sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Pelé alimentou sonho de Brasil potência e projetou negros no mundo, diz autor





Em foto preto e branco, Pelé sorri, com casaco do Brasil

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Depois do que Pelé fez na Copa de 1958, ninguém mais ousou contestar a presença de negros na seleção, diz o jornalista Marcos Guterman

Quando Pelé brilhou na conquista de sua primeira Copa do Mundo, em 1958, o Brasil vivia uma lua de mel consigo mesmo, diz à BBC News Brasil o jornalista Marcos Guterman.

Autor do livro O futebol explica o Brasil, Guterman conta que o país vivia grande efervescência cultural: a bossa nova, um ritmo brasileiro, conquistava ouvidos mundo afora, e a construção de Brasília projetava ao mundo uma nação que queria deixar de ser marginal.

No futebol, o otimismo com o futuro do Brasil era ainda mais antigo: remontava à Copa de 1938, na França, quando a seleção terminou em terceiro lugar, até então seu melhor desempenho no torneio.

"Em 38, o Brasil surpreendeu o mundo e talvez a si mesmo, e surgiu daquela Copa como o país do futebol, abraçou o futebol definitivamente como seu esporte nacional, carregando as esperanças do Brasil de deixar a periferia do mundo para ir ao centro, com seu potencial de crescimento e tudo mais", diz Guterman



Ele afirma que o Brasil pretendia sediar a Copa seguinte, de 1942, mas os planos só foram concretizados em 1950, já que duas edições do torneio foram canceladas por causa da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

"O Brasil fez o Maracanã em tempo recorde e tinha uma ideia de país que poderia deixar de ser marginal, deixar de ser eternamente colônia para se tornar protagonista, e o futebol foi o veículo dessa afirmação nacional", afirma Guterman.

Com a classificação do Brasil para a final do torneio, a profecia parecia perto de se realizar. Mas a vitória não veio: num dos eventos mais traumáticos da história do esporte brasileiro, a seleção perdeu o último jogo do campeonato para o Uruguai, por 2 a 1.

A derrota ganhou até apelido, Maracanaço, em referência ao estádio que recebeu a partida.

O resultado golpeou o ufanismo nacional, diz Guterman. Mas mais do que isso: a derrota gerou reações racistas entre a população.

Foto em preto e branco mostra jogadores lado a lado no campo, aparentemente posando para foto

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Seleção brasileira na Copa de 1958; Pelé é o terceiro, da esquerda para a direita da foto


Em O Negro no Futebol Brasileiro, clássico da literatura esportiva nacional, lançado em 1964, o jornalista Mário Filho diz que Barbosa, Juvenal e Bigode - três atletas negros - levaram injustamente a culpa pela derrota do Brasil na final.

"Os negros padeceram muito nesse período de caça às bruxas. Alguns diziam que havia negros demais na seleção, o que condenava o time ao fracasso", diz Guterman.

Quatro anos depois, poucos negros foram convocados para a seleção que jogou a Copa de 1954. Visualmente, aquele time lembrava as primeiras equipes brasileiras a disputar torneios de futebol, nos anos 1910 e 1920, quando vários jogadores eram filhos de imigrantes europeus.

Até que um jovem de 17 anos chamado Pelé foi convocado para a seleção que disputaria a Copa de 1958, na Suécia.

"Pelé tinha acabado de começar no Santos e foi grande protagonista na Copa, fazendo um gol espetacular na decisão e sendo coroado como rei do futebol - primeiro pelo (escritor) Nelson Rodrigues e, depois, pelo mundo", diz Guterman.

Depois do que Pelé fez na Copa de 1958, ninguém mais ousou contestar a presença de negros na seleção, conta o jornalista.

Para Guterman, Pelé representa "uma espécie de redenção dos negros na seleção brasileira" - mas também uma redenção dos negros brasileiros em geral.

O jornalista lembra que, além de ter sido o primeiro a conceder o título de "rei" a Pelé, Nelson Rodrigues exaltou a identidade negra do atleta.

"Nelson Rodrigues africaniza o Pelé, não trata o Pelé como um cara qualquer, ele é um negro africano com toda sua majestade, como se fosse um príncipe africano", diz.

Não que Pelé tenha sido o primeiro negro a se destacar no futebol brasileiro - antes dele houve craques como Leônidas da Silva e Friedenreich, por exemplo.

"Mas nenhum teve a dimensão do Pelé, ele claramente projeta a raça", diz Guterman.

Retrato de Pelé olhando para o lado

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Para o jornalista, Pelé parecia evitar a associação entre ser negro e ser bom de futebol

Mas o sucesso de Pelé não foi capaz de pôr fim ao racismo no Brasil - além de, paradoxalmente, ter reforçado a noção de que o esporte é um dos poucos meios para a ascensão dos negros no Brasil, diz Guterman.

O próprio Pelé, segundo o jornalista, se incomodava com essa associação.

"Ele sempre foi muito cobrado por não ter abraçado a causa negra como, por exemplo, o (boxeador americano) Mohammed Ali, mas me parece que ele a evitou porque não queria reforçar a associação entre ser negro e ser bom de futebol. Ele era bom, ponto, e ser negro não fazia diferença", diz.

Da mesma maneira, as três Copas que o Brasil ganhou quando Pelé era profissional (1958, 1962, 1970) não foram acompanhadas por uma ascensão do país ao rol das potências globais, diz Guterman.

"Naquela época realmente acreditávamos que dava pra desenvolver 50 anos em 5, como dizia Juscelino Kubitschek. Daí veio 1964", diz o jornalista, referindo-se ao golpe militar que manteve o Brasil sob um regime ditatorial até 1985

  • João Fellet
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
  • BBC

Professor Edgar Bom Jardim - PE

Morre Pelé: a 'carreira artística' do jogador no cinema, música e quadrinhos






Pelé e Renato Aragão nas filmagens de Os Trapalhões e o Rei do Futebol, em 1986

CRÉDITO,ACERVO PESSOAL RAFAEL SPACA

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Pelé e Renato Aragão nas filmagens de Os Trapalhões e o Rei do Futebol, em 1986

Em 1986, 15 anos depois de ter parado de jogar pela Seleção Brasileira e 12 anos depois de ter deixado de vestir a camisa do Santos, Pelé (1940-2022) voltou a pisar o gramado do Maracanã, o maior estádio de futebol do mundo na época.

No dia 20 de abril, ele participou das filmagens de Os Trapalhões e o Rei do Futebol, dirigido pelo experiente Carlos Manga (1928-2015), durante a final da Taça Guanabara.

No intervalo da partida entre Vasco e Flamengo, Pelé, Renato Aragão e um grupo de figurantes rodaram as últimas cenas do filme, diante de um público estimado de 121 mil torcedores. "A equipe de filmagem teve menos de 15 minutos para rodar aquelas cenas.

Em uma época em que não havia computação gráfica ou efeitos especiais, ainda mais no Brasil, essa foi a solução encontrada para dar aquele clima de final de campeonato, com estádio lotado e tudo o mais", explica o jornalista Rafael Spaca, autor de O Cinema dos Trapalhões - Por Quem Fez e Por Quem Viu (Laços, 2016


Os Trapalhões e o Rei do Futebol estreou no dia 26 de junho de 1986, a três dias da final da Copa do Mundo do México, e foi assistido por 3,6 milhões de espectadores.

No filme, Pelé interpretou um repórter esportivo chamado Nascimento que, aos 35 minutos do segundo tempo, aceita jogar como goleiro para ajudar o fictício time do Independência Futebol Clube. Bom de bola, o repórter ainda marca um golaço ao cobrar o tiro de meta. Placar final: Independência 5 x 4 Gavião.

"Guardo duas recordações do set de filmagens. Na ocasião, os Trapalhões alugaram um trailer de primeira para oferecer todo o conforto possível ao Pelé. Quando soube que teria um trailer só para ele, agradeceu, mas dispensou. Queria ficar junto com todo mundo.

Nas cenas de briga, Pelé ficava preocupado de não machucar os figurantes", relata o humorista Dedé Santana que, por dispensar dublê, quebrou os dois pés logo no início das filmagens ao pular de uma árvore e teve que fazer o restante do filme com uma bota de gesso pintada de preto no filme com o rei do futebol, que morreu nesta quinta-feira (29/12) aos 82 anos.

Pele in Escape to Victory

CRÉDITO,ULLSTEIN BILