quinta-feira, 6 de março de 2025

Segurança da Europa em jogo: líderes se reúnem para reagir a políticas de Trump





Fileira do alto, a partir da esquerda: primeiro-ministro sueco, Ulf Kristersson, chanceler alemão, Olaf Scholz, primeiro-ministro norueguês, Jonas Gahr Store, primeiro-ministro tcheco, Petr Fiala; Fileira do meio, a partir da esquerda: primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, presidente do Conselho Europeu, Antonio Costa, primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau; Fileira da frente, a partir da esquerda: presidente finlandês, Alexander Stubb, presidente francês, Emmanuel Macron, primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e primeiro-ministro polonês, Donald Tusk, posam para uma foto de família durante uma cúpula sobre a Ucrânia, em Londres, em 2 de março de 2025

Crédito,PARSA/EPA-EFE/REX/Shutterstock

Legenda da foto,No fim de semana, o primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, organizou o que ele chamou de 'coalizão dos dispostos'

Líderes europeus se reúnem nesta quinta-feira (06/03) em Bruxelas, na Bélgica, para discutir como aumentar as forças militares da Europa e ajudar a Ucrânia na guerra contra a Rússia. A negociação acontece após o presidente dos Estados UnidosDonald Trumpsuspendeu a ajuda militar à Ucrânia na segunda-feira (3/3).

O ritmo implacável das mudanças em Washington pode ser vertiginoso. Não apenas para os consumidores de notícias, mas também para os políticos. A Europa está se esforçando para reagir de forma eficaz.

Desde a suspensão anunciada por Trump, houve um frenesi de atividades diplomáticas: telefonemas bilaterais de líderes tarde da noite, encontros europeus em Londres e Paris, reuniões dos ministros da defesa da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em Bruxelas.

Nesta quinta (6/3), os líderes da União Europeia (UE) fazem uma reunião de emergência da cúpula de segurança, em um momento importante na história da Europa


A maioria dos países europeus acredita que a segurança de toda a Europa, e não apenas a soberania da Ucrânia, está em jogo — com a Rússia buscando desmantelar o equilíbrio de poder voltado para o Ocidente, em vigor desde o fim da Guerra Fria.


Washington, que apoia a Europa em termos de segurança e defesa desde a Segunda Guerra Mundial, agora parece "não se importar com o destino da Europa", de acordo com Friedrich Merz, provável futuro chanceler da Alemanha, a maior economia do continente.

Mas o que todas as grandes reuniões e cúpulas europeias estão realmente alcançando?



Na reunião, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky - que havia sido acusado por Trump de não estar pronto para a paz - disse que quer, sim, paz e cessar-fogo, mas não às custas de "desistir da Ucrânia".

Recentemente ele havia dito, nas redes sociais, que há alguns passos que precisam ser tomados para chegar a um acordo de cessar-fogo.

O primeiro, diz, é uma trégua nas batalhas no ar e no mar e o segundo é a libertação de prisioneiros - como forma de estabelecer confiança.

Ele destacou a necessidade de estabelecer uma "confiança básica".

Zelensky se encontrou com o presidente francês Emmanuel Macron, que havia feito um discurso sobre o assunto na quarta. Há expectativa de que Zelensky se encontre com o representante americano Steve Witkoff em uma reunião na Arábia Saudita.

Compromissos de países europeus para fortalecer a segurança da Ucrânia estão em discussão.

O primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, que está assumindo a liderança na Europa em relação à Ucrânia, falou em uma "coalização dos dispostos", e membros do governo britânico dizem que há 20 países interessados em participar.

Apenas algumas horas antes de Washington suspender a ajuda militar, Starmer nunciou que era hora de "ação, e não de palavras". Enquanto isso, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse que a Europa precisa transformar a Ucrânia em um "porco-espinho de aço", com fornecimentos extras e urgentes de armas.

Mas será que o continente pode realmente agir como um só? A Europa é a soma de diferentes países, com orçamentos de tamanhos diferentes e políticas e prioridades internas diversas.

A Rússia repetiu que se opõe fortemente à presença de tropas europeias na Ucrânia após um eventual acordo - dizendo que isso seria uma "guerra direta".

Keir Starmer e Zelensky do lado de fora do número 10 de Downing Street

Crédito,PA Media

Legenda da foto,Keir Starmer recebeu Zelensky no número 10 de Downing Street, sede do governo britânico, no dia seguinte ao bate-boca no Salão Oval da Casa Branca

O objetivo da Europa

O objetivo da Europa ao tomar mais medidas de defesa da Ucrânia é duplo:

Primeiro, mostrar a Donald Trump que — nas palavras do primeiro-ministro britânico — a Europa agora vai fazer o "trabalho pesado" para se defender.

A Europa espera persuadir Trump a retomar o apoio militar à Ucrânia, e a manter o atual apoio de segurança à Europa como um todo, se ele acreditar que eles não estão mais "se aproveitando" dos Estados Unidos.

Segundo, reforçar urgentemente suas próprias defesas, e o apoio a Kiev de qualquer forma, se Donald Trump se afastar da Ucrânia e, mais adiante, da Europa de forma mais ampla em termos de segurança.

Não é só para Washington que a Europa sente que precisa provar algo.

A Rússia também está observando.

As diversas reuniões de emergência europeias de alto escalão e com grandes promessas precisam agora produzir resultados rápidos, impressionantes e práticos — caso contrário, aos olhos do Kremlin, a Europa vai parecer fraca e vulnerável.

Moscou já se vangloriou das "divisões" que vê na unidade ocidental.

Donald Trump diz que confia no presidente russo, Vladimir Putin, mas ele tem sido mordaz com os aliados da Otan, e chamou o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, de ditador.

A Rússia sabe que, apesar de todo discurso da Europa sobre se defender com determinação agora, qualquer especialista em segurança com quem você conversar reconhece que — pelo menos a curto e médio prazo — a Europa ainda precisa dos EUA.

É por isso que, na semana passada, em Washington, vimos o presidente francês e o primeiro-ministro do Reino Unido, separadamente, cortejando Trump.

Os EUA preencheram as enormes lacunas na defesa europeia, deixadas por anos de subinvestimento crônico após o fim da Guerra Fria.

O número de tropas na Europa diminuiu com o fim do serviço militar obrigatório na maioria dos países europeus. Os EUA têm cerca de 100 mil soldados e armas nucleares em várias partes da Europa sob a política de compartilhamento nuclear da Otan. Muitos deles estão na Alemanha, uma grande potência europeia não nuclear, que teme ficar gravemente exposta à Rússia caso Donald Trump retire seu apoio.

Se o Reino Unido e a França conseguirem reunir o que eles chamam de "coalizão dos dispostos" — países europeus que aceitam enviar até mesmo um número modesto de tropas de manutenção da paz para a Ucrânia assim que um cessar-fogo for acordado —, isso poderia sobrecarregar os Exércitos europeus e expor lacunas nas defesas da Otan.

É por isso que a Polônia não está disposta a enviar tropas para essa "coalizão".

O país afirma que precisa manter os soldados em casa para se defender da Rússia. E também espera fervorosamente que os EUA não retirem suas tropas do leste europeu.

Trump e Zelensky no Salão Oval da Casa Branca

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Os EUA interromperam o envio de ajuda militar a Kiev após um encontro dramático entre Donald Trump e Volodymyr Zelensky, na semana passada, na Casa Branca

Recursos militares

Mas a Europa também depende dos EUA para obter recursos militares que garantam o bom andamento das operações. Esses recursos são conhecidos como "facilitadores".

A Ucrânia depende muito da inteligência dos EUA, por exemplo, para manter uma posição forte contra a Rússia.

Mas, na quarta-feira (5/3), o jornal Financial Times informou que os EUA haviam suspendido o compartilhamento de informações com Kiev, em uma medida que poderia afetar seriamente a capacidade dos militares ucranianos de atacar as forças russas.

Qualquer força europeia de manutenção da paz ou de "garantia" na Ucrânia precisaria do apoio dos EUA para estabelecer um escudo aéreo sobre a Ucrânia.

A Europa carece de recursos de reabastecimento aéreo, assim como de munições que possam derrubar as defesas aéreas na Rússia, se necessário.

Esses facilitadores "não podem ser comprados às pressas em uma rede de mercado atacadista", como disse um político europeu à BBC.

É por isso que o Reino Unido, a França e outros países da Europa estão tão interessados em manter o apoio dos EUA pelo maior tempo possível.

"Alguns de meus estimados colegas europeus provavelmente deveriam se abster de tuitar com raiva", disse à BBC um diplomata frustrado de uma nação importante.

Ele estava falando sobre a indignação europeia diante do tratamento dado ao presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, pelo presidente e vice-presidente dos EUA no Salão Oval da Casa Branca na última sexta-feira (28/2).

"A verdadeira liderança não se resume a desabafar online. Trata-se de encontrar as palavras certas para avançar de forma construtiva, por mais complicada que a situação seja."

"Precisamos do apoio contínuo dos EUA na Ucrânia e na Europa? Temos mais em comum com os EUA do que com a China? Estas são as questões fundamentais que precisamos ter em mente."

Outra questão fundamental para a Europa é, obviamente, quanto dinheiro é necessário, e com que rapidez, para reforçar a defesa de forma convincente.

Em relação à Ucrânia, a Europa poderia substituir facilmente o atual apoio dos EUA, se realmente decidir fazer isso.

A Alemanha é o maior doador de ajuda militar à Ucrânia depois dos EUA. Se outras potências europeias seguissem seu exemplo, diz ele, a defesa da Ucrânia estaria coberta em um futuro próximo.

A Alemanha e outros países do norte da Europa expressaram ressentimento em relação à França, por exemplo, que, segundo eles, fala muito sobre a defesa da Ucrânia — e é forte em liderança e estratégia — mas, na verdade, doou relativamente pouco.

Quanto aos gastos mais amplos com defesa, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, declarou na terça-feira que "a Europa está em uma era de rearmamento".

Ela sugeriu que o bloco europeu sozinho poderia mobilizar um total de 800 bilhões de euros (pouco menos de R$ 5 trilhões) para gastos com defesa, da seguinte maneira:

- Usando o orçamento conjunto de forma mais criativa;

- Fornecendo 150 bilhões de euros em empréstimos para beneficiar a defesa da União Europeia como um todo — por exemplo, em defesa aérea e antimísseis, em sistemas antidrones e mobilidade militar;

- Suspendendo as regras fiscais da União Europeia para permitir que cada país do bloco gaste mais em defesa.

Ursula von der Leyen

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,'A Europa está em uma era de rearmamento', afirmou Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia

Os líderes da União Europeia estão debatendo todas as proposta na reunião desta quinta — incluindo se os ativos russos congelados na Europa poderiam ser usados para financiar a Ucrânia.

Mas potenciais divisões europeias, algumas já conhecidas, pairam no ar. Muitas delas alimentadas pela política interna dos Estados membros.

A Hungria, próxima da Rússia e do governo Trump, é um entrave em praticamente todos os debates do bloco europeu para ajudar a Ucrânia. Bruxelas teme que a Eslováquia esteja seguindo pelo mesmo caminho.

Os países próximos às fronteiras da Rússia não precisam explicar aos eleitores por que os gastos com defesa precisam ser altos. As minúsculas nações bálticas expostas, Estônia e Lituânia, já gastam mais de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) em defesa. Elas querem aumentar este percentual para 5% em um futuro próximo.

Enquanto isso, duas grandes economias europeias, Itália e Espanha, geograficamente muito mais distantes da Rússia, não gastam o requisito mínimo da Otan de 2% do PIB em defesa.

