sexta-feira, 21 de maio de 2021

Brasileiros desempregados que lutam na Justiça para receber auxílio emergencial

Notas de dinheiro

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Passado um ano da instituição do auxílio, beneficiários ainda têm dificuldade para reivindicar parcelas não pagas

A versão reduzida do auxílio emergencial aprovada para 2021 excluiu milhões de brasileiros em situação vulnerável do benefício.

Além destes, contudo, milhares de pessoas que teriam direito à extensão não estão recebendo os pagamentos.



Entre os relatos ouvidos pela BBC News Brasil há queixas de falta de informação, excesso de burocracia, erros nos cadastros do sistema do Dataprev e dificuldade para reivindicar as parcelas não pagas.

Beatriz Pereira, de 37 anos, que mora em São Paulo, recebeu as últimas parcelas do benefício de 2020 em março de 2021.

O pagamento foi bloqueado no ano passado sob a alegação de que ela ganha mais de três salários mínimos - renda superior à máxima considerada para concessão do auxílio.

Ela não faz ideia de como essa informação foi parar nos sistemas do Dataprev, já que está desempregada há quatro anos. Beatriz se mudou do litoral paulista para a capital no ano passado para fazer um tratamento de saúde e vive sozinha. Como tem uma cardiopatia, não tem conseguido trabalhar.

Com a ajuda de um grupo no Facebook ela entrou com uma ação no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) e conseguiu a liberação das parcelas. A sentença foi dada em setembro. A União, entretanto, recorreu três vezes e ela só começou a receber o dinheiro em dezembro.

Em abril deste ano, ao entrar com o pedido para a extensão, ela se surpreendeu: o auxílio foi negado pela mesma razão - a alegação de que tem uma renda mensal superior a três salários mínimos.

Ela tentou fazer uma contestação no dia 24 de abril, mas, sem retorno, teve de entrar na Justiça novamente, o que fez no dia 10 de maio.

"Já intimaram a União, mas eles ainda não deram resposta."

Enquanto o processo tramita, diz ela, "a geladeira e o armário continuam vazios".

'Jogo de empurra'

A carioca Juliete dos Santos, moradora de Realengo, ainda tenta receber as parcelas do ano passado.

Chegou a retirar quatro pagamentos de R$ 600, mas o auxílio foi bloqueado sob a justificativa de que ela recebia benefício assistencial do INSS - o que, segundo ela, não é verdade.

Após meses brigando na Justiça e acessando todos os canais virtuais possíveis, da ouvidoria do Ministério da Cidadania ao site ReclameAqui, as parcelas foram aprovadas no dia 1º de fevereiro de 2021.

O problema: o site do Dataprev diz que as parcelas foram enviadas à Caixa, mas o banco não acusa o recebimento do dinheiro.

Celular com o aplicativo do auxílio aberto

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Beneficiários têm dificuldade para fazer contestação administrativa e veem na judicialização muitas vezes o único recurso para reivindicar pagamentos

Ela chegou a ligar para o Ministério da Cidadania, que disse não saber explicar o que tinha ocorrido e a instruiu a buscar a Caixa. Esta, por sua vez, afirmou que não lhe competia resolver o problema e que ela deveria procurar a Cidadania.

"Fica assim, esse jogo de empurra", diz ela.

"É um absurdo. Nós vivemos em um país onde não podemos nem reclamar quando somos lesados", desabafa.

Juliete tem dois filhos - um menino de 6 anos e um bebê de 11 meses. O marido, assim como ela, está desempregado.

Eles tentam pagar o aluguel de R$ 700 com o que ganham vendendo bolos informalmente e com os R$ 250 que o marido conseguiu receber do novo auxílio.

Há dois anos o casal tenta ser reincluído no Bolsa Família. Juliete foi retirada do programa quando conseguiu uma vaga com carteira assinada - mas perdeu o emprego em 2019.

Ela já foi pelo menos cinco vezes em postos do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) no Rio. Da última vez, disseram-lhe que ainda constava que ela estava recebendo seguro desemprego e que deveria "esperar sair do sistema".

10 meses na Justiça

A também carioca Juliana Barros Souza passa por situação parecida. Teve o pagamento suspenso após a primeira parcela no ano passado, entrou na Justiça e, 10 meses depois, em abril deste ano, conseguiu o direito de receber o que lhe era devido.

A União afirma que o dinheiro foi enviado à Caixa, inclusive o das parcelas de 2021, em teoria já aprovadas, mas o recurso nunca chegou à conta de Juliana. Na última semana ela teve de ir a uma agência da Caixa recolher os extratos mais recentes para anexá-los ao processo.

Juliana tinha um carrinho de pão de queijo no bairro de Vila Isabel, onde mora, mas teve de se desfazer dele por causa da pandemia. Parte do dinheiro foi usado para pagar as despesas domésticas. Ela tem vendido pão de queijo de casa, mas o que consegue ganhar não é suficiente para arcar com as despesas dela e dos quatro filhos.

Enquanto aguardam decisão judicial, mãe e filho vivem com R$ 180

Moradora de Nazaré das Farinhas (BA), Edilene Francisco Conceição teve o auxílio suspenso na quarta parcela.

A justificativa foi de que outras pessoas da família recebiam o benefício - mas a baiana mora sozinha com o filho de três anos.

Desde junho ela tenta receber as parcelas que faltam. Como a situação segue pendente, não consegue dar entrada no pedido de extensão de 2021.

"Nunca trabalhei de carteira assinada. Nem casa nem carro eu tenho… só o que eu tenho mesmo é meu filho."

Enquanto isso, ela e o pequeno Artur vivem com os R$ 180 que recebem do Bolsa Família. Edilene fazia faxina, mas, com a pandemia, diz ela, o volume de serviço diminuiu substancialmente.

Litígios em massa

O defensor nacional de Direitos Humanos André Porciúncula afirma que o auxílio emergencial tem sido bastante judicializado.

Um dos motivos se deve ao fato de que as informações do CadÚnico usadas para o cruzamento de dados no início do pagamento dos benefícios no ano passado eram de 2019, o que fazia com que parte dos dados estivesse desatualizada - caso a pessoa estivesse trabalhando com carteira formal na época em que fez o cadastro, por exemplo, mas tenha perdido o emprego depois.

"Nós também vemos casos clássicos de pessoas que tiveram cruzamento de dados equivocados", ele acrescenta, referindo-se aos relatos ouvidos pela reportagem.

Esses problemas acabaram gerando uma onda de "litígios em massa", diz o defensor, comparada àquelas que de tempos em tempos são vistos no Judiciário, relacionados a antigos planos econômicos ou a benefícios como o FGTS.

Fachada da Caixa com fila de pessoas com máscara na porta

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Defensoria Pública da União já prestou quase 700 mil atendimentos a brasileiros com dificuldade para receber pagamentos

Até o dia 10 de maio, 173.856 processos relativos ao auxílio emergencial haviam sido instaurados pelas defensorias. Foram quase 700 mil atendimentos à população que enfrentava algum tipo de problema para dar entrada ou receber o auxílio, ainda de acordo com os dados reunidos pela Defensoria Pública da União (DPU).

O defensor pondera que, diante do volume de processos, o Judiciário tem agido com celeridade - mas diz que entende que 6 ou 7 meses é muito tempo para quem está passando necessidade.

Sua recomendação a quem enfrenta hoje algum tipo de problema relacionado ao auxílio é que abra o processo de assistência jurídica pelo próprio aplicativo da defensoria, o DPU Cidadão. Hoje praticamente todas as ações estão sendo conduzidas de maneira remota.

O canal no YouTube do órgão detalha como navegar no aplicativo e dar entrada no procedimento legal para reivindicar os pagamentos.

Novo auxílio, velhos problemas

O auxílio emergencial foi instituído no ano passado como estratégia para proteger a população mais vulnerável do impacto negativo da pandemia sobre a economia.

Foram 9 parcelas pagas em 2020, sendo 5 de R$ 600 e outras 4 de R$ 300. A versão 2021, aprovada apenas em abril, é menor e pagará quatro parcelas que variam entre R$ 150 e R$ 375. O número de beneficiários foi reduzido de cerca de 68 milhões para 39 milhões.

Paola Carvalho, diretora da Rede Brasileira de Renda Básica, pontua que os erros observados durante a implementação do benefício no ano passado eram esperados, dada a magnitude do programa e sua urgência.

"Pra mim o que é grave é depois de um ano os erros se repetirem e em alguns casos se agravarem", ressalta.

A Rede é uma organização da sociedade civil que tem advogado pela manutenção do auxílio emergencial até o fim da pandemia. No ano passado, chegou a informar o Ministério da Cidadania sobre uma série de problemas que os beneficiários vinham enfrentando para receber os pagamentos.

Paola argumenta que parte dos problemas vem do fato de que a pasta não criou um canal de contato eficiente com a população, que tem na defensoria muitas vezes um primeiro e único recurso para tentar comprovar que são de fato elegíveis.

"A defensoria hoje está sobrecarregada - sem falar que ela não está presente em todos os municípios", acrescenta.

Desde o ano passado, a organização tem ajudado a orientar beneficiários que estão enfrentando problemas, encaminhando os casos às defensorias ou a escritórios parceiros que aceitaram atender sem custo.

Ela diz que é frequente que a União recorra das decisões judiciais, muitas vezes requisitando novos documentos que não têm relação com a negativa dada para a concessão do auxílio.

Em reunião com a pasta nesta semana, a organização pediu assento no Comitê Gestor de Risco do Auxílio Emergencial, que não tem representante da sociedade civil. Entre os membros estão Ministério da Cidadania, Dataprev, Caixa Econômica e Controladoria Geral da União. Para Paola, seria importante que as demandas da parte dos beneficiários estivesse colocada de alguma forma no grupo.

Questionado sobre o elevado nível de judicialização do auxílio emergencial, o Ministério da Cidadania enviou à reportagem a seguinte nota, reproduzida na íntegra:

O Governo Federal, diante da tarefa de construir e implementar o maior benefício social já instituído no Brasil, trabalha diuturnamente para aprimorar todo o processo de concessão do Auxílio Emergencial, pautado no compromisso de garantir o atendimento às famílias mais vulneráveis e, ao mesmo tempo, proteger os recursos públicos.

Nesse sentido, o Ministério da Cidadania tem celebrado desde o ano passado acordos de cooperação técnica com vários órgãos dos três Poderes, incluindo as áreas de investigação e controle, para troca de informações, conhecimentos e bases de dados oficiais, na estruturação de uma rede robusta de trilhas de auditorias.

Para assegurar a transparência na avaliação de todos os cadastros, o portal https://consultaauxilio.cidadania.gov.br/consulta/#/ informa os motivos pelos quais um requerimento foi negado. Também foi celebrado, em 2020, uma parceria com a Defensoria Pública da União (DPU) para que os cidadãos pudessem encaminhar os documentos comprobatórios, ampliando assim o processo de contestação do resultado.

O Ministério da Cidadania ainda modernizou a legislação que disciplina a concessão do benefício, aprimorando os critérios de elegibilidade, a partir de recomendações dos órgãos de controle. O objetivo é reforçar os pilares da proteção social e econômica aos mais vulneráveis e o compromisso com a responsabilidade fiscal.

Como resultado desse trabalho, somente no ano passado foram beneficiados cerca de 68,2 milhões de brasileiros, em um investimento de aproximadamente R$ 295 bilhões. A iniciativa foi considerada modelo de referência inovadora de ações no combate à crise humanitária, no Fórum Ministerial para o Desenvolvimento da América Latina e Caribe.

A eficiência da operação foi reconhecida pelo Banco Mundial. O Auxílio Emergencial foi considerado um dos melhores e mais efetivos programas de transferência de renda à população e se tornou referência internacional. Vale destacar ainda que a iniciativa, aliada ao Bolsa Família e ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), ajudou a reduzir em 80% a extrema pobreza no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas.

Neste ano, o Governo Federal também tem adotado as medidas necessárias para que o Auxílio Emergencial 2021 alcance o maior número de famílias em situação de vulnerabilidade, assegurando uma renda mínima para essa parcela da população, ao mesmo tempo em que, com responsabilidade fiscal, respeita-se o limite orçamentário estabelecido pela Emenda Constitucional nº 109/2021, no valor de R$ 44 bilhões.

A Medida Provisória nº 1.039/2021, que disciplina a operacionalização do benefício neste ano, além de aprimorar as regras de elegibilidade a partir de recomendações da Controladoria-Geral da União (CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU), instituiu critérios de permanência, com reavaliações mensais para verificar a renda a partir de vínculo de emprego e de recebimento de benefícios assistenciais ou previdenciários.

Os processamentos realizados neste ano pela Dataprev, empresa pública contratada para executar o cruzamento das informações, consultam 24 repositórios diferentes, que contam com temporalidades de atualização e finalidades distintas.

Até o momento, foram beneficiadas 39,1 milhões de famílias que atenderam aos critérios legais definidos na Medida Provisória nº 1.039/2021, num repasse da ordem de R$ 9 bilhões somente na primeira parcela. Cabe destacar que o Governo Federal ainda trabalha no processamento de cadastros a partir das informações mais recentes disponíveis nas bases de dados governamentais.

Considerando que as informações dos cidadãos possam não refletir a situação mais atual, também neste ano está disponível o sistema para a realização da contestação administrativa dos resultados. Com isso, os cadastros passam por novas análises com dados atualizados.

  • Camilla Veras Mota
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Professor Edgar Bom Jardim - PE

Conheça o Museu de Bom Jardim - Semana Nacional de Museus 2021



"Toda grande cidade tem museu. Em cada território existe um povo que tem história, memória, cultura e patrimônio. O Museu de Bom Jardim é o equipamento cultural que congrega um ambiente de salvaguarda, produção de encontros, celebrações, difusão de saberes e vitrine para nossa cultura, história e memória. Nosso museu é este espaço comunitário, democrático, múltiplo, aberto para o público se encontrar, ter acesso a sua história e memória, ser protagonista e valorizar nossa identidade cultural." *Professor Edgar Santos, criador do Museu de Bom Jardim-PE. Conheça o Museu de Bom Jardim - Semana Nacional de Museus 2021 CRÉDITOS Museu de Bom Jardim - PE Criação: Edgar Severino dos Santos - Museu de Bom Jardim - PE. Imagens, Arte e Edição: Akires Sabino da Silva. Música: Bráulio de Castro com participação de Doddó Félix. Cantor: Joaquim Gonçalves. Os direitos para uso e divulgação da música neste vídeo foi autorizado por Bráulio de Castro.
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sábado, 15 de maio de 2021

Quando o Estado mata nossos filhos a Justiça não acontece, diz mãe de João Pedro, um ano após o crime



João Pedro

CRÉDITO,REPRODUÇÃO/FACEBOOK

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João Pedro, 14, morto em 18 de maio de 2020; bala que o matou tinha mesmo calibre da usada pelos policiais que invadiram a casa em que ele brincava com os amigos

Já faz um ano desde que a professora de educação infantil Rafaela Coutinho Matos viveu os piores dias de sua vida. João Pedro, seu filho de 14 anos de idade, foi morto com uma bala de fuzil durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, enquanto brincava com amigos na casa dos tios.

