domingo, 5 de setembro de 2021

Seis crises que Bolsonaro tenta estancar com ato de 7 de setembro



Cartazes de protesto contra a inflação no governo Bolsonaro

CRÉDITO,ROBERTO PARIZOTTI

Legenda da foto,

Inflação em alta é uma das nuvens que Bolsonaro tenta dissipar com protesto

Enquanto o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) aposta nos protestos de 7 de setembro como um momento importante para mostrar força e apoio nas ruas, o governo liderado por ele tem uma série de crises - tanto estruturais como políticas - batendo à porta.

Se por um lado Bolsonaro diz que "nunca outra oportunidade para o povo brasileiro foi tão importante ou será importante quanto esse nosso próximo 7 de setembro", 9 milhões de brasileiros entraram para a lista de pessoas em situação de fome no ano passado, uma alta de 84,4% em relação a 2018.

Embora Bolsonaro e seus seguidores digam que não acreditam em pesquisas de opinião, a aprovação de seu governo atingiu o pior nível desde o início da gestão em 2018. Em julho, 51% dos entrevistados classificaram o governo como ruim ou péssimo, segundo levantamento Datafolha.

Além disso, as notícias das últimas semanas não são muito favoráveis a Bolsonaro:

O Brasil já tem mais de 580 mil mortes na pandemia e, agora, pode enfrentar uma crise energética; em meio à alta da inflação, o Produto Interno Bruto (PIB) registrou uma queda de 0,1% no segundo trimestre deste ano; a proposta de voto impresso defendida por bolsonaristas foi derrotada na Câmara dos Deputados; o presidente hoje responde a cinco inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE); a CPI da covid-19, em curso no Senado, investiga uma série de denúncias de corrupção na compra de vacinas pelo Ministério da Saúde.


Os protestos de 7 de setembro são vistos com preocupação por parte do Judiciário e dos governadores. O receio é que ocorram episódios de violência em meio à radicalização de Bolsonaro, que vem reiteradamente ameaçando a democracia e as eleições do próximo ano. Também há expectativa de que policiais militares participem do ato, o que é proibido por lei.

A rede bolsonarista rechaça a possibilidade de violência, e argumenta que as manifestações reivindicam "liberdade de expressão" para conservadores, que se veem perseguidos pela Justiça e por plataformas de redes sociais. Por outro lado, em grupos no Whatapp há pedidos por um "saneamento" do Congresso e do STF, além da defesa do voto impresso e do tratamento precoce contra a covid (tratamento esse com uso de medicamentos sem eficácia comprovada).

Abaixo, a BBC News Brasil explica algumas dessas nuvens que Bolsonaro tenta dissipar com o ato de 7 de setembro e como elas podem afetar seu governo e as eleições presidenciais do próximo ano.

Manifestantes em protesto de apoio ao presidente Jair Bolsonaro e pelo voto impresso. São Paulo, agosto de 2021

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Questionamentos do processo eleitoral por Bolsonaro e seus apoiadores são prenúncio de eleições tumultuadas em 2022, o que aumenta a incerteza da economia

1. Alta da fome

Em 2020, cerca de 19 milhões de pessoas viviam em situação de fome no país, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil. Em 2018, eram 10,3 milhões. Ou seja, em dois anos houve uma alta de 84,4% (ou quase 9 milhões de pessoas a mais).

Já um estudo do grupo de pesquisas Food for Justice, da Universidade Livre de Berlim, apontou que, em abril de 2021, 59,4% dos domicílios do Brasil se encontravam em situação de insegurança alimentar — quando uma família diz ter preocupação com a falta de alimentos em casa ou já enfrenta dificuldades para conseguir fazer todas as refeições.

No começo de agosto, Bolsonaro entregou ao Congresso uma Medida Provisória para criar o Auxílio Brasil, programa social que substituirá o Bolsa Família.

O plano inicial era aumentar o valor repassado às famílias, com a expectativa de melhorar esses índices, mas também turbinar a avaliação do presidente na camada mais pobre da população.