Na Alemanha, na França e no Reino Unido, de acordo com um estudo realizado pelo grupo de pesquisa Focaldata, com sede em Londres, a maioria dos eleitores quer manter ou reduzir os gastos com defesa, preferindo que o governo se concentre em outras prioridades dos eleitores.

Mas o secretário-geral da Otan, Mark Rutte, está alertando os europeus para que acordem, e "sintam o cheiro do café" que está sendo preparado em Washington e Moscou.

Segundo ele, as nações europeias precisam gastar mais de 3% do PIB agora para que o continente deixe efetivamente de depender profundamente dos EUA.

Se Donald Trump se retirar completamente da Europa, sem falar da Ucrânia, isso significaria gastar de 4% a 6% do PIB, de acordo com especialistas em defesa: um terremoto político, social e econômico que os líderes europeus esperam não ter que enfrentar.

*com reportagem de Katya Adler, Editora de Europa da BBC

Professor Edgar Bom Jardim - PE

O que é a Quarta-Feira de Cinzas?




Quadro 'Quarta de Cinzas', aquarela de Julian Fałat, feita no século 19

Crédito,Domínio Público

Legenda da foto,'Quarta de Cinzas', aquarela de Julian Fałat, feita no século 19

A Quarta-Feira de Cinzas é, tradicionalmente, a data que marca o fim da folia e o início de um tempo de recolhimento — como se fosse necessária uma fronteira entre a festa da carne e o período de penitência chamado de quaresma.

Para católicos praticantes, é uma celebração rica em significado e necessária para a preparação rumo à Páscoa, 40 dias mais tarde. Na prática, não se trata de um feriado nacional. Em muitas capitais, há ponto facultatativo para o funcionalismo público pela manhã. Os bancos retomam na maioria dos casos às 13h.

Nas missas, há um momento em que o padre e seus ministros abençoam cada um colocando um pouquinho de cinzas sobre a cabeça ou fazendo uma cruz na testa. Há duas possibilidades de frase a serem ditas neste momento, cabendo ao sacerdote decidir. “Convertei-vos e crede no Evangelho” é um lembrete da necessidade cristã de mudança de vida, de abrir mão dos prazeres em prol de uma experiência mais próxima de Deus; “Das cinzas vieste, às cinzas retornarás” recorda a brevidade da vida.

“As duas possibilidades são válidas porque esses são os dois sentidos principais das cinzas”, afirma à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre, em Roma, e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, também em Roma.



“Esse dia nasceu como uma manifestação de devoção popular entre os séculos 3º e 4º. Os cristãos, nesse dia, para se prepararem para a quaresma, impunham sobre si as cinzas em sinal de penitência pública”, explica à reportagem a vaticanista e historiadora Mirticeli Medeiros, pesquisadora de História do Cristianismo na Pontifícia Universidade Gregoriana


Para o historiador, teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, a celebração surgiu “nas comunidades cristãs primitivas” como referência ao início do período de preparação para a Páscoa.

“Nasce junto com esse costume de se guardar os 40 dias do que chamamos de quaresma”, diz ele, à BBC News Brasil. “É um período que marca momentos de reflexão, de arrependimento, de renovação espiritual.”

Quadro do Papa Gregório

Crédito,Domínio Público

Legenda da foto,Papa Gregório, em imagem pintada por Francisco de Zurbarán

O rito foi oficializado na liturgia pelo para Gregório Magno (540-604), na virada do século 7º. “Foi chamada por ele de ‘capite ieiunii’, ou seja, o dia em que se começava o jejum”, pontua Medeiros.

A pesquisadora conta que, conforme relatos antigos, no início a cerimônia era realizada em Roma sempre “em silêncio” e pessoalmente pelo papa, “que organizava uma procissão nos arredores da Basílica de Santa Anastácia e Santa Sabina”.

Referências bíblicas


“As cinzas carregam duas simbologias. A primeira é a ideia da efemeridade da vida, do fato de que quando Deus disse [no Antigo Testamento] de que das cinzas viemos e às cinzas voltaremos, era para lembrar que o ser humano é pequeno diante da grandeza de Deus”, contextualiza Domingues.

“A segunda questão é a do arrependimento, da penitência. Aí é uma leitura cristã, já do Novo Testamento, porque Cristo, segundo os evangelhos canônicos questionou algumas tradições do mundo judaico […], o legalismo de alguns doutores da lei. [Nesse contexto], no período da quaresma ele começa com essa reflexão interna da importância do arrependimento, da penitência, de reformular o que nós somos e como estamos vivendo”, afirma Domingues.

Assessor da Comissão dos Movimentos Eclesiais da Diocese de Itabira, em Minas Gerais, o padre Eugênio Ferreira de Lima lembra à BBC News Brasil que inúmeras referências bíblicas baseiam esse costume litúrgico. “Nelas, o uso das cinzas aparece tanto para a purificação e a penitência quanto para lembrar a relatividade da vida”, interpreta ele.

No livro do Gênesis, o primeiro do Antigo Testamento, há a reprodução de um diálogo que Deus teria tido com Adão explicando a ele como seria a vida fora do Éden. “No suor do teu rosto comerás o pão, até voltares ao solo, pois dele foste tirado. Sim, és pó e ao pó voltarás”, diz o versículo.

Mais adiante, no mesmo livro, há uma passagem em que Abraão afirma “vou ousar falar ao meu Senhor, eu que não passo de pó e cinza”.

Quadro 'Quarta-Feira de Cinzas', óleo sobre tela feita pelo pintor Karl Spitzweg, no século 19

Crédito,Domínio Público

Legenda da foto,'Quarta-Feira de Cinzas', óleo sobre tela feita pelo pintor Karl Spitzweg, no século 19

Já no livro de Jó, um versículo orienta “repetis à exaustão máximas de cinza, torres de argila são vossas defesas”. No segundo livro de Samuel, diz-se que “Tamar tomou cinza e derramou sobre a cabeça, rasgou sua túnica de princesa, pôs as mãos na cabeça e afastou-se gritando”.

“Ele se agarra à cinza, seu coração enganado o desvia: ele não se verá libertado”, lê-se em Isaías.

“E também como sinal de arrependimento, em [no livro de] Jonas, o povo se veste de cinzas, cobre a cabeça de cinzas em sinal de arrependimento e penitência”, comenta o padre Lima. “Eles proclamaram um jejum e se vestiram de sacos, desde os grandes até os pequenos […]. Ele se levantou do trono, tirou o manto real, cobriu-se de saco e sentou-se sobre a cinza”, diz o trecho bíblico.

No livro dos Números, está escrito que “para este homem impuro, tomar-se à cinza do brasileiro do sacrifício pelo pecado”.

O sacerdote explica que, no Novo Testamento, há relatos que associam passagens de Jesus à simbologia das cinzas. Quando ele lamenta sobre as cidades da Galileia que não se renderam à sua palavra, diz que “cobertas de saco e cinza, elas se teriam convertido”, segundo narração do Evangelho de Mateus.

Na carta aos Hebreus, diz-se que “a cinza de novilha esparzida sobre os seres maculados os santificam, purificando-lhe os corpos”.

“Ou seja, as cinzas são o convite que a Igreja faz para refletirmos sobre a brevidade e a relatividade de nossa vida aqui na Terra, dizendo o que realmente somos: humanos que vamos morrer”, pontua o padre. “Somos chamamos a entrar nesse tempo da quaresma dedicando mais tempo para a palavra da Deus e para abrir o coração e perceber a presença do Cristo no meio de nós: o Cristo que passa fome, que é torturado, que é injustiçado, que tem necessidade de roupa, de casa, de comida.”

“É uma simbologia muito bonita”, comenta o teólogo Moraes. “Marca o início de um período que conclama ao autoexame, à autorreflexão, à busca por uma renovação espiritual.”

Fiel recebe cruz de cinzas na testa em celebração da Quarta-Feira de Cinzas nas Filipinas, em 2024

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Segundo a tradição as cinzas são obtidas da queima das folhas do domingo de Ramos do ano anterior

Do que são feitas

Segundo a tradição católica, as cinzas utilizadas nessa missa de Quarta-Feira que marca o início da quaresma são obtidas a partir da queima de um produto de outra missa, realizada no ano anterior. “Pela práxis oficial, as cinzas provém das folhas do domingo de Ramos, celebrado no ano precedente. Acrescentam a elas agua benta e incenso”, diz a historiadora Medeiros.

Domingues vê também simbologia nessa origem do material. “Eles queimam os ramos usados na liturgia do ano passado e essas cinzas são guardadas para o ano seguinte. Isso mostra o ciclo da liturgia e da vida cristã, que nunca acaba, fecha um ciclo e começa outro”, acrescenta ele.

Padre Lima conta que funciona assim: “uma quantidade razoável daqueles ramos bentos no Domingo de Ramos é guardada, conservada e queimada para se transformar nas cinzas que, depois, são abençoadas na missa e, no momento certo do ritual da Quarta de Cinzas, todos os fiéis são convidados a se apresentarem para serem assinalados com elas”.

Ele enfatiza que o momento não é de ânimo negativo. “Não é tristeza. É penitência, é conversão, é mudança de vida. É preciso lembrar isso”, comenta.

Cruz feita com cinzas em testa

Crédito,Jennifer Balaska/ Wikimedia Commons/Domínio Público

Legenda da foto,Fronte com a cruz feita de cinzas em missa de Quarta-Feira de Cinzas

Outras igrejas cristãs

De acordo com o teólogo e professor Moraes, a tradição da Quarta-Feira de Cinzas não foi incorporada pelas igrejas protestantes e evangélicas.

“As igrejas do protestantismo histórico, algumas são mais litúrgicas, outras menos. Todas reconhecem o período da Páscoa e, portanto, o período que a antecede, esses 40 dias da quaresma. Mas varia de intensidade [conforme a denominação religiosa]. Numa igreja litúrgica, às vezes o pastor cita que iniciamos o período da quaresma, algumas igrejas usam cores específicas”, conta.

“Já as evangélicas pentecostais e neopentecostais geralmente são muito pouco litúrgicas, é um espontaneísmo muito grande então dificilmente você vai encontrar uma valorização desse período de tempo em relação à observância da quaresma”, acrescenta ele.

Moraes afirma que, em geral, os cristãos não católicos não têm nenhum ritual próprio para a Quarta-Feira de Cinzas.

Este texto foi originalmente publicado em fevereiro de 2024.


  • Edison Veiga
  • Role,De Bled (na Eslovênia) para a BBC News Brasil
Professor Edgar Bom Jardim - PE

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Como era o 'Brasil holandês', território no Nordeste que ficou por 25 anos sob domínio dos Países Baixos


Ilustração de navio com bandeira das Províncias

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Os holandeses estiveram presentes em outras partes do Brasil, mas a ocupação de Pernambuco por 24 anos foi a mais longa


Em 14 de fevereiro de 1630, uma esquadra com cerca de 60 navios de guerra foi avistada na costa de Pernambuco. Há quem diga que transportava até oito mil mercenários.

As bandeiras de cor branca e laranja hasteadas na popa pertenciam às Províncias Unidas dos Países Baixos, atual Holanda.

Eles estavam preparados para tomar esses territórios dos portugueses, que, nessa época, faziam parte da União Ibérica e eram súditos do monarca espanhol Felipe 4°.

Os habitantes mal conseguiram se defender. A resposta da Espanha foi lenta, e logo os holandeses conseguiram capturar a então capital da Capitania de Pernambuco, Olinda, e, mais importante, o porto do Recife.





Enfraquecer o Império Espanhol

Mas esta era a segunda vez que os holandeses tentavam invadir o Brasil. Entre 1624 e 1625, eles ocuparam Salvador. Foi um ano de dominação até serem expulsos - mas que já mostrava suas intenções em relação ao Brasil.

Havia um grande interesse na Europa em explorar esse vasto território, ainda desconhecido.

Para os historiadores, a invasão holandesa de Pernambuco e de outras cinco capitanias no Nordeste açucareiro teve como objetivo minar a capacidade econômica da monarquia espanhola — e aumentar seu domínio sobre as rotas comerciais do Atlântico.

Foi uma época em que as Províncias Unidas dos Países Baixos estavam emergindo como uma potência comercial mundial com sua Companhia das Índias Orientais Holandesa.

Mas, no fundo, trata-se de um capítulo dos conflitos entre os holandeses e os espanhóis nos séculos 16 e 17.

Mapa do território que a colônia 'Nova Holanda' abrangia

Em 1580, Portugal ficou sem um sucessor. Aproveitando-se deste vácuo de poder, o rei Felipe 2° da Espanha reivindicou sua ascendência portuguesa, e tornou-se Felipe 1° de Portugal, criando uma união dinástica que durou décadas.

Durante anos, os holandeses foram parceiros dos portugueses no mercado de açúcar.

"Eles tinham uma participação importante no transporte, no financiamento e no refino do açúcar na Europa. E quando começaram as guerras entre Espanha e Holanda, e mais ainda quando houve a união das Coroas de Portugal e Espanha, surgiram os problemas", ressalta Cabral.

Entre outras coisas, o lucro que os holandeses obtinham no comércio com os portugueses permitia que eles financiassem a guerra contra a Coroa Espanhola.

Assim, em 1621, o rei Felipe proibiu as transações entre o Brasil colônia e a Holanda. E proibiu a entrada de navios holandeses nos portos.

"O império espanhol simplesmente impôs um embargo a eles e, assim, cortou seu acesso não apenas ao açúcar, mas a outras mercadorias", diz o historiador Bruno Ferreira Miranda, professo da Universidade Federal de Pernambuco.

Decisão de invadir as colônias

É neste momento que os holandeses elaboraram seus planos para tomar as colônias das Américas da Coroa Espanhola — e trataram de criar uma companhia comercial para financiar a invasão.

"Os holandeses queriam tomar todas as colônias da Espanha nas Américas, começando por Pernambuco, mas já estavam de olho no Peru, México, Caribe e no resto", diz Cabral.

"Eles começaram pelos pontos que pareciam militarmente mais fracos."

E é assim que chegaram a Pernambuco.

"Não foi fácil. Na primeira fase da presença holandesa —de 1630 a 1637 —, houve muitas escaramuças e confrontos para consolidar seu domínio. E apesar da tendência de glamorizar o período holandês, foi uma época marcada pela fome e pela violência", explica Cabral

Várias pessoas caminhando entre casas coloridas em Olinda, em direção à Basílica do Mosteiro de São Bento
Legenda da foto,Em Olinda e Recife, há poucos vestígios da ocupação holandesa

A fome constante atormentava os soldados dia após dia. E quando não era fome pelo fato de terem chegado poucas migalhas de pão da Europa, eram o escorbuto, a cegueira, a varíola, a hidropisia, a sífilis ou a tuberculose que enfraqueciam os homens.

"Dos muitos males sofridos pelo Exército da Companhia das Índias Ocidentais durante seus anos de atividade no Brasil, poucos se comparam às doenças", observa Ferreira Miranda.

'Brasil holandês' é misto

"Nós chamamos de Brasil holandês. Mas o fato é que os holandeses trouxeram para o Brasil um exército misto de holandeses, flamengos, franceses, ingleses, alemães, escandinavos, gente do exterior", acrescenta.

Entre 1637 e 1644, houve um período mais tranquilo, em que os conflitos diminuíram bastante.

Nessa época, Pernambuco era governado por um nobre alemão contratado pela companhia holandesa. A missão de governar a "Nova Holanda" foi confiada a Maurício de Nassau, que chegou a Recife em 1637 e lá permaneceu até sua renúncia e partida em 1644.

Busto de Maurício de Nassau

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Recife preserva um busto de Maurício de Nassau

Nassau transformou Recife em uma cidade verdadeiramente cosmopolita no litoral atlântico da América do Sul. Ele deixou um legado de produções artísticas que estão em museus da Europa, de pesquisas científicas e livros.

Recife tinha uma arquitetura especial e obras monumentais. Por exemplo, foram construídos dois grandes palácios. Um deles tinha torres de 60 metros de altura; em outras palavras, era algo completamente diferente do que se conhecia até então.

"Houve também um pouco mais de liberdade religiosa, ou seja, os católicos podiam praticar sua religião (apesar de os holandeses serem protestantes calvinistas), os judeus eram aceitos com culto público, com sinagogas abertas e tudo mais", lembra Cabral.

O melhor prefeito de Recife

"A memória é tão forte que ainda hoje se você perguntar a qualquer pessoa na rua, ela vai dizer que o melhor prefeito que Recife já teve foi Nassau. Ele era um personagem muito diferente de outros administradores coloniais e deixou lembranças muito boas", afirma.

O fim da ocupação holandesa no Brasil começou a milhares de quilômetros de distância dali, em Amsterdã. O mercado se viu inundado por açúcar, e os preços caíram drasticamente.

"Os preços despencaram a tal ponto que muitos dos comerciantes de açúcar foram à falência. E isso teve um efeito dominó", diz Santos Pérez.

Vista da parte histórica de Recife

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Desde o fim do século 16, a Espanha travava uma guerra em Flandres contra as Províncias Unidas dos Países Baixos

"Quando as empresas de Amsterdã começaram a falir, elas exigiram urgentemente o pagamento de seus empréstimos. Não em parcelas, mas imediatamente. E essa onda de exigências de (pagamento de) dívidas obviamente chegou a Pernambuco", afirma o diretor do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca.

Na colônia brasileira, vários homens fizeram seus cálculos. Eram os proprietários de engenhos de açúcar que deviam grandes quantias de dinheiro à companhia holandesa. E, de alguma forma, chegaram à conclusão: ou os expulsamos ou vamos à falência.

E assim começou uma rebelião. A impossibilidade de negociar facilmente suas dívidas e a cobrança de altos impostos por parte da Companhia das Índias Ocidentais, que administrava a colônia, levaram os portugueses e pernambucanos a agir.

"Os habitantes locais enfrentaram os holandeses que haviam se entrincheirado na cidade, e os hostilizaram tanto que praticamente não os deixaram sair de lá", diz Santos Pérez.

Rumo ao Suriname, Essequibo e Belize

Até a derrota final dos holandeses, em 1645, os homens que serviam no porto de Recife eram impedidos de deixar a cidade, e aqueles que se aventuravam a sair eram frequentemente emboscados por tropas portuguesas.

"O que vemos ao longo desses anos é que os holandeses não tinham capacidade bélica suficiente, digamos assim, para combater essa resistência local."

"Quando os holandeses perderam sua colônia no Brasil, conquistaram outra parte do continente sul-americano na costa do Caribe", escreveram Cabral e Santos Pérez em seu livro El desafío holandés al dominio ibérico en Brasil en el siglo 17 ("O desafio holandês à dominação ibérica no Brasil no século 17", em tradução livre).

"Suriname, Essequibo e Belize podiam não ser ilhas como Barbados ou Jamaica, mas ofereciam os mesmos benefícios: clima tropical, fácil acesso para embarcações, ventos alísios para fazer funcionar os moinhos e um bom solo."

"Estes fatores fizeram desta área um local ideal para o cultivo de cana-de-açúcar", acrescentaram.

Eles perderam Pernambuco, mas levantaram suas velas, zarparam e encontraram outros territórios desconhecidos para explorar.

Fonte:BBC
Professor Edgar Bom Jardim - PE