O crime ocorreu no mesmo mês do assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, cujo vídeo do policial branco com os joelhos sobre o pescoço do homem negro gerou protestos em todo o mundo.

No Brasil, a comoção em torno do assassinato de João Pedro foi tão grande que, no mês seguinte ao crime, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibiu em decisão liminar (provisória) a realização de operações policiais em comunidades do Rio durante a pandemia do novo coronavírus, exceto em "hipóteses absolutamente excepcionais", com anuência do Ministério Público.

As cenas do pesadelo real de Rafaela voltaram com ainda mais força na semana passada, quando uma operação policial em no Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, terminou com a morte de 28 pessoas, e o título de mais letal operação da história.

Pela TV, as imagens do noticiário lembravam muito das cenas vistas por Rafaela no dia em que João Pedro morreu: o helicóptero da polícia sobrevoando a comunidade, as manchas de sangue e os buracos de bala pelas paredes. "Eu fiquei observando porque é a mesma polícia, a mesma polícia que tirou a vida do João", disse ela em entrevista à BBC News Brasil.

Em janeiro de 2021, a história de Rafaela e João Pedro foi contada em documentário exibido pela BBC News Brasil e pela BBC News. De lá para cá, a espera de Rafaela por Justiça apenas se prolongou, já que, desde então, nenhuma nova prova ou etapa da investigação avançou.

Se nos Estados Unidos o caso de George Floyd já foi solucionado - o ex-policial Derek Chauvin foi condenado pela Justiça americana e aguarda sentença a ser anunciada em junho - a morte de João Pedro continua sem punição. Rafaela conta que nada avançou desde outubro do ano passado.

Embora a bala encontrada no abdome de João Pedro tenha o mesmo calibre da usada pelos policiais que participavam a operação, de acordo com o laudo cadavérico, os três policiais investigados pelo crime continuam trabalhando normalmente não só em atividades de escritório, como é praxe em policiais investigados, mas na na Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), unidade de elite da Polícia Civil.

"Para nós mães que o Estado vem e mata nossos filhos, essa Justiça não acontece. Essa justiça é demorada, a impunidade está, sim, descarada", diz. "Porque a gente vê outros casos como o do Henry [Henry Borel Medeiros, de 4 anos, assassinado em março], em que não foi a polícia que cometeu o crime, e é um caso que já foi até solucionado em menos de um ano. A gente vê também o caso do George Floyd lá nos Estados Unidos, que foi também no mesmo mês do de João, teve toda essa comparação e é um caso que está se resolvendo também. Essa impunidade aqui no Brasil é muito difícil. A gente vê outros casos sendo solucionados e quando envolve a polícia é sempre muito difícil ser solucionado."

Rafaela Coutinho Matos
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Rafaela diz que ficou sem saber o que dizer quando Rebeca, a filha caçula de 5 anos de idade, perguntou porque a polícia matou o irmão dela

A BBC News Brasil fez contato, por telefone e por e-mail, com as assessorias das polícias Civil e Militar, bem como do governo do estado do Rio de Janeiro, mas não obteve resposta sobre as perspectivas de solução do caso ou sobre em quais operações os policiais suspeitos do crime já participaram este ano.

Além disso, a investigação sofreu alguns revezes: o principal deles foi a extinção, neste ano, do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp), que tem tem como principais atribuições atuar em "investigações penais relacionadas a crimes cometidos por policiais civis, policiais militares e agentes penitenciários".

Depois da publicação da reportagem, a assessoria de imprensa da Polícia Militar entrou em contato com a reportagem e informou que quem responde sobre o caso é a Polícia Civil, já que a ocorrência do caso João Pedro não teve participação da PM.

Há cerca de um mês, Rafaela diz que ficou sem saber o que dizer quando Rebeca, a filha caçula de 5 anos de idade, perguntou porque a polícia matou o irmão dela. "Foi até uma resposta difícil para eu dar, porque como você vai dizer que a polícia, que tem que proteger, tira a vida do irmão dela?"

Leia os principais trechos da entrevista, realizada por teleconferência em vídeo:

BBC News Brasil - O que você sabe da investigação sobre a morte de João Pedro?

Rafaela Coutinho Matos - As investigações estão paradas desde o dia em que houve a reconstituição [do crime], no dia 29 de outubro. De lá para cá estamos à espera do laudo da reprodução simulada, que até hoje não nos deram essa resposta. Conviver com essa espera, além de conviver com a dor da perda, é muito mais difícil. Você não consegue nem viver o seu luto, porque você tem que ir em busca por essa Justiça. Não consegue nem ter paz.

A gente aguarda uma resposta da Justiça, uma resposta do Estado, e até hoje não temos essa resposta. O que nós sabemos é que houve a extinção do Gaesp [Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública, do Ministério Público do Rio de Janeiro], foi retirada essa força do Gaesp que investigava os policiais, e isso tudo dificulta muito as investigações também.

BBC News Brasil - Como tem sido a relação com a polícia? Vocês receberam alguma informação sobre as investigações?

Rafaela - A polícia em momento nenhum procurou a gente para falar nada. Os defensores que estão nos apoiando sempre mantêm a gente informado, eles falam que também estão cobrando do Ministério Público e da Polícia Civil essa resposta.

BBC News Brasil - Na primeira semana de maio o noticiário foi tomado novamente pelo tema das operações policiais, com a operação na comunidade de Jacarezinho que acabou com 28 mortos. E justamente em um período em que as operações estavam restritas pelo STF desde a morte do João Pedro, no ano passado. Como foi para você acompanhar esse noticiário um ano depois da morte do João?

Rafaela - Na grande verdade as operações continuaram, mesmo com essa proposta de não haver as operações durante a pandemia, só em casos que tenha que ter mesmo. Em momento nenhum parou. Mas lidar com mais essa chacina, porque foi uma chacina; eu fiquei observando porque é a mesma polícia, a mesma polícia que tirou a vida do João.

É a mesma polícia que vai lá e limpa a cena do crime, que forja tudo. Fiquei pensando: é a Core [Coordenadoria de Recursos Especiais, unidade especial da Polícia Civil] que estava nessa operação, e até mesmo os policiais que tiraram a vida do João Pedro eles poderiam estar nessa operação, tirando outras vidas. [Nota da redação: questionada, a assessoria de imprensa da Polícia Civil não respondeu de quais operações os policiais participaram desde a morte de João Pedro]

Então quando não há uma punição da Justiça, esses policiais ficam aí nas ruas soltos, não são punidos, e tirando outras vidas. Isso é muito triste.

Policial em operação em comunidade

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Intervenções policiais no Rio de Janeiro deixaram um total de 1.245 vítimas em 2020

BBC News Brasil - Os policiais investigados que participaram da ação que resultou na morte do João Pedro estão trabalhando normalmente?

Rafaela - Continuam trabalhando normalmente. Não foram afastados em momento nenhum.

BBC News Brasil - Nós conversamos em agosto para um documentário da BBC, e na ocasião você falava sobre como a Justiça prioriza alguns casos em detrimento de outros, sobre a lentidão da Justiça. Hoje, um ano depois da morte do João, como você avalia essa falta de respostas até hoje sobre o crime?

Rafaela - Eu avalio que a Justiça para nós mães que o Estado vem e mata nossos filhos, essa Justiça não acontece. Essa justiça é demorada, a impunidade está, sim, descarada. Porque a gente vê outros casos , como o do Henry, que são pessoas que não foi a polícia que cometeu o crime, e é um caso que já foi até solucionado em menos de um ano.

A gente vê também o caso do George Floyd lá nos Estados Unidos, que foi também no mesmo mês do de João, teve toda essa comparação e é um caso que está se resolvendo também. Essa impunidade aqui no Brasil é muito difícil. A gente vê outros casos sendo solucionados e quando envolve a polícia é sempre muito difícil ser solucionado.

BBC News Brasil - Na época o caso do João causou muita comoção, justamente quando começaram também os protestos em torno da morte do George Floyd no mundo tudo. Essa reação das pessoas mudou de lá para cá?

Rafaela - Eu não vi tantas mudanças, mas eu vi que quando o STF suspendeu as operações durante a pandemia eu percebi que outras vidas foram poupadas quando estava se cumprindo. Mas de uns meses para cá eu tenho visto que realmente têm ocorrido outras mortes, né.

Não vi muita mudança mas acredito que com a morte do João, por ter causado toda essa comoção, essa sensibilidade, as pessoas estão vendo realmente como é que a polícia faz quando entra nas favelas, quando entra nas comunidades. Eles não querem saber se a pessoa é trabalhador, se a pessoa não é envolvida com nada, eles querem mesmo é tirar a vida, eles querem mesmo é ceifar vidas. Onde o Estado teria que proteger e zelar pelas vidas, e não é isso o que tem acontecido.

BBC News Brasil - Na época do documentário da BBC, no ano passado, você contava muito sobre a rotina de reconstrução da sua família, em continuar a vida, em como isso afetou a sua saúde mental, do seu marido, da sua filha. Como tem sido esse ano?

Rafaela - Tem sido bem difícil, né. Que a gente pensa 'ah, tá muito recente, tá muito difícil'. Mas parece que quanto mais o tempo vai passando, mais difícil fica. Porque a saudade aumenta, a ausência acaba sendo maior. Por que com esta questão de se aproximar um ano também, são 365 dias, né.

Eu não me imaginava nem um dia conseguir sobreviver sem o João. Então a gente tem tentado recomeçar. Eu voltei a trabalhar, tem sido difícil, mas é um momento também em que você acaba ocupando sua mente um pouco. Mas na volta para casa a realidade volta. A gente tem tentado seguir, mas tem sido difícil. Até mesmo com a nossa filha Rebeca, mudança de comportamento. Ficam alguns traumas, tanto com a Rebeca, quanto comigo, quanto com o meu esposo.

Protesto contra a morte de George Floyd

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Os protestos contra a morte de Floyd repercutiram muito além dos Estados Unidos

BBC News Brasil - A Rebeca tem hoje 5 anos, certo? Você conversa sobre o assunto com ela?

Rafaela - Olha, eu percebo que ela foge às vezes do assunto, se a gente quiser conversar com ela. Mas se ela ouve o nome do João Pedro, seja na televisão, ela logo para, ela quer ver, quer assistir. Mas às vezes ela me pergunta. Um mês atrás ela me perguntou por que a polícia matou o irmão dela. Foi até uma resposta difícil para eu dar, porque como você vai dizer que a polícia que tem que proteger tira a vida do irmão dela?

Daí o que veio a minha mente para falar no momento é que foi um erro que eles cometeram, eles erraram e eles não assumiram o erro que eles cometeram. Então às vezes quando eu vou falar 'ô filha, tá tão difícil', e ela fala 'por causa de João, né, mãe?' Mas ela procura o não conversar a respeito, mas fala algumas coisas de vez em quando.

BBC News Brasil - Atualmente, o que você espera da Justiça?

Rafaela - Eu espero que realmente a Justiça seja feita, que os culpados sejam punidos. Porque é isso que a gente espera, que eles vão a júri popular, que sejam presos, que sejam expulsos. Porque se eles cometeram o erro eles têm que ser condenados pelo erro que eles cometeram. Eles tiraram a vida de uma criança.

Quantas crianças mais vão ter que morrer e continuar essa impunidade? Eles fazem isso porque eles sabem que é a proteção de proteger esses policiais que cometem esses erros. Então esperamos sim a justiça, que eles sejam punidos.

  • Ligia Guimarães - 
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE