segunda-feira, 25 de outubro de 2021

O legado dos 13 anos do PT no poder em seis indicadores internacionais




 


O aval do Senado à abertura do processo de impeachment contra a presidente, Dilma Rousseff, marca o fim de um período de 13 anos consecutivos em que o Partido dos Trabalhadores esteve no poder no Brasil.

Com o afastamento de Dilma, Michel Temer, do PMDB, assumiu a Presidência interinamente. A petista pode ficar afastada por até 180 dias para que o Senado realize o julgamento definitivo sobre seu mandato.

Nesse momento marcado pelo fim de um importante ciclo político para o país, a BBC Brasil procurou especialistas e levantou indicadores internacionais para entender o legado dos 13 anos de governo de PT. Afinal, no que avançamos - e no que retrocedemos ou ficamos estagnados?

Abaixo, listamos seis índices-chave que ajudam a explicar como o Brasil de hoje pode ser comparado a outros países e ao Brasil de 13 anos atrás:

1. Ranking das maiores economias:

Em 2002, o Brasil ocupava a 13ª posição no ranking global de economias medido pelo PIB em dólar, segundo dados do Banco Mundial e FMI. Chegou a ser o 6º em 2011, desbancando a Grã-Bretanha, mas voltou a cair.

Hoje, é a 9ª maior economia do mundo de acordo com esse indicador, que sofre grande influência do câmbio - e, portanto, foi bastante afetado pela desvalorização do real.

Se considerarmos o PIB medido por Paridade de Poder de Compra (PPP), que procura, justamente, neutralizar esse efeito do câmbio, temos que o Brasil ocupou a 7ª e 8ª posição no ranking ao longo dos últimos anos.

Em 2003, subimos para a 7ª posição, ultrapassando a França. Em 2008, fomos ultrapassados pela Rússia. E em 2011 voltamos para a 7ª posição com a queda da Grã-Bretanha.

"No caso do PIB, o que comprometeu o resultado dos anos do PT no poder foi de fato a gestão Dilma - e em especial seu segundo mandato", diz Alessandra Ribeiro, economista da Consultoria Tendências.

Ela diz que, em função do crescimento do governo Lula (o país chegou a crescer 7,5% em 2010), nos últimos 13 anos a média de expansão do PIB foi de 2,9%, contra 2,5% da média do governo Fernando Henrique Cardoso.

Colocando "na conta" do governo Dilma a recessão deste ano (consultorias esperam uma retração do PIB de 4% em 2016), a média cairia para 2,4%, ainda próxima do crescimento de FHC.

Ribeiro atribui essa desaceleração brusca em parte à má gestão, ao suposto fracasso da política econômica de Dilma e ao que vê como um excesso de intervencionismo estatal na administração petista, além da falta de reformas estruturais que poderiam melhorar o ambiente para negócios no Brasil.

Ela ressalta, porém, que, o contexto internacional também ficou menos favorável e que a crise política e a Lava Jato também tiveram um impacto negativo grande na economia.

João Augusto de Castro Neves, diretor para América Latina da consultoria Eurasia Group, concorda. "Na economia, a Dilma pegou um avião em piloto automático e em um céu de brigadeiro. Quando veio a tempestade, ficou claro que não sabia pilotar", diz.

Para Neves, os erros que derrubaram o PIB nos últimos anos - culminando em uma das mais graves recessões da história do país - começaram no segundo mandato de Lula.

"O Estado começou a gastar mais para fazer uma política anticíclica (tentar manter os investimentos e o consumo em níveis altos), mas isso saiu do controle. Agora precisaremos provavelmente de uma década para recuperar o que foi perdido com a recessão do governo Dilma."

2. IDH e combate a pobreza

A nota do Brasil no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, que era de 0,649 no início dos anos 2000, chegou a 0,755 hoje, o que indica uma melhora.

A pesquisa considera indicadores como a esperança de vida ao nascer, a expectativa de anos de estudo e a renda per capita. Como resultado, cada país recebe uma nota que vai de 0 a 1.

No relatório da ONU de 2015 sobre o índice, o Bolsa Família é retratado como uma espécie de modelo de programa social bem-sucedido. "Desde que o programa foi lançado, 5 milhões de brasileiros deixaram a extrema pobreza. E por volta de 2009 o programa havia reduzido a taxa de pobreza em 8 pontos percentuais."

Também é destacado o aumento da escolaridade no país e avanços no combate a miséria, o que vai ao encontro da avaliação de especialistas consultados pela BBC Brasil, que veem nas políticas sociais o maior legado positivo dos 13 anos do PT no poder no Brasil.

Angel Melguizo, chefe da unidade de América Latina e Caribe do Centro de Desenvolvimento da OCDE, por exemplo, destaca que nos últimos anos os índices de pobreza brasileiros caíram pela metade com a emergência de uma nova classe média.

Ele admite que parte desse contingente pode ter seus ganhos ameaçados pelo aumento do desemprego e recessão econômica, mas faz uma ressalva relativamente otimista:

"Dados do Banco Mundial que mencionaremos em nosso próximo relatório indicam que 43% dessa nova classe média brasileira seria o que chamamos de classe média consolidada, que tem trabalho formal, proteção social e mais condições de se proteger da crise. E que apenas 38% seria parte da classe média vulnerável, que pode voltar para a pobreza. O índice do Brasil é melhor que em outros países da região", afirma.

Para Otaviano Canuto, diretor-executivo para o Brasil no FMI, "políticas sociais para potencializar mudanças estruturais" são de fato "um grande legado" dos governos do PT.

Canuto defende, porém, que "há hoje necessidade de passar a limpo, ver relação entre custo e resultado do leque de políticas sociais que estão embutidas no orçamento". "Aquelas como Bolsa Família, que são demonstradas como eficazes e a baixo custo, devem ser intocáveis", opina.

3. Gini - Desigualdade

Outro indicador que também teve uma melhora foi o da desigualdade. O coeficiente Gini do Brasil, nos cálculos do Banco Mundial, passou de 58,6, em 2002, para 52,9, em 2013 (último dado disponível).

O Gini é um indicador que mede desigualdade de renda e vai de 0 a 100 (0 representa total igualdade).

Em 2014, um relatório da ONU sobre o tema também registrou uma queda significativa da desigualdade no Brasil na última década, com o Gini passando, nos cálculos das Nações Unidas, de 54,2 para 45,9.

Na época, a ONU destacou o efeito sobre a desigualdade do aumento real do salário mínimo - de 80% entre 2003 e 2010 - e dos esforços para a formalização do mercado de trabalho brasileiro, além dos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família.

O economista Diego Sánchez-Ancochea, diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos (LAC) da Universidade de Oxford, especialista em desigualdade, cita, como exemplo desses esforços de formalização do mercado, iniciativas como a Proposta de Emenda Constitucional sobre os trabalhadores domésticos.

"Já houve momentos em que a economia brasileira cresceu com um aumento da desigualdade, como nos anos 60 e início dos 70. Na época, o crescimento favoreceu os mais ricos e a alta classe média", diz Sánchez-Ancochea.

"Isso mostra que mesmo com o boom das commodities impulsionando a economia brasileira, a trajetória dos índices de desigualdade no país poderia ter sido diferente não fossem essas políticas adotadas (durante o governo do PT). O legado (do partido) nessa área é grande."

O economista de Oxford diz ser difícil prever o que vai acontecer daqui para frente, mas não descarta retrocessos nesse indicador. "Isso vai depender das políticas adotadas pelo novo governo, que chega prometendo fazer ajustes e cortes de gastos."

4. Percepção de corrupção

Em 2002, o Brasil ocupava a 45ª posição do ranking de percepção da corrupção da Transparência Internacional (TI), que incluía análises de 102 países. Em 2015, passamos para o 76º lugar entre 168 países - o que parece indicar estagnação.

O coordenador do Programa Brasil da TI Bruno Brandão diz, porém, que os índices dos dois anos não são comparáveis por que, além do número de países analisados, a metodologia da pesquisa também mudou em 2012.

"E desde 2012, nossos indicadores para o Brasil permaneceram relativamente estáveis, com a exceção de 2015, quando tivemos um aumento muito grande da percepção de corrupção que levou o país a cair do 69º ao 76º lugar no ranking, principalmente como efeito da Lava Jato", diz Brandão.

Segundo o coordenador da TI, a percepção da organização é de que o país avançou no combate à corrupção desde 2002 - embora a maior parte desse "avanço" não tenha ocorrido por mérito do governo.

"É complicado dizer se a corrupção ficou menor ou maior porque a corrupção é um fenômeno oculto - a única que aparece é a que foi pega. Mas para nós o que interessa é se há mais combate ao problema - e nesse ponto parece que o Brasil está de fato avançando", opina.