Porém, nesta semana, o governo enviou ao Congresso uma proposta de orçamento que prevê, para 2022, o mesmo valor repassado ao Bolsa Família neste ano - R$ 34,7 bilhões.

Para o cientista político Sérgio Praça, professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, o reajuste era a última esperança de Bolsonaro conseguir melhorar sua popularidade.

"Acho que o governo não tem mais como sair do buraco em que se enfiou durante a crise da pandemia. Há um acúmulo de crises, tanto econômicas como políticas. O aumento do benefício seria um grande trunfo, talvez o único, que poderia fazer o Bolsonaro recuperar sua popularidade perdida", diz.

2. Reprovação a Bolsonaro cresce

Uma pesquisa Datafolha divulgada no início de julho apontou que a reprovação a Bolsonaro subiu e atingiu 51% da população, pior número do presidente desde que ele iniciou seu mandato, em janeiro de 2019.

Já a avaliação positiva ficou no mesmo patamar da pesquisa anterior, de março, com 24% das pessoas considerando o governo bom ou ótimo - esse também é o pior resultado de Bolsonaro desde o início da gestão.

A situação do presidente fica pior entre a parcela que ganha até dois salários mínimos - esses são 57% da população. Nesse grupo, 54% das pessoas reprova Bolsonaro - em março, eram 45%.

Para Mauro Paulino, diretor do Datafolha, a erosão da popularidade do presidente se explica por uma série de fatores, como a condução desastrosa do governo na pandemia, as altas do desemprego, da inflação e da fome - fatores que fazem a diferença no cotidiano dos mais pobres.

Pesquisas de intenção de voto mostram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como favorito para o pleito de 2022. No Datafolha, o petista aparece com 46% das intenções de voto no primeiro turno, enquanto Bolsonaro marca 25%. Em um cenário de segundo turno entre os dois, Lula venceria com ampla margem: 58% a 31%. Bolsonaro perderia em todas simulações de segundo turno: tanto para João Doria (PSDB), como para Ciro Gomes (PDT).

"Sem dúvida, o caminho de Bolsonaro é mais difícil do que de Lula. O presidente enfrenta um noticiário negativo diariamente, com uma série de crises. Já Lula não tem aparecido na mídia de maneira negativa. Quanto mais o governo Bolsonaro piora, melhor Lula se sai nas pesquisas. A eleição terá uma forte disputa entre quem será o candidato que vai disputar o segundo turno com Lula", diz.

Mas Paulino pondera: "Ainda estamos na linha de largada. Bolsonaro tem a máquina do governo nas mãos, além de apoio no Congresso. Esses fatores podem fazer diferença até as eleições. Nada está definido", diz.

3. Denúncias de corrupção

Jair Bolsonaro faz continência diante da bandeira do Brasil

CRÉDITO,REUTERS

Legenda da foto,

Bolsonaro convocou manifestações de apoiadores para 7 de setembro

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), no Senado, é outro dos problemas de Bolsonaro nos últimos meses.

Inicialmente, os senadores investigavam as ações e omissões do governo federal na condução da pandemia que já matou mais de 580 mil brasileiros desde março do ano passado.

Porém, nos últimos meses, uma série de denúncias de corrupção dentro do Ministério da Saúde ganharam o foco da comissão, como suspeitas de que servidores pediram propina para liberar a compra de vacinas contra a covid-19.

Uma das investigações aponta para uma suposta participação do líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros (Progressistas), em um esquema de propinas na compra do imunizante indiano Covaxin. Ele nega. O governo cancelou a licitação.

Nesta semana, outra denúncia ganhou as manchetes: a CPI apontou que o motoboy Ivanildo Gonçalves, funcionário da empresa VTCLog, teria pago ao menos quatro boletos de Roberto Dias, então diretor de logística do Ministério de Saúde, indicado ao cargo pelo deputado Ricardo Barros.

