segunda-feira, 19 de junho de 2017

O Pai Nosso é uma oração universal?

Muitas vezes, repetimos práticas do Cristianismo dentro da escola acreditando que elas são comuns a todas as religiões. Mas em matéria de fé, nada é universal

Depois da publicação de nossa reportagem “Entre a cruz e a sala de aula”, capa da edição nº 302, de maio de 2017, recebemos uma dúvida de uma professora: o “Pai Nosso” é uma oração universal?  Ele estaria “liberado” para ser reproduzido no ambiente escolar sem ferir a fé de outras pessoas?
Em outros relatos e algumas visitas que fizemos a escolas pessoalmente, professores compartilharam conosco as práticas comuns de suas escolas, como ensinar crianças a cantar músicas religiosas e colocar objetos de uma religião específica em exposição pela escola.
Mais do que simplesmente responder “sim”, “não”, “pode fazer” ou “Não pode fazer”, convidamos você, educador, a refletir conosco. Não queremos fazer um certo ou errado, mas a caminhar juntos por um assunto delicado. Vamos nessa?
A Constituição
O Estado brasileiro é laico, de acordo com a Constituição de 1988. Isso significa que não temos uma religião oficial. Outros países têm – a nossa vizinha Argentina, por exemplo, tem escrito em lei que o catolicismo é a religião oficial do país.  
No caso brasileiro, o Estado não pode promover uma religião. Suas instituições públicas, como escolas, hospitais, câmaras de vereadores, o Congresso Nacional, por consequência, também não. Só que o mundo é mais complicado. Nos últimos anos, as bancadas cristãs no Congresso Nacional vêm defendendo a ideia de que o Estado é laico – mas as pessoas, não. Por esse argumento, o Estado não poderia promover nenhuma religião – mas também não poderia impedir as pessoas de se manifestarem a sua religiosidade, mesmo em ambientes públicos. Isso trava o debate sobre a retirada de símbolos religiosos de escolas e tribunais, por exemplo. Pelo argumento dos parlamentares religiosos, o Estado não pode colocar uma cruz, mas as pessoas podem. E, neste ponto, a conversa começa a se radicalizar.
O Pai Nosso
Na Bíblia – livro sagrado para os católicos e os evangélicos, religiões que são maioria no Brasil, de acordo com dados do Censo de 2010 -, o “Pai Nosso” (ou Oração Dominical, ou Oração Modelo) aparece em dois momentos, nos evangelhos de Mateus e Lucas. Na narrativa, Jesus Cristo usa os versos para mostrar aos seguidores como eles deveriam se dirigir a Deus em suas preces.
Há religiões, como a católica, que repetem o Pai Nosso ao pé da letra em seus cultos, em forma de reza. E há outras que preferem usá-lo como modelo para se inspirarem, fazendo suas próprias preces. O espiritismo kardecista, por exemplo, reconhece a figura de Cristo e utiliza o Pai Nosso, mas altera algumas frases. Assim, mesmo dentro das religiões que acreditam na santidade de Jesus Cristo, já há divergências sobre o uso do Pai Nosso nos cultos – e mesmo sobre que passagens que estão ou não nessa oração. Como a Bíblia teve muitas traduções, há divergências sobre qual a melhor forma da oração.
Portanto, o Pai Nosso não é universal, ao menos como prece, nem dentro do cristianismo.
Outras religiões
A Bíblia é dividida em dois grandes conjuntos de livros: o Antigo e o Novo Testamento. Os dois evangelhos (de Mateus e Lucas) fazem parte do Novo Testamento, aquele que conta a vida de Jesus Cristo. O Antigo Testamento conta a trajetória do povo hebreu, sua história, seus profetas e suas orações, e é aceito por outras religiões, como o judaísmo. O Novo Testamento, não. Ele é cristão por definição.
No judaísmo, o livro principal se chama Torá, com os cinco primeiros livros do Antigo Testamento, e é complementado pelo Talmude (constituído de tradições orais e comentários). No Islamismo, utiliza-se o Alcorão, que mistura passagens do Antigo Testamento com outros momentos de revelações recebidas pelo profeta Maomé em Meca e Medina. Já deu para ver a diversidade que existe mesmo em um terreno aparentemente homogêneo, não é mesmo?
E por que a confusão?
Nossa colonização cristã fez da religião católica não apenas a majoritária, mas a oficial do Estado até 1891. De certa forma, até hoje o catolicismo é muito forte em nosso cotidiano. Essa tradição acaba causando algumas confusões. Por acreditarmos que a ampla maioria da população compartilha dos mesmos credos, repetimos pequenas ações que envolvem a religião dentro dos ambientes escolares.
“A Educação brasileira foi uma extensão da Igreja por muitos anos, e isso se reflete nas posturas”, explica Simone Riske-Koch, professora da Licenciatura em Ensino Religioso, coordenadora do fórum das licenciaturas em Ensino Religioso e autora das duas primeiras versões da Base Nacional Comum. Tais posturas precisam passar por duas reflexões importantes: 1) Todos (absolutamente todos) os envolvidos estão confortáveis com a iniciativa? 2) No que essa atividade contribui com o processo de ensino e aprendizagem?
Na prática
Na primeira reflexão, lidamos com a dificuldade de pensar em um contexto que consiga englobar todas as pessoas. Por mais que o Pai Nosso seja rezado pela maioria das pessoas da escola, se uma única pessoa segue uma religião de matriz diferente da cristã, os atos de fé, apesar de serem bem-intencionados, podem acabar causando constrangimentos.
Em outro relato recebido por NOVA ESCOLA, uma educadora diz aproveitar os momentos de oração antes da aula para “acalmar a turma”. A professora Simone explica que certamente as orações têm essa capacidade de deixá-los mais serenos antes de iniciar os trabalhos, mas há outras maneiras de se fazer isso que não precisam envolver religião. “O professor pode fazer momentos de meditação que não estejam necessariamente ligados a uma fé”, sugere.
Com isso, não queremos pedir que você, leitor, renegue a sua fé. O que vale considerar é a reflexão sobre os momentos mais adequados para expressá-la. “Não temos como deixar nossa fé do portão da escola para fora, mas devemos gerenciar para que ela não interfira em nossa prática docente”, diz Simone. Uma sugestão, por exemplo, é aproveitar o texto do Pai Nosso e fazer uma pesquisa com a turma sobre outras orações fundamentais de religiões de outras matrizes – como a indígena, a africana, a budista, a islâmica, a judaica, etc. Em vez de praticar essas orações, a turma pode ler e estudar criticamente o significado daqueles versos, comparando semelhanças e diferenças entre as crenças. Eles poderão descobrir, por exemplo, que há vertentes da umbanda, uma religião de matriz afro e que poucos relacionam com a Bíblia, que rezam o Pai Nosso, enquanto outras, não.
Com respeito pela diversidade e compromisso com todos e todas, é possível falar de religião na escola sem deixar ninguém de fora.
Paula Peres. Nova Escola
Consultoria: Javan Ferreira, pedagogo, teólogo e pastor
Imagens: Deus Segundo Laerte / Laerte / 2005 / Editora Olho D'Água
Professor Edgar Bom Jardim - PE

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