quinta-feira, 8 de julho de 2021

Quem é André Mendonça, advogado e pastor indicado por Bolsonaro ao STF

André Mendonça e Jair Bolsonaro

CRÉDITO,ISAAC AMORIM/MJSP

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Indicação de Mendonça ao STF só deve ser oficializada após 12 de julho, quando Marco Aurélio se aposenta

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pretende indicar o advogado-geral da União (AGU), ministro André Mendonça, para o Supremo Tribunal Federal (STF). A escolha foi comunicada a outros ministros do governo nesta terça-feira (6/7).

A indicação, porém, só deve ser formalizada após sábado (12/07), quando o ministro Marco Aurélio se aposenta, por completar 75 anos.

Se a escolha se confirmar, o presidente estará cumprindo sua promessa de indicar um jurista evangélico a mais alta Corte do país, em meio a pressões de lideranças religiosas.

Mendonça é pastor presbiteriano e conquistou a confiança de Bolsonaro por sua atuação à frente da AGU e do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, pasta que também comandou por quase um ano, após a saída de Sergio Moro.

Enquanto Bolsonaro compartilhava sua escolha para o STF com ministros no Palácio do Planalto, o advogado-geral da União foi ao Senado participar de um almoço promovido pela bancada do PL.


Mendonça tem intensificado o contato com os senadores porque a indicação ao Supremo precisa ser aprovada pela maioria deles para ser confirmada. E hoje há certa resistência à sua escolha na Casa, em um momento que o presidente Bolsonaro está enfraquecido pela atuação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid.

Quando foi anunciado como escolhido de Bolsonaro para comandar a AGU, em novembro de 2018, Mendonça foi celebrado como um nome técnico e recebeu elogios inclusive de juristas que integraram o governo Dilma Rousseff, como Luís Adams (ex-AGU) e Valdir Simão (ex-ministro da Controladoria Geral da União).

André Mendonça

CRÉDITO,ANDERSON RIEDEL/PR

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Indicação do advogado-geral da União ao Supremo ainda será oficializada e precisa ser aprovada no Senado

No entanto, passou a ser alvo de duras críticas de parte da opinião pública por ter assumido uma atuação política bastante alinhada com Bolsonaro, com iniciativas vistas como autoritárias.

Por diversas vezes, Mendonça acionou a Polícia Federal (PF) para investigar opositores do presidente com base na Lei de Segurança Nacional, uma legislação criada na Ditadura Militar.

Entre os alvos de inquéritos solicitados pelo então ministro da Justiça estão o pré-candidato à presidência Ciro Gomes (PDT), o colunista do jornal Folha de S.Paulo Hélio Schwartsman, o cartonista Ricardo Aroeira, e Guilherme Boulos (liderança do PSOL). A maioria dos pedidos acusava os investigados de cometer calúnia ou injúria contra o presidente, devido a críticas a Bolsonaro. Todos esses inquéritos, porém, têm sido arquivados por determinação da Justiça.

Cerimônia no Senado

CRÉDITO,GERALDO MAGELA/AGÊNCIA SENADO

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Mendonça em cerimônia no Senado em 2019; AGU terá que convencer maioria dos senadores a aprovar seu nome ao STF

Sob comando de Mendonça, o Ministério da Justiça também foi acusado de produzir um dossiê contra 579 servidores federais e estaduais de segurança identificados como integrantes do "movimento antifascismo" e três professores universitários. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, que teve acesso ao material, o "ministério produziu um dossiê com nomes e, em alguns casos, fotografias e endereços de redes sociais das pessoas monitoradas".

Após uma ação apresentada pelo partido Rede Sustentabilidade, o STF determinou a suspensão de qualquer ato do Ministério da Justiça de produção ou compartilhamento de informações sobre cidadãos "antifascistas".

"A administração pública não tem, nem pode ter, o pretenso direito de listar inimigos do regime. Só em governos autoritários é que se pode cogitar dessas circunstâncias", criticou o ministro do STF Edson Fachin, durante o julgamento.

O caso também obrigou Mendonça a prestar esclarecimentos à Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso, quando confirmou a existência de um relatório da área de inteligência, mas negou ilegalidades.