A VTCLog é uma empresa de logística contratada pela pasta para cuidar da armazenagem e distribuição de medicamentos e vacinas no Brasil - ela é investigada por suspeitas de irregularidades em contratos com o ministério.

Nos últimos meses, o motoboy, que ganha menos de R$ 2 mil por mês, sacou mais de R$ 4 milhões em espécie a mando da companhia. Em depoimento à CPI, ele confirmou que pagava boletos a pedido de seu empregador, embora não soubesse se eles eram de Roberto Dias. O ex-servidor nega irregularidades.

"A CPI pegou um ponto sensível de Bolsonaro: ele sempre dizia que em seu governo não havia corrupção. O noticiário constante sobre a CPI desgastou bastante a imagem de Bolsonaro, inclusive entre seus apoiadores mais fiéis", diz Paulino, em entrevista à BBC News Brasil, por telefone.

"Bolsonaro tem 11% de eleitores fiéis, que dizem votar nele de qualquer jeito. No ano passado, esse número já foi de 17%, o que praticamente o garantia no segundo turno das eleições. Mas muita gente que acreditava no discurso de combate à corrupção se decepcionou", diz.

4. Situação energética se agrava

Ministro Bento Albuquerque fala em pronunciamento veiculado pela TV

CRÉDITO,REPRODUÇÃO

Legenda da foto,

Ministro Bento Albuquerque sugeriu redução no consumo da energia com menor uso de 'chuveiros elétricos, condicionadores de ar e ferros de passar'

Na última terça-feira, Jair Bolsonaro festejou com seguidores e andou de cavalo, segurando uma bandeira do Brasil, em visita à cidade de Uberlândia, em Minas Gerais. Poucas horas depois, coube ao ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, fazer um pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão para dizer que "nossa condição energética se agravou".

Com a pior escassez de chuvas nos últimos 91 anos e reservatórios na casa dos 20%, Albuquerque pediu que os brasileiros economizem energia elétrica, principalmente em horários de pico, reduzindo o uso de ar-condicionado, ferro de passar e chuveiro elétrico.

Porém, em seu discurso, o ministro não citou mais um aumento na conta de energia elétrica aprovado horas antes pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica): uma nova bandeira tarifária, chamada "bandeira escassez hídrica", no valor de R$ 14,20 por 100 kWh.

O ministro afirmou que o risco de "racionamento de energia é zero", mas o vice-presidente, Hamilton Mourão, admitiu que um racionamento "não está descartado".

5. PIB pífio, inflação em alta

Paulo Guedes e Jair Bolsonaro

CRÉDITO,MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

Legenda da foto,

Guedes diz que agravamento da pandemia afetou o PIB

frustrante resultado do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro também está à porta de Bolsonaro. No segundo trimestre, ele registrou queda de 0,1% em relação ao primeiro, divulgou o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) nesta quarta-feira.

O resultado representa um freio em relação ao crescimento de 1,2% do PIB no primeiro trimestre, na comparação com o quarto trimestre de 2020, quando o bom desempenho da atividade foi puxado pela agropecuária, indústria e serviços.

Para o ministro da Economia, Paulo Guedes, o resultado ruim se explica por um "trimestre trágico da pandemia", ressaltando que a economia voltará a crescer em breve.

"Justamente abril, maio e junho deste ano, quando entrou de novo o auxílio emergencial, nós mantivemos a responsabilidade e o compromisso com a saúde do brasileiro", disse.

Outros indicadores econômicos também não são nada animadores para Bolsonaro: 14 milhões de pessoas estão desempregadas no país, o dólar é operado na casa de R$ 5,20 e a inflação chegou a 8,99% nos últimos 12 meses, acima da meta do governo, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE.

"Os mais afetados pelo conjunto de crises são os mais pobres, e essa é a camada que decide as eleições. O rescaldo da pandemia e como a economia vai reagir serão decisivos na eleição", diz Paulino.

6. Rejeição do voto impresso, inquéritos no STF

Alexandre de Moraes ajeita a gravata em sala do Senado

CRÉDITO,AGÊNCIA SENADO

Legenda da foto,

Ministro Alexandre de Moraes conduz inquéritos que têm Bolsonaro e aliados como alvo; presidente pediu impeachment do magistrado, mas presidente do Senado rejeitou

Uma das principais bandeiras políticas de Bolsonaro nos últimos meses caiu por terra em agosto: a proposta de voto impresso. Sem apontar provas, o presidente afirmava que há risco de fraudes nas próximas eleições e que seria necessário adotar a impressão do voto como alternativa para a checagem dos resultados.

A proposta, amplamente criticada por adversários, aliados e Justiça Eleitoral, foi enterrada na Câmara dos Deputados, mesmo com governo tendo maioria na Casa.

Durante a celeuma, Bolsonaro novamente divulgou mentiras sobre o processo eleitoral e fez ameaças golpistas contra a realização das eleições, o que levou o TSE a apresentar uma notícia-crime contra ele.

Alexandre de Moraes, ministro do STF, aceitou o pedido, abrindo uma investigação contra o presidente dentro do inquérito que apura a produção de notícias falsas. Esse é um dos cinco inquéritos que o mandatário enfrenta no Supremo e no TSE.

Bolsonaro e seus seguidores reclamam da atuação do Supremo, alegando que o Judiciário interfere em outros Poderes e que essas investigações deveriam passar antes pela Procuradoria-Geral da União (PGR), a quem cabe abrir um inquérito contra o presidente.

Logo depois, Bolsonaro apresentou ao Senado um pedido de impeachment de Alexandre de Moraes. Outra derrota: o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM), rejeitou a solicitação, alegando não haver "justa causa" para o afastamento do ministro.

Nesta semana, a Justiça provocou mais um revés: o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro determinou a quebra dos sigilos fiscal e bancário de Carlos Bolsonaro, vereador do Rio pelo Republicanos, em uma investigação que apura a contratação de funcionários "fantasmas" no gabinete do filho do presidente na Câmara Municipal.

Na quinta, o portal Metrópoles publicou uma entrevista com Marcelo Luiz Nogueira Nogueira dos Santos, ex-funcionário da família Bolsonaro. Segundo ele, a ex-mulher do presidente,. Ana Cristina Valle, comandava um esquema de rachadinhas no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro.

Santos afirmou que foi nomeado no gabinete de Flávio, mas precisava devolver à família 80% de seus rendimentos na Assembleia Legislativa do Rio. A família Bolsonaro ainda não se pronunciou sobre o assunto até a publicação desta reportagem.

Críticas às atuações do Supremo e do TSE, além da defesa do voto impresso, estão entre os principais motivos do protesto de 7 de setembro.

Para Sérgio Praça, da FGV, essas pautas causam bastante barulho principalmente nas redes sociais bolsonaristas, mas não engajam a maior parte da população. "A grande maioria das pessoas é indiferente a esses temas, que circula muito nas mídias sociais. Acho que no momento o povo quer emprego e renda, não está interessado em tanque e fuzis", diz.

Já Mauro Paulino diz que as manifestações têm grande potencial de repercussão. "Se o protesto for grande, as imagens vão circular bastante. E isso pode ter um impacto importante e melhorar um pouco a imagem do presidente."

  • Leandro Machado
  • Da BBC News Brasil em São Paulo 05/09/21.