"Tivemos uma evolução institucional grande e um aumento da sociedade. Hoje temos a lei contra a lavagem de dinheiro, a lei anticorrupção, a da ficha limpa, de acesso a informação e etc. Instituições como o Ministério Público, a Polícia Federal e o próprio sistema judiciário também têm demonstrado grande autonomia."

O governo Dilma, na avaliação de Brandão, teria sido marcado por um certo "pudor republicano" que favoreceu o combate a corrupção em alguma medida, embora em algumas ocasiões esse pudor possa ter sido abandonado (por exemplo, se forem comprovadas as tentativas do governo de interferir na Lava Jato, como denunciou o ex-líder do governo no Senado Delcídio do Amaral).

Ele lembra o caso da Malásia, onde o procurador-geral foi destituído após um escândalo de corrupção envolvendo o primeiro-ministro.

"No Brasil, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, foi reconduzido ao cargo em meio à Lava Jato. O Supremo Tribunal Federal também tem agido com autonomia, apesar de muitos de seus membros terem sido indicados pelo PT - enquanto na Venezuela, por exemplo, essa corte mais parece um escritório de advogados do presidente (Nicolás Maduro)."

Já para Neves, do Eurasia Group, dizer que o governo do PT "deixou que se investigasse" a corrupção na Petrobras é "papo furado".

"Concordo que é difícil dizer se a corrupção caiu ou cresceu no governo PT. Mas é relevante o fato de o escândalo da Lava Jato ser o maior escândalo de corrupção da história brasileira", opina. "Também chama a atenção a maneira coordenada e sistematizada com que o esquema foi montado na estatal."

5. PISA - Educação

Em 2000, primeiro ano em que o Brasil fez parte do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), da OCDE (a organização dos países ricos), o país ficou em último lugar entre 32 nações.

O programa tem como objetivo avaliar e comparar o resultado de sistemas educacionais no mundo por meio de uma série de testes aplicados a estudantes.

No último relatório, publicado no final de 2013, agora com dados de 65 países (alguns ricos, como Japão, Suíça e Alemanha, o Brasil ocupou a posição 55 no ranking de leitura, 58 no de matemática e 59 no de ciências. Ou seja, comparativamente avançou em relação ao 2000, ainda que pouco.

Para Melguizo, da OECD, porém, é natural que a melhora tenha sido lenta porque a grande conquista do país nos últimos anos foi na questão da "cobertura do sistema", ou seja, no acesso à escola e universidades.

"Esse era um processo necessário. Falta agora avançar na questão da qualidade do ensino e também na educação para o trabalho. Mas não acho que devemos ver essa melhora lenta com pessimismo", diz ele."Na questão da cobertura o avanço foi significativo."

Castro Neves, do Eurasia Group concorda: "Considero a expansão do acesso a educação como parte do legado social positivo (dos anos de governo do PT), embora certamente falte melhorar a questão da qualidade."

6. Ambiente para negócios

A questão do ambiente para os negócios é outra área em que os especialistas veem certa estagnação como saldo dos 13 anos do governo petista - com deterioração na gestão Dilma.

Alguns índices internacionais parecem corroborar essa percepção. Em 2002, o país ficou no 46º lugar entre 80 países no ranking de competitividade global calculado pelo World Economic Forum (WEF), que considera dados sobre as condições de se fazer negócio pelo mundo.

Em 2015, ocupou a 75ª posição entre 140 países, após cair 18 posições em um ano em função de problemas como o aumento da pressão inflacionária, a alta da percepção de corrupção e a deterioração da confiança em instituições. Foi a pior classificação do país desde que o índice de competitividade global foi criado, nos anos 90.

O relatório de 2015 do WEF destaca, porém, o avanço do Brasil na questão do transporte aéreo e infraestrutura, apesar de esse ainda ser considerado um dos gargalos da economia brasileira. E cita o grande mercado consumidor do país como um dos fatores que ainda o torna atrativo para investidores.

"Nesses 13 anos - e principalmente nos anos de bonança econômica - o governo poderia ter aproveitado para fazer reformas estruturais, melhorar a questão tributária, reduzir a burocracia (para se fazer negócios no Brasil) e etc. Mas perdeu-se essa oportunidade", diz Neves.

"Hoje também parece claro que as políticas de campeões nacionais (conduzida pelo BNDES, que selecionou companhias para ajudar a torná-las mais competitivas globalmente, com créditos subsidiados e compra de participações acionárias) não foram uma boa ideia - criaram um ambiente de negócios em que era o governo quem escolhia perdedores e vencedores e, para se beneficiar, era preciso gritar mais alto."

Para Ribeiro, da Tendências, o ambiente para negócios piorou principalmente a partir de 2011. "Tivemos muitas mudanças nas regras do jogo, mais impostos para uns, subsídios para outros e tentativas do governo de intervir em determinados setores que não deram certo, como no setor elétrico", diz.

  • Ruth Costas*
  • Da BBC Brasil em São Paulo
  • 13/06/2016
Professor Edgar Bom Jardim - PE

História do Brasil atual: Os 13 anos de governo do PT






Em 13 anos no poder, Partido dos Trabalhadores patrocinou distribuição de renda histórica e desajuste recorde nas contas do país; renda dos mais pobres aumentou 129% e dos mais ricos, 32%. Só 24% aprovam a gestão petista. Conheça a visão documentada de uma análise de conjuntura do Brasil recente.





Vídeo produzido por Jornal Folha de São Paulo. Publicado em 13 de dezembro de 2015.

Professor Edgar Bom Jardim - PE

Era Lula chega ao fim com emprego recorde e risco inflacionário

História: Governo Lula

Lula em divulgação do PAC
Legenda da foto,

Em oito anos, consumo da classe média cresceu 6,8 vezes

Com uma taxa de desemprego de 5,7% em novembro - o melhor resultado desde 2002 - e um crescimento previsto de 7,5% do Produto Interno Bruto (PIB) para este ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chega ao fim de seu mandato com uma coleção de indicadores econômicos positivos – mas também deixa alguns desafios a sua sucessora, dentre eles inflação em alta e a perda de competitividade do produto nacional.

Economistas apontam o mercado de trabalho como uma das principais faces da expansão econômica da Era Lula. Além do recorde no emprego, a renda do trabalhador vem crescendo a uma média de 5% ao ano, já descontada a inflação.

“O movimento se intensificou a partir de 2005, com queda do desemprego, aumento do emprego formal e maior poder de compra”, diz Cimar Azeredo, gerente da pesquisa mensal de emprego do IBGE.

Segundo ele, o nível de desemprego caiu 45% nos últimos oito anos e as oportunidades são cada vez mais dominadas por pessoas de maior escolaridade, um efeito “positivo” e que demonstra a “qualificação” do mercado.

A participação dos trabalhadores com mais de 11 anos de estudo saiu de 16% do total em 2001 para 46% em 2009.

“Estamos vivendo um mercado vigoroso, sem picos”, diz Azeredo.

Crescimento econômico

Por trás da expansão do emprego e da renda está um crescimento econômico que, apesar de alguns percalços, está acima da média do país, considerando a inflação sob controle.

Nos oito anos da Era Lula, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro cresceu a uma média anual de 4%, enquanto nos oito anos anteriores essa expansão foi de 2,3%.

Os economistas fazem ressalvas na comparação, com o argumento de que o Brasil de Lula não apenas encontrou um mercado internacional mais “favorável”, como também se beneficiou das reformas implementadas durante o governo Fernando Henrique Cardoso.

Ainda assim, os ganhos são considerados “expressivos”. “Tivemos o restabelecimento da expansão econômica com geração de empregos, algo que não vimos na década de 1990”, diz Cláudio Dedecca, economista da Unicamp.

Os resultados dos últimos oito anos foram também turbinados por uma forte política de transferência de rendas, tanto por meio do Bolsa Família como também do aumento do salário mínimo acima da inflação.

Como conseqüência, a classe média – formada por famílias com ganhos de R$ 1.064 a R$ 4.591 – cresceu 44% em oito anos, tornando-se um dos principais símbolos da economia na Era Lula e a classe majoritária no país, representando mais de 50% da população.

Em oito anos, o consumo entre os integrantes da classe C cresceu 6,8 vezes e quase se igualou às despesas das classes A e B somadas, segundo o IBGE.

Desafios

O mesmo crescimento que marcou os anos Lula e fez disparar o consumo no país também deixa alguns desafios à nova presidente.

Se por um lado coube a Lula tirar a economia do marasmo e dar poder de compra a milhões de brasileiros, Dilma Rousseff terá a tarefa de “aperfeiçoar” esse processo, segundo economistas.

Dentre as prioridades estará a inflação, que voltou a assustar nos últimos meses e deve fechar o ano em 5,9%, pelas estimativas de mercado. Para 2011, a previsão é de 5,3%, o que coloca os dois valores acima do centro da meta estipulada pelo governo.

“Após os estímulos ao consumo no pós-crise, que foram acertados, espera-se agora que o objetivo da política econômica retorne para seu curso natural, que é a austeridade fiscal baseada na redução efetiva de despesas administrativas”, diz o economista-chefe da agência de risco Austin Rating, Alex Agostini.

Competitividade

Outro desafio para a futura presidente será o de estimular a competitividade do produto brasileiro no mercado internacional, que vem sendo prejudicada em função da valorização da moeda brasileira.

A previsão é de que as exportações cresçam 30% este ano, número que deve cair para 12% no ano que vem.

Um exemplo é o da indústria de transformação, que em 2005 registrava um superavit comercial de US$ 31,9 bilhões e chegou ao mês de junho deste ano com um deficit de US$ 13,9 bilhões.

“Existe uma certa preocupação sobre a perda de competitividade do produto brasileiro e com o forte crescimento das importações”, diz o analista-sênior para América Latina da Economist Intelligent Unit, Robert Wood.

“Como o consumo interno segue aquecido, vamos observar o quanto essas importações vão afetar a indústria nacional”, acrescenta o economista.

  • Fabrícia Peixoto
  • Da BBC Brasil em São Paulo
  • 27/12/2010
Professor Edgar Bom Jardim - PE

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Golpe de 1964: novo ministro da Defesa fala em celebrar aniversário 'no contexto histórico' - mas qual é este contexto?

História: Golpe Militar de 1964


Parada militar celebrando a independência do Brasil em frente à Candelária, no Rio de Janeiro, em 7 de setembro de 1972

CRÉDITO,ACERVO ARQUIVO NACIONAL

Legenda da foto,

Os anos após o AI-5 foram os mais violentos da ditadura militar; foto mostra desfile de 7 de setembro em 1972

"Eventos ocorridos há 57 anos, assim como todo acontecimento histórico, só podem ser compreendidos a partir do contexto da época." Assim começa a mensagem alusiva ao 31 de março de 1964 assinada pelo novo ministro da Defesa, Walter Souza Braga Netto, que assumiu o posto nesta semana após divergências entre seu antecessor e o presidente Jair Bolsonaro sobre o papel político das Forças Armadas.

Ao longo de pouco mais de 2 mil palavras, Braga Netto cita o cenário geopolítico polarizado na Guerra Fria, que em suas palavras representava uma "ameaça real à paz e à democracia" do país. Ele afirma que o movimento militar de 1964 que derrubou o governo eleito de João Goulart "é parte da trajetória histórica do Brasil" e "assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março".

Em 2019, Bolsonaro gerou forte reação ao determinar a celebração do golpe que instaurou uma ditadura no país, e o caso se transformou em uma disputa judicial. Dois anos depois, a demissão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo, e dos chefes do Exército, Aeronáutica e Marinha, e a nota de Braga Netto dão novos contornos à participação ativa dos militares na política nacional.

Fiadores da candidatura de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018, os militares deram força ao sentimento antipetista e antipolítica naquele pleito, apontam analistas. Vitoriosos, eles ocuparam a vice-presidência, ministérios estratégicos (inclusive com generais da ativa) e milhares de cargos comissionados no governo federal.

Em 2021, a pressão pública crescente sobre Bolsonaro por causa do agravamento da pandemia de coronavírus, que mata quase 4 mil pessoas por dia no Brasil e impacta duramente a economia, ampliou a cobrança do presidente por um posicionamento político mais ostensivo e mais alinhado das Forças Armadas.

Um episódio simbólico da divergência ocorreu em maio de 2020, quando Bolsonaro tentou apertar a mão de Edson Pujol, então comandante do Exército, e este lhe ofereceu o cotovelo, seguindo orientações internacionais para evitar a transmissão do vírus.

O gesto teria irritado o presidente. Enquanto Bolsonaro minimizava o coronavírus como uma "gripezinha", Pujol afirmava que a pandemia "talvez seja a missão mais importante de nossa geração".

Um dos principais pontos desse embate que culminou na demissão de Pujol e outros três colegas está entre cumprir políticas de governo ou políticas de Estado. Mas o que costuma atrair mais holofotes na imprensa é a defesa da ditadura militar por parte de bolsonaristas, com citações ao AI-5 (ato de dezembro de 1968 que fechou o Congresso e cassou liberdades individuais), negação de assassinatos e torturas e exaltações ao golpe militar de 31 de março de 1964, chamado de revolução ou movimento pelos militares.

O que foi o golpe de 1964?

A "ameaça comunista" e a suposta iminência de um golpe de Estado da esquerda costumam ser apontadas como justificativa tanto para a derrubada de Jango quanto para a instituição do AI-5.

Em 2019, a BBC News Brasil revelou que o governo Bolsonaro enviou um telegrama à Organização das Nações Unidas (ONU) afirmando que os 21 anos de governos militares foram necessários "para afastar a crescente ameaça de uma tomada comunista do Brasil e garantir a preservação das instituições nacionais, no contexto da Guerra Fria".

E acrescentou: "As principais agências de notícias nacionais da época pediram uma intervenção militar para enfrentar a ameaça crescente da agitação comunista no país."

Pujol

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Então comandante do Exército, Pujol disse que pandemia 'talvez seja a missão mais importante de nossa geração'

Braga Netto, em sua mensagem sobre o 31 de março de 1964, afirma que "os brasileiros perceberam a emergência e se movimentaram nas ruas, com amplo apoio da imprensa, de lideranças políticas, das igrejas, do segmento empresarial, de diversos setores da sociedade organizada e das Forças Armadas, interrompendo a escalada conflitiva, resultando no chamado movimento de 31 de março de 1964".

Segundo o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas, os militares brasileiros enxergavam que a ameaça à ordem vigente vinha de "inimigos internos" que supostamente poderiam implantar o "comunismo no país pela via revolucionária, através da 'subversão' da ordem existente - daí serem chamados pelos militares de 'subversivos'."

O exemplo mais próximo que reforçava essa tese era Cuba.

Em 2004, o ex-senador e ex-ministro da ditadura, Jarbas Passarinho, afirmou em entrevista à BBC News Brasil que o golpe militar de 1964 se tornou imperativo, na avaliação dele, pela presença à época de supostos guerrilheiros atuando em território brasileiro, encorajados pelo sucesso dos comunistas na China, na União Soviética e em Cuba, e pela insubordinação militar com o motim dos sargentos, em 1963 em Brasília, e dos marinheiros, em 1964 no Rio de Janeiro.

"Todo mundo tinha medo da ameaça comunista."

A restauração da disciplina e da hierarquia das Forças Armadas é apontada pelo CPDOC como outra justificativa para o golpe militar.

Mas especialistas apontam que esse risco era praticamente inexistente à época, tanto pelo fato de que João Goulart não era comunista quanto pela fragmentação dos movimentos de esquerda e da falta de apoio popular massivo à época.

A própria falta de reação massiva contra o início do regime militar reforça esse diagnóstico.

Em seu livro "Em Guarda contra o Perigo Vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964)", o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e um dos principais estudiosos do tema no Brasil, mostra que o anticomunismo "não passou de engodo para justificar a intervenção", e que a retórica golpista passava mais por antipopulismo e antirreformismo.

A exemplo das reformas de base propostas por João Goulart, que passavam por mudanças profundas em áreas como a bancária e as universidades e principalmente por uma ampla reforma agrária via desapropriação de terras com título da dívida pública.

Mas as propostas enfrentaram forte resistência dos setores mais conservadores da sociedade e não avançaram no Congresso, apesar do apoio de diversas categorias.

A mesma ameaça de "perigo vermelho" foi usada quatro anos depois como justificativa para o endurecimento do aparelho repressivo da ditadura, por meio do AI-5. Isso reverbera até hoje no bolsonarismo.

Em outubro de 2019, um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), disse que, caso a esquerda "se radicalize", "vamos precisar ter uma resposta", que, segundo ele, "pode ser via um novo AI-5".

Mas o principal "inimigo" do regime já era outro.

Documentos e depoimentos da época mostram, dizem estudiosos, que o ato autoritário de 1968 foi uma forma de a ditadura militar controlar não só a oposição de esquerda ou os comunistas, mas os setores da sociedade civil que haviam apoiado o golpe de 1964 e que, quatro anos depois, estavam ficando descontentes com o governo, como a Igreja Católica, a imprensa, o Poder Judiciário e líderes políticos.

militares marchando

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Militares ocupam milhares de postos administrativos no governo Bolsonaro

"Muita gente tinha apoiado o golpe, imaginando que seria uma coisa de curto prazo. Mas aí os partidos políticos foram dissolvidos, a eleição para presidente foi indireta, a grande imprensa, que havia apoiado o golpe, começou a ser censurada... Você tinha um quadro de insatisfação muito ampliado", disse o historiador Daniel Aarão Reis, professor e pesquisador de História Contemporânea na UFF (Universidade Federal Fluminense), à BBC News Brasil em 2019.

Segundo Aarão Reis, os grupos da luta armada contra a ditadura eram poucos, pequenos, não tinham apoio popular e não apresentavam uma ameaça real ao regime.

Para Sá Motta, da UFMG, a ditadura já possuía os meios suficientes para reprimir a resistência da esquerda, e não precisaria ampliar seus poderes com o AI-5. Mas ela não tinha ainda "eram meios suficientes para enquadrar e disciplinar segmentos rebeldes da própria elite situados em lugares estratégicos, como o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e a imprensa".

O regime militar no Brasil durou de 1964 a 1985 e o período mais duro do regime, durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, foi de 1969 a 1974.

Segundo relatório da Comissão da Verdade, durante os 20 anos de duração da ditadura no Brasil, 424 pessoas morreram ou desapareceram. Foi identificado também, por exemplo, que o regime perseguiu, prendeu ou torturou 6.591 militares.

As práticas violentas contra dissidentes brasileiros também constam em documentos entregues pelos Estados Unidos ao Brasil em 2014, com relatórios que detalhavam informações de 1967 a 1977 sobre censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil.

Anistia

Braga Netto, novo ministro da Defesa, cita em seu texto sobre o 31 de março de 1964 a Lei da Anistia, que foi aprovada pelo Congresso Nacional em 1979 e, segundo ele, "consolidou um amplo pacto de pacificação a partir das convergências próprias da democracia. Foi uma transição sólida, enriquecida com a maturidade do aprendizado coletivo".

A Lei da Anistia, que perdoou crimes políticos cometidos por militantes e agentes de Estado durante a ditadura, é um ponto-chave em embates entre militares e alguns setores da sociedade civil desde a redemocratização em 1985.

Em 2010, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) moveu uma ação para tentar derrubar a lei, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu mantê-la.

A postura do Brasil em relação à Lei da Anistia já foi condenada pela ONU e outros organismos internacionais e contrasta com a de vizinhos como Argentina, Chile e Uruguai. Nesses países, a Justiça tem condenado agentes de Estado por acusações de homicídios, torturas e sequestros ocorridos durante regimes militares.

O enterro do estudante Edson Luís, assassinado em março de 1968 no Rio por agentes da repressão no restaurante Calabouço; sua morte desencadeou uma série de manifestações contra o regime militar

CRÉDITO,ACERVO ARQUIVO NACIONAL

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O enterro do estudante Edson Luís, assassinado em março de 1968 no Rio por agentes da repressão no restaurante Calabouço; sua morte desencadeou uma série de manifestações contra o regime militar

Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade reacendeu o debate sobre a Lei da Anistia, mas a legislação tampouco foi modificada. Para que torturadores possam ir ao banco dos réus, é preciso que o STF modifique sua interpretação da lei de 2010 ou que o Congresso altere a redação.

Em seu relatório final, a Comissão Nacional da Verdade apontou 377 agentes públicos responsáveis pela repressão política durante a ditadura, e mesmo sem força para punições conseguiu gerar uma forte reação entre militares.

Os trabalhos da comissão são tidos como um dos diversos elementos que levaram o segmento a atuar politicamente em massa contra o PT e, por extensão, a fazer parte da candidatura e do governo Bolsonaro.

Desde o pleito de 2018, parte do comando das Forças Armadas repete publicamente que segue a Constituição, afasta qualquer risco de recuo democrático, critica a politização dos quartéis e reitera agir como instituição do Estado brasileiro, e não de um governo.

"A Marinha, o Exército e a Força Aérea acompanham as mudanças, conscientes de sua missão constitucional de defender a Pátria, garantir os Poderes constitucionais, e seguros de que a harmonia e o equilíbrio entre esses Poderes preservarão a paz e a estabilidade em nosso País", conclui Braga Netto.

  • Matheus Magenta
  • Da BBC News Brasil em Londres
  • 31/03/2021
Professor Edgar Bom Jardim - PE