Sobre a decisão de Trump de revogar o decreto do antecessor, a estudante diz que nunca se sentiu plenamente estável.
"O Obama não acordou um dia e decidiu criar uma política de imigrantes porque estava de bom humor. Isso foi fruto de uma luta muito grande de muita gente que perdeu muitas pessoas. A gente continua perdendo", diz.
"Eu sempre soube que, quando um presidente mais conservador viesse, a gente podia perder o Daca. Até com a Hillary isso poderia ter acontecido", continua.
Valéria posa com a família no dia de formatura no colégio
Image captionBrasileira posa com a família no dia de formatura no colégio nos EUA: 'Me sinto parte dos dois países'
Agora, ela luta para mudar a percepção de quem vive nos Estados Unidos sobre os imigrantes.
"Eu quero que a conversa sobre imigração seja feita de uma maneira diferente da feita por Washington, porque ela machuca a minha mãe, que até hoje faz limpeza e cria minha irmã de 15 anos, que estuda", diz.
"Hoje eu tenho consciência dos meus direitos e da minha importância aqui, e cada vez mais pessoas precisam saber disso."
Desde que cruzou a fronteira, nas costas da família desconhecida, Valéria nunca mais voltou ao Brasil.
"Nunca fui pro Brasil", diz.
"Me sinto parte dos dois países. Tenho orgulho da minha identidade brasileira e penso que ela nunca escapou de mim porque senti na pele o preconceito. Mas me identifico como uma americana", diz. "Meu lugar agora é aqui."

O futuro dos sonhadores

No início de setembro, o procurador-geral dos EUA, Jeff Sessions, anunciou o fim do Daca, criado por Obama para regularizar temporariamente imigrantes em situação ilegal que chegaram aos Estados Unidos quando eram menores de idade.
Para se qualificarem para o Daca, candidatos com menos de 30 anos eram obrigados a enviar informações pessoais ao Departamento de Segurança Interna do país, incluindo seus endereços e números de telefone. Eles tinham de passar por uma verificação de antecedentes do FBI que garantisse a ausência de antecedentes criminais. Também tinham de estar na escola ou ser recém-formados.
Desde o dia 5 passado, o governo não aceita mais pedidos para novos beneficiados pelo Daca.
Nos próximos seis meses, nada muda para quem já foi aceito pelo programa. Esse é o tempo previsto para que o Congresso dos EUA encontre uma solução legislativa para quem recebeu uma autorização temporária para permanecer no país.
Máscara de Trump em meio a protesto nos EUADireito de imagemREUTERS
Image captionTrump negocia no Congresso quais serão as regras que determinarão o futuro dos 'dreamers'
Há a possibilidade, por exemplo, de um programa com regras similares ser aprovado pelo Congresso americano e se tornar lei.
Se o programa for desmantelado, em contrapartida, os "dreamers" voltarão a ser ilegais e perderão suas licenças de trabalho, seguro de saúde e, em alguns Estados, suas carteiras de motorista, correndo o risco de serem deportados a qualquer momento.

Da BBC Brasil em Washington

Professor Edgar Bom Jardim - PE