Professor Edgar Bom Jardim - PE

sábado, 4 de setembro de 2021

“Somos vistos como estrangeiros no nosso país”




Índios durante a marcha até o Supremo nesta quarta-feira (1).
Índios durante a marcha até o Supremo nesta quarta-feira (1). CÍCERO BEZERRA

Do lado de fora do Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, a fumaça e o cheiro de churrasquinho do vendedor ambulante se misturavam aos pouco mais de 1.000 indígenas que olhavam um telão nesta quarta-feira. O ministros do tribunal haviam acabado de retomar o julgamento do processo do marco temporal, que pode definir o futuro da demarcação de terras indígenas e balizar toda a política indigenista no país. Durante toda a tarde, as partes envolvidas no processo fizeram suas defesas em um debate histórico, que pode estabelecer que só são terras indígenas aquelas já ocupadas ou reivindicadas pelos índios até a promulgação da Constituição de 1988, barrando, com isso, muitos dos processos de demarcação em curso e colocando sob risco de questionamentos terras já oficializadas como indígenas.

A polêmica que ronda o tema é tanta que, nesta quarta, os ministros nem sequer conseguiram iniciar seus votos, algo previsto para acontecer nesta quinta-feira, após as manifestações de mais algumas dezenas de amici curiae, ou amigos da corte, instituições interessadas na causa. Do lado de fora, centenas de indígenas de diversas etnias seguem acampados há mais de uma semana, vindos de todas as regiões do país para reivindicar o direito à terra. “Somos vistos como estrangeiros no nosso próprio país”, resume Valdelice Veron, uma Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul.

Valdelice Veron, da etnia Guarani Kaiowá: "somos vistos como estrangeiros no nosso próprio país".
Valdelice Veron, da etnia Guarani Kaiowá: "somos vistos como estrangeiros no nosso próprio país".CÍCERO BEZERRA

Com uma clara e contundente política anti-indigenista, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) virou o grande alvo dos protestos ao longo da caminhada. Sob sua gestão, nenhuma terra foi demarcada até o momento. Nesta semana, Bolsonaro criticou, novamente, as demarcações de terra. “Acabaram com Roraima com aquelas demarcações, né? Acabaram com Roraima”, disse o presidente a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada na segunda-feira. “Tem alguma favela de índio lá?”, questionou, sem especificar ao que se referia. “Foi no Governo Dilma ou foi Lula a Raposa Serra do Sol?”, perguntou aos apoiadores.

O presidente mencionou o território Raposa Serra do Sol, que fica em Roraima, e que foi demarcado graças a um entendimento do Supremo com base no marco temporal. Na época, a corte entendeu que os povos originários já estavam ali antes da promulgação da Constituição e que, portanto, o território pertencia a eles. O entendimento da corte, no entanto, foi restrito àquele território somente.

Patere Metuktire, da etnia Kaiapó: "No próximo acampamento já vou saber como é essa luta contra o Governo".
Patere Metuktire, da etnia Kaiapó: "No próximo acampamento já vou saber como é essa luta contra o Governo".CÍCERO BEZERRA

Agora, o julgamento que está em jogo tem caráter de repercussão geral, o que significa que o que for decidido passa a valer para todos os casos relacionados ao tema. Defendido principalmente por ruralistas, que afirmam que é preciso haver segurança jurídica para os proprietários de terras, a tese causa apreensão nos indígenas, que temem um retrocesso e a perda de direitos. “Índio sem território não é índio”, diz Jaciene Brito, da etnia Tupinambá, na Bahia.

O acampamento recebeu a visita de políticos ao longo da semana. Faltando pouco mais de um ano para a eleição presidencial, subiu ao palco nesta quarta-feira Guilherme Boulos (PSOL), candidato na última eleição. Luís Inácio Lula da Silva (PT) não apareceu, mas enviou um breve áudio, colocado pela presidenta do seu partido, Gleisi Hoffmann, enaltecendo a luta indígena.

Jaciene Brito, tupinambá: "O índio sem território não é índio".
Jaciene Brito, tupinambá: "O índio sem território não é índio". CÍCERO BEZERRA

Acampados há mais de dez dias, muitos se despediram de Brasília nesta quarta-feira. Ainda assim, o acampamento não será desfeito. No final de semana, começam a chegar mulheres indígenas para a marcha das mulheres, que ocorre entre 7 e 11 de setembro. O evento levanta dúvidas sobre possíveis confrontos, já que começa no dia em que bolsonaristas devem sair às ruas para defender o presidente.

Nas mãos do Congresso

Nesta quinta-feira, o julgamento no STF deve ser retomado. Ainda restaram alguns advogados que farão as suas sustentações de cinco minutos cada um. Depois disso, os ministros começam a votar, partindo do mais novo até o mais velho, o decano. Assim, o ministro Kassio Nunes, indicado por Bolsonaro, inicia as votações. Existe uma expectativa em torno desse primeiro voto, que deve ser contrário aos direitos indígenas. Também é possível que o ministro peça vistas do processo, suspendendo o julgamento, sem data para retomar.

Se isso ocorrer, a corte acabará jogando nas mãos do Congresso a decisão sobre o futuro das terras indígenas no Brasil. Isso porque tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 490/2007, que impõe na legislação a tese do marco temporal. Estabelece, dentre outras coisas, que as terras indígenas são somente aquelas já ocupadas ou reivindicadas pelos indígenas até a promulgação da Constituição. Também prevê a abertura dos territórios para exploração de projetos, e permite, dentre outras coisas, o contato com indígenas isolados.

Indígenas assistem à sessão do Supremo em um telão nesta quarta-feira (1) na Praça dos Três Poderes.
Indígenas assistem à sessão do Supremo em um telão nesta quarta-feira (1) na Praça dos Três Poderes. CÍCERO BEZERRA

Os olhos dos povos originários estão, portanto, voltados também para o Congresso. “Se o PL 490 for aprovado, vai ocorrer um grande massacre”, diz Valdelice Veron. “Porque hoje, diferentemente de quando a Constituição foi promulgada, a gente fala português, a gente não tem medo. A gente não vai sair do nosso mato e quem entrar, não vamos deixar sair também”.

No início de julho, o PL 490 foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara. Agora, aguarda para ser apreciado pelo Plenário. Mas advogados que defendem a causa indígena ouvidos pelo EL PAÍS afirmam que, ainda o projeto de lei seja aprovado no Congresso, a causa não estará perdida. “Se o PL for votado e sancionado antes da decisão do STF, ainda assim será possível questionar judicialmente sua constitucionalidade”, diz a advogada Julia Neiva, da Conectas. “E se alguém quiser argumentar que uma terra entraria dentro do marco temporal, é possível que essa decisão fique suspensa justamente por não haver uma decisão dentro do STF”, completa.El País
Professor Edgar Bom Jardim - PE

As táticas de maridos ricos para esconder suas fortunas no divórcio


Carros cobertos sendo levados para o aeroporto

CRÉDITO,AIRBRIDGECARGO

Legenda da foto,

Em muitos casos as mulheres ficam com carros e apartamentos, mas a maior parte da fortuna é ocultada

Atenção: Esta reportagem contém descrição de cenas de violência doméstica que podem ser perturbadoras.

Quando Joana*, se casou com o empresário Carlos*, no início dos anos 2000, ele era dono de um pequeno negócio. Os dois ficaram juntos por 18 anos e, ao longo desse tempo, a empresa cresceu vertiginosamente.

Pouco a pouco, o estilo de vida do casal — que já era de classe média alta — foi se tornando luxuoso. Mas Joana não tinha ideia do tamanho da fortuna do marido até eles se separarem — ou melhor, até ela perceber que foi enganada no processo de divórcio.

Joana, hoje com 50 anos, dedicou a vida toda à família e ao marido e não queria se separar. Ela fez diversas fertilizações para engravidar do filho do casal, hoje um adolescente.



Carlos pediu o divórcio pela primeira vez em 2017, mas como Joana não queria se separar, o casal acabou ficando junto por mais um ano. Em 2018, ele a convenceu que seria melhor fazer um acordo e eles se separaram em 2019.

"Ele disse que ela nunca ia sentir falta de nada, que ia deixar o filho do casal e ela em boa situação. Fez um acordo para ela ficar com um apartamento de R$ 5 milhões e R$ 30 milhões em aplicações", conta Anderson Albuquerque, advogado de Joana.

Sem saber exatamente qual era o real patrimônio do marido — e portanto do casal, já que eram casados com comunhão de bens — Joana aceitou o acordo.

Foi só quando viu duas aberturas de capital da empresa de Carlos e o nome dele na lista de bilionários do Brasil que ela percebeu que tinha sido enganada. Foi então que procurou Albuquerque e descobriu que o valor total do patrimônio na verdade estava na casa dos bilhões de reais.

"Em grande separações — com valores acima de R$ 10 milhões — os processos de divórcio deixam de ser direito de família e viram questão de fraude financeira e direito tributário", afirma Albuquerque, que se especializou em direito tributário e empresarial antes de começar a coordenar o departamento de direito de família de seu escritório.

No caso de Joana, Carlos simplesmente havia omitido o valor do patrimônio na época da separação. "Ele não apresentou sua participação societária em diversas empresas", diz Albuquerque.

No mês passado, Joana conseguiu uma decisão na Justiça que garantiu seu direito de ter acesso a todos os documentos contábeis da empresa nos últimos 18 anos.

Com o valor exato do patrimônio nas mãos de Joana, disse o juiz do caso, as duas partes podem tentar um acordo — se não, os documentos serão essenciais em um futuro processo sobre a partilha de bens.

"Como nesse caso, muitas vezes é um problema que vai além da família. A fraude do marido com a mulher pode gerar consequências para a empresa como um todo", diz Albuquerque.

A defesa de Carlos ainda não se manifestou sobre o caso.

Homem de terno lendo tablet em carro de luxo

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Muitos maridos omitem patrimônio em processos de divórcio

Escondendo o patrimônio

Diferente da grande maioria de escritórios de direito de família, Albuquerque só aceita casos de mulheres e filhas, nunca dos maridos.

"Nessa área a gente só advoga para mulher. Ajuda a manter a coerência, porque se você sustenta algo para um lado (da esposa) em um caso e depois argumenta o oposto atendendo outro caso (do marido), você descaracteriza sua própria argumentação", explica o advogado.

Segundo Albuquerque, na maioria dos grandes casos de divórcio que ele atende, a principal estratégia dos maridos para ocultar patrimônio é simplesmente não apresentar os documentos para as mulheres e seus advogados.

"Muitas mulheres, mesmo tendo uma vida de luxo, não sabem detalhes sobre a vida financeira da família, não sabem ou não conseguem provar os seus custos de vida e não conhecem os seus direitos", diz ele, acrescentando que muitas fraudes passam batido por advogados de direito de família que não entendem tão bem da parte financeira.

Além disso, afirma, muitos maridos mantêm controle das esposa em relacionamentos abusivos e elas têm medo até de procurar um advogado para entender quais são seus direitos.

"Só de ela seguir um advogado de direito de família nas redes sociais já é motivo para discórdia. O marido diz que ela não confia, pergunta se quer se separar. Eu recebo centenas de mensagens por dia de mulheres dizendo que não podem me seguir porque se o marido descobre, vai dar problema", afirma Albuquerque.

O advogado Anderson Albuquerque em São Paulo

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL

Legenda da foto,

Anderson Albuquerque se especializou em fraudes financeiras antes de atuar em direito de família

Alterações contratuais e violência física

O advogado explica que, embora omitir dados seja a principal estratégia, não é a única. Há casos em que há inclusive o uso de documentos forjados e até violência física envolvidos.

Foi o que aconteceu no divórcio de Lígia* e João*, empresários da região sul do Brasil que se separaram neste ano.

Os dois se conheceram em 2009. Os dois começaram juntos um negócio que ao longo dos anos foi crescendo e se tornou um grande grupo empresarial.

Os dois foram casados por 12 anos e tiveram uma filha. Quando João quis se separar, o patrimônio do casal valia cerca de R$ 500 milhões, afirma Albuquerque.