"O relatório existe. O que não existe é um dossiê. Dossiê é uma expressão inadequada para a atividade de inteligência. Dossiê é algo feito às escuras para fins indevidos, que não estão no sistema. Que não está relatado oficialmente. Dossiê não é algo que você distribui", argumentou na ocasião.

Prêmio por combate à corrupção em 2011

André Mendonça é natural de Santos (SP) e ingressou na AGU por concurso público em 2000. Como servidor do órgão se notabilizou por sua atuação para aperfeiçoar mecanismos anticorrupção.

Em 2011, ganhou o prêmio especial do Instituto Innovare por idealizar e coordenar o Grupo Permanente de Atuação Pró-Ativa, setor da AGU que naquele ano recuperou R$ 329,9 milhões desviados em esquemas de corrupção a partir de ações na Justiça.

Entre 2016 e 2018, ficou cedido à Controladoria Geral da União (CGU), onde atuou na negociação de acordos de leniência com empresas, que são o equivalente a acordos de delação premiada firmados com pessoas físicas.

Mendonça é também doutor em Estado de Direito e Governança Global e mestre em Estratégias Anticorrupção e Políticas de Integridade pela Universidade de Salamanca, na Espanha.

"É um dos melhores quadros da advocacia pública brasileira. Competente, correto, equilibrado e um dos grandes responsáveis pela consolidação dos acordos de leniência da lei anticorrupção. Escolha muito feliz para comandar um órgão de tamanha importância para o Brasil", disse Valdir Simão, ex-ministro da CGU e do Planejamento do governo Dilma Rousseff, quando Mendonça foi anunciado como AGU de Bolsonaro no final de 2018.

Em contraste com esse histórico, acabou assumindo o Ministério da Justiça em abril de 2020, justamente após Sergio Moro deixar a pasta fazendo sérias acusações contra Bolsonaro por suposta interferência na Polícia Federal (PF) para atrapalhar investigações.

Na ocasião, Moro disse também à revista Veja que pediu demissão porque "sinais de que o combate à corrupção não é prioridade do governo foram surgindo no decorrer da gestão".

O ex-juiz da Operação Lava Jato citou como alguns desses "sinais" a decisão de Bolsonaro de transferir Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Justiça para o da Economia (o órgão acabou ficando dentro do Banco Central, por decisão do Congresso).

Flávio Bolsonaro

CRÉDITO,REUTERS

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Denúncias de possíveis crimes cometidos pela família presidencial não abalaram fidelidade de Mendonça a Bolsonaro

Foi a partir de uma relatório do Coaf do final de 2018 que vieram à tona as suspeitas de desvios de recursos do antigo gabinete de deputado estadual do hoje senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), filho mais velho do presidente.

O relatório apontou movimentação milionária na conta de Fabrício Queiroz, que era funcionário do gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) e amigo de longa data do presidente. Queiroz foi apontado pelo Ministério Público (MP) como operador de um esquema de rachadinha, em que salários de funcionários fantamas do gabinete eram recolhidos de volta para Flávio.

A posterior quebra de sigilo de Queiroz e sua mulher, Márcia Aguiar, revelaram ainda depósitos que somavam R$ 89 mil na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro, operações que nunca foram explicadas por ela e o presidente.

Nada disso abalou a fidelidade de Mendonça a Bolsonaro.

Nesta segunda-feira (5/7), uma série de reportagens do portal UOL revelou novas gravações de pessoas que teriam atuado como funcionários fantasmas nos antigos gabinetes do então deputado federal Jair Bolsonaro e de Flávio quando este era deputado estadual, aumentando os indícios de que a prática era adotada por ambos.

Além dessas acusações, o presidente hoje está pressionado por denúncias de supostas ilegalidades em negociações para compra de vacinas sob investigação da CPI da Covid.

Alinhamento a agenda de Bolsonaro

Sem se afetar pelas suspeitas levantadas contra a família presidencial, Mendonça conquistou a confiança de Bolsonaro ao defender com afinco pautas de interesse do presidente no STF.

Como advogado-geral da União, ele defendeu, por exemplo, que não fosse permitido a Estados e municípios proibir a realização de cultos religiosos presenciais durante a pandemia, assim como se opôs a criminalização da homofobia. Em ambos os casos, a maioria do STF ficou contra a posição da AGU.

Após quase um ano como ministro da Justiça, Mendonça foi chamado para chefiar de novo o órgão justamente porque seu sucessor no cargo, José Levi, não atendeu com a mesma fidelidade os pedidos do presidente.

Levi se recusou em março a assinar uma ação apresentada por Bolsonaro no STF tentando derrubar decretos dos governos do Distrito Federal, da Bahia e do Rio Grande do Sul que limitavam a circulação de pessoas, em meio forte aumento de mortes por covid-19. Sem a chancela da AGU, a ação foi rejeitada sumariamente pelo ministro Marco Aurélio.

Sergio Moro e André Mendonça

CRÉDITO,ROQUE DE SÁ/AGÊNCIA SENADO

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Sergio Moro e André Mendonça passaram trocar farpas após ex-juiz deixar governo Bolsonaro

Já enquanto esteve no comando do Ministério da Justiça, Mendonça deu ênfase ao combate ao narcotráfico, em sintonia com a agenda antidrogas de Bolsonaro. Sob seu comando, a pasta anunciou sucessivas apreensões recordes de maconha e cocaína, com números pouco transparentes e às vezes inflados, conforme a BBC News Brasil mostrou em reportagem em dezembro.

Com frequência, ele comparava seus resultados a da gestão Moro, com quem chegou a bater boca no Twitter no final do ano passado, após o ex-juiz criticar a falta de vacinas contra covid-19

"Vi que @SF_Moro perguntou se havia presidente em Brasília? Alguém que manchou sua biografia tem legitimidade para cobrar algo? Alguém de quem tanto se esperava e entregou tão pouco na área da Segurança?", respondeu André Mendonça, na ocasião.

"Quer cobrança? Por que em 06 meses apreendemos mais drogas e mais recursos desviados da corrupção que em 16 meses de sua gestão?", acrescentou o então ministro da Justiça.

Hoje, Mendonça está perto da vaga no STF que um dia Bolsonaro disse ter prometido ao ex-juiz da Lava Jato quando o convidou a ingressar no seu governo. Caso o anúncio se confirme, porém, ainda terá que gastar bastante saliva em conversa com senadores para garantir os votos necessários a sua aprovação.

  • Mariana Schreiber -
  • Da BBC News Brasil em Brasília
  • 07/07/21
Professor Edgar Bom Jardim - PE

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Covid: quais são os sintomas mais comuns da variante delta do coronavírus


mulher limpando o nariz

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Variante indiana é mais transmissível

A variante Delta do coronavírus é um dos principais motivos do agravamento recente da pandemia de covid em países onde a vacinação está avançando bastante. A OMS acredita que a variante — que é muito mais transmissível que as outras mutações do coronavírus já identificadas — tem potencial para se tornar a dominante no mundo nos próximos meses.

No Brasil, a variante foi identificada há cerca de um mês e já provocou pelo menos duas mortes (de viajantes que chegaram no Maranhão e no Paraná). Na segunda-feira (5/7), a cidade de São Paulo registrou o primeiro caso da variante delta, em um homem de 45 anos.

A Delta gerou uma segunda onda mortal de infecções na Índia neste ano e também se tornou a variante dominante no Reino Unido — onde 90% dos casos atuais são desta nova cepa. Foi identificada em mais de 90 países ao redor do mundo, com surtos confirmados nos Estados Unidos, China, África e Ásia.

Sintomas

Acredita-se que assim como houve mutações do coronavírus, dando surgimento a variantes como a Delta, também houve uma evolução nos sintomas da covid provocadas por essas novas cepas.

O professor Tim Spector, que dirige o estudo Zoe Covid Symptom, no Reino Unido, diz que o sintoma mais comum da covid por variante delta são as dores de cabeça. Em seguida, os sintomas mais comuns da variante Delta são: dor de garganta, coriza (nariz escorrendo) e febre.



Alguns sintomas que eram muito pronunciados na versão original do coronavírus são menos comuns na variante Delta.

Com a Delta, não há tantas ocorrências de tosse ou de perda de paladar e olfato.

Uma das preocupações das autoridades de saúde é que os novos sintomas da variante Delta são muito semelhantes ao de um resfriado comum. Por conta disso, muitas pessoas sequer percebem que estão com covid da variante Delta, e acreditam estar meramente resfriadas, sem tomar medidas preventivas para impedir o contágio de outras.

"As pessoas podem pensar que acabaram de pegar algum tipo de resfriado sazonal e ainda irem a festas. Elas podem espalhar o vírus para outras seis pessoas. Achamos que isso está alimentando grande parte do problema", afirma Spector.

Muitos dos sites das autoridades públicas de saúde ainda não foram atualizados para os novos sintomas da variante Delta.

As autoridades dizem que pessoas com duas doses de vacinas contra o coronavírus têm menos chances de serem hospitalizadas com a variante Delta. Um dos indícios apontados pelo governo do Reino Unido é que houve mais hospitalizações de jovens adultos por variante Delta — justamente a parcela da população que menos recebeu a segunda dose da vacina.

No que ficar de olho

Mulher assoando o nariz

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Primeiros casos no Brasil foram registrados no fim de maio

Da mesma forma, o estudo React, do Imperial College, de Londres, que contou com mais de 1 milhão de participantes na Inglaterra, apontou que, quando a variante Alfa era dominante, havia uma ampla gama de sintomas adicionais ligados à covid-19.

Calafrios, perda de apetite, dor de cabeça e dores musculares foram os problemas mais associados à infecção, ao lado dos sintomas clássicos. O conselho do governo diz que os sinais mais importantes da covid-19 são:

- tosse contínua;

- temperatura alta;

- perda ou alteração do olfato ou paladar.

"Existem vários outros sintomas associados à covid-19", diz o documento.

"Esses outros sintomas podem ter outra causa e não são, por si só, um motivo para fazer um teste. Mas se você estiver preocupado com seus sintomas, procure orientação médica", diz a entidade.


BBC 06//07/21

Professor Edgar Bom Jardim - PE

terça-feira, 6 de julho de 2021

O sedutor mito das ruínas das cidades perdidas



Pompeia

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Após a erupção do Monte Vesúvio, os moradores de Pompeia começaram imediatamente a reconstruir suas vidas nas proximidades

O sol do fim de tarde projetava sombras sobre as centenas de faces de pedra esculpidas no Templo de Bayon, enquanto eu me embrenhava pelo santuário do século 12 no coração do sítio arqueológico de Angkor no Camboja.

Os rostos psicodélicos despontavam de torres e paredes, todos com lábios carnudos esboçando um sorriso desconcertante.


Era meu primeiro dia em Angkor, e eu sabia pouco sobre a história da cidade na época. Mas perambulando de templo em templo, me deixei facilmente levar pelos devaneios da minha imaginação.

Na minha mente, multidões de devotos carregavam oferendas brilhantes. Os cinzéis ecoavam enquanto os artesãos criavam as obras-primas primorosas ao meu redor, enquanto reis grandiosos desfilavam por largas avenidas repletas de estátuas.

"Justamente porque um lugar não existe mais, ele pode ser transformado na cidade ideal, na cidade dos sonhos de alguém", escreveu Aude de Tocqueville em seu livro Atlas of Lost Cities: A Travel Guide to Abandoned and Forsaken Destination ("Atlas das cidades perdidas: um guia de viagem para destinos abandonados e esquecidos", em tradução livre), publicado em 2014.


"A cidade perdida é, portanto, poesia, mundo de sonho e cenário para nossas paixões e meandros."

De fato, lugares perdidos e abandonados exercem uma forte atração sobre a imaginação. São uma isca para viajantes ávidos, inspirando um senso de aventura que alimenta grandes expedições e lendas.

Vemos nossas vidas refletidas nas pedras, imaginamos nossos dramas íntimos perante seus cenários românticos e em ruínas. E se uma mortalha de desastres paira sobre muitas cidades perdidas, até mesmo isso é amenizado com o passar do tempo.

"Por provavelmente milhares de anos, as pessoas têm contado histórias de aventura sobre terras dramáticas além de nossas fronteiras — histórias sobre civilizações antigas", diz Annalee Newitz, autora de Four Lost Cities: A Secret History of the Urban Age ("Quatro cidades perdidas: uma história secreta da era urbana", em tradução livre).

A obra percorre continentes e milênios, apresentando quatro sítios arqueológicos como exemplos práticos de vida urbana: Angkor, no Camboja; a cosmópolenativo-americana de Cahokia; a cidade romana de Pompeia; e a neolítica Çatalhöyük, na Turquia moderna.

Enquanto histórias sobre cidades perdidas se tornam contos de viagem atraentes, Newitz argumenta que essas narrativas muitas vezes ocultam as histórias reais por trás dos lugares mais magníficos da humanidade.

Isso aconteceu em Angkor, onde passei tardes ensolaradas em meio às ruínas.

Newitz explica que a cidade era habitada quando o explorador francês Henri Mouhot chegou lá em 1860 — na verdade, nunca havia sido totalmente abandonada —, mas o visitante não poderia imaginar que antepassados ​​cambojanos fossem capazes de tamanha grandeza.

"À primeira vista, ficamos repletos de uma profunda admiração, e não podemos deixar de perguntar o que aconteceu com essa raça poderosa, tão civilizada, tão iluminada, responsável por essas obras gigantescas", escreveu Mouhot.

Ele especulou que Angkor havia sido construída por antigos gregos ou egípcios. Na França, explica Newitz, sua visita foi aclamada como uma "descoberta".

"As histórias de cidades perdidas se tornaram tão populares na era moderna — a partir do século 19 ou 18 — porque eram realmente uma boa maneira de disfarçar o colonialismo", explica Newitz.

Templo de Bayon, no Camboja

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O Templo de Bayon é um santuário do século 12 no coração do sítio arqueológico de Angkor, no Camboja

"Isso permite que você justifique todos os tipos de incursões coloniais. Dizer 'esta não é uma civilização que está indo bem por conta própria. E a evidência que vemos disso é que eles se afastaram de um grande e misterioso passado perdido.' "

Encontrar cidades e civilizações perdidas era uma obsessão para alguns exploradores e colonizadores europeus.

Esse frenesi foi alimentado, em parte, pela busca pela cidade perdida mais famosa da história: Atlântida, que apareceu pela primeira vez nos escritos de Platão.

Sua Atlântida fictícia prosperou antes que o declínio moral trouxesse o castigo divino.

Os contemporâneos do filósofo teriam reconhecido a história como uma alegoria, diz o historiador Greg Woolf, autor do livro The Life and Death of Ancient Cities: A Natural History ("A vida e a morte das cidades antigas: uma história natural", em tradução livre).

"Contar um mito para ilustrar uma verdade maior era amplamente compreendido", acrescenta Woolf.

"Não acho que alguém tenha acreditado seriamente que [Atlântida] existia, mas era um mito conveniente."

No entanto, quando os textos de Platão sobre Atlântida foram distribuídos em traduções modernas, encontraram um público mais crédulo.

"As pessoas estavam lendo isso exatamente ao mesmo tempo que fundavam colônias no Novo Mundo", explicou Edith Hall, especialista em clássicos, em entrevista recente ao podcast History Extra, da BBC.

Interpretando mal o trabalho de Platão, muitos leram o conto alegórico de forma literal, disse ela.

"Eles ficaram impressionados. Todo mundo disse que (Atlântida) tinha que estar na América."

Sítio histórico

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As narrativas modernas muitas vezes escondem as histórias reais por trás dos lugares mais magníficos da humanidade

Quando esses colonizadores europeus encontraram civilizações nativas, escreve Newitz, eles lutaram por conexões com um passado misterioso, muitas vezes ignorando convenientemente povos contemporâneos bastante reais.

Foi o que aconteceu em Cahokia, uma antiga metrópole localizada perto da atual cidade americana de St Louis.

Os imponentes montes de terra presentes ali rivalizavam com as pirâmides egípcias em altura, e no auge de Cahokia em 1050 d.C., a cidade era maior do que Paris. Os recém-chegados europeus tiveram dificuldade de aceitar isso.

"Viajantes e aventureiros contavam a si mesmos todos os tipos de histórias malucas, como se os antigos egípcios tivessem vindo aqui para construir", diz Newitz.

Foi um mito que serviu para justificar o roubo de terras indígenas amplamente descritas como "vazias". Enquanto isso, assim como em Angkor, os descendentes dos construtores de Cahokia foram desprezados como sendo incapazes de realizar tais projetos.

Contos de cidades perdidas também podem esconder outras verdades, escreve Newitz, como a maneira como os povos antigos se reinventavam quando deixavam um lugar para trás.

O desastre e o colapso são muitas vezes apresentados como o fim da história, mas em Pompeia e Çatalhöyük, Newitz enxerga o vislumbre de um novo começo em meio à agitação social.

Depois que a erupção vulcânica transformou Pompeia em um cemitério, em 79 d.C., os pompeianos traumatizados começaram imediatamente a reconstruir suas vidas nas proximidades de Nápoles e Cumas.

Citando o trabalho do especialista em clássicos Steven Tuck, Newitz relata que muitos refugiados conhecidos pelos historiadores tinham nomes que os marcavam como liberti, escravos libertos.

Enquanto as convenções romanas para nomes costumavam ser conservadoras, mantendo os mesmos nomes geração após geração, Tuck observou um padrão interessante entre as famílias de refugiados de Pompeia.

Deixando para trás seus antigos nomes liberti, alguns optaram por chamar seus filhos pelos nomes dos lugares onde chegavam, como a movimentada cidade portuária de Puteoli.

Cahokia

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Em 1050 d.C., Cahokia era maior do que Paris

Lá, algumas famílias recém-chegadas deram aos filhos o nome de Puteolanus.

É como se mudar de um campo de refugiados para Londres e chamar seu filho de "Londrino", Tuck me explicou por e-mail.

"A realocação deu a eles essa oportunidade e eles a aproveitaram."

E nas próprias cidades em declínio, Newitz apresenta uma comunidade ​​vívida, e não povos antigos presos ao capricho da história.

É o que ela vê nas ruínas de Çatalhöyük, um assentamento neolítico que prosperou há 9 mil anos na planície de Konya, no centro da atual Turquia.

Pompeia

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Uma erupção vulcânica transformou Pompeia em um cemitério em 79 d.C.

As casas ali eram construídas uma ao lado da outra como as células de um favo de mel, diz ela no livro.

Nas noites quentes, os moradores se reuniam nos telhados, fazendo refeições e artesanato juntos. Mas, apesar de toda efervescência criativa da vida na cidade, nem tudo eram flores.

Com o tempo, ficou mais difícil permanecer em Çatalhöyük: o clima se tornou menos favorável e as tensões sociais aumentaram.

Embora muitas histórias sobre cidades perdidas pareçam confusas e míticas, Newitz retrata o abandono de lugares como Çatalhöyük como resultado de um processo bem fundamentado.

Com o tempo, o povo de Çatalhöyük simplesmente optou por voltar para áreas mais rurais, um processo familiar para qualquer morador de cidade grande hoje que melancolicamente passa os olhos pelos anúncios de imóveis que evocam a vida no campo.

"Vamos procurar um lugar melhor e tentar de novo, tentar uma nova experiência, tentar construir de forma diferente, tentar viver de maneira diferente", afirma Newitz, sugerindo conversas que podem ter ocorrido nos lares neolíticos.

Çatalhöyük, assentamento do período neolítico

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Çatalhöyük é um assentamento neolítico que prosperou 9 mil anos atrás

As famílias partiram uma a uma, até que finalmente Çatalhöyük ficou vazia.

Mas quando os habitantes foram embora, cada um levou consigo o que considerava mais importante. Assim, suas artes, ideias e cultura material se irradiaram pela planície de Konya à medida que famílias construíam uma nova vida longe do denso povoado.

Embora Cahokia e muitas outras cidades possam estar abandonadas, de certa forma, elas não estão perdidas de maneira alguma para nós.

"Ainda temos todas essas memórias culturais de onde estivemos", diz Newitz.

"É a continuação de todo o caminho."

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.

  • Jen Rose Smith
  • BBC Travel. 04/07/21
Professor Edgar Bom Jardim - PE