Nesse caso, Lígia sabia de seus direitos, mas foi pega de surpresa por uma tentativa de golpe do marido.

Em dezembro de 2020, João fez uma alteração contratual fazendo uma mudança societária através de um certificado digital — ele passou as empresas para o nome da mãe dele, sem avisar a esposa. Mas faltava a assinatura física dela para a mudança se concretizasse.

Em abril deste ano, quando o casal já não morava junto, após um evento de confraternização na sede das empresas, ele a obrigou a assinar diversos documentos, incluindo o contrato com alteração societária, com uso de violência.

João estava acompanhando Lígia e a filha do casal até o carro quando começou a violência. "Ele agarrou meu pescoço e me deixou sem voz, impedindo que eu pedisse socorro. Em seguida me arremessou sobre o veículo", conta ela.

Lígia conseguiu entrar no caso para tentar se proteger, mas João abriu a porta, a retirou do carro e a arremessou contra a parede. Diversas pessoas viram a cena — incluindo a filha pequena do casal.

No mesmo dia, Lígia foi à delegacia fazer um boletim de ocorrência. Por causa da violência, o caso chegou ao Ministério Público e João enfrenta um processo criminal.

Além disso, Lígia entrou na Justiça pedindo o reconhecimento da nulidade da alteração contratual, indenização por danos morais e outras demandas para proteger seu patrimônio.

"A fraude ficou bem clara porque ele cometeu um erro. A alteração contratual tinha sido feita em 2020, mas quando ele a obrigou a assinar, o contrato tinha a data deste ano", afirma Albuquerque, que advoga para Lígia no processo.

Na ação, João nega qualquer agressão e afirma que a ex-esposa assinou o contrato por vontade própria.

Homem observa seu tablet dentro de um helicóptero

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Se houve fraude no divórcio, é possível entrar com uma ação mesmo após a separação

Esvaziamento de patrimônio

Há casos em que maridos esvaziam seu patrimônio para que as esposas não tenham acesso aos valores que têm direito.

Hoje com 50 anos, Clara* tenta obter há 12 anos o valor que foi acordado com o ex-marido Rodrigo* quando se separaram. Os dois se conheceram em 1995 e ficaram juntos por quase 15 anos.

Quando se divorciaram, os dois fizeram um acordo de partilha de bens em que ela ficaria com o valor de R$ 1 milhão, mas Rodrigo nunca transferiu o valor para a ex-mulher.

Clara ficou anos tentando obter o pagamento, mas teve dificuldade porque Rodrigo havia esvaziado completamente seu patrimônio, evitando que a Justiça fizesse a expropriação de seus bens.

Antes mesmo de se separarem, em 2007, ele vendeu sua participação societária em grandes empresas de câmbio para um banco. O valor da negociação divulgado foi de cerca U$ 40 milhões (R$ 81,5 milhões de reais, com câmbio de agosto de 2007)

Segundo a Justiça, o valor devido por ele à Clara hoje é de R$ 30 milhões — considerando o montante do acordo que não foi pago com juros e correção monetária mais a pensão alimentícia que ele deve às filhas do casal.

Rodrigo nega irregularidades, mas não tem mais direito a recurso na Justiça — já passaram os prazos para contestar as ações de alimentos e não há possibilidade de recurso sobre o valor do acordo feito legalmente pelo casal.

Hoje cliente de Albuquerque, Clara entrou com um pedido para que a dívida do ex-marido seja redirecionada para o banco que absorveu suas quotas societárias nas empresas de câmbio.

"É mais um exemplo de como uma questão conjugal pode ter efeitos para além da família", diz Albuquerque. "Hoje eu tenho até investidores que procuram consultoria para avaliar regime de comunhão de bens de sócios para entender melhor os riscos de investir em certas empresas."

*O nome das pessoas citadas foram alterados para proteger suas identidades

  • Letícia Mori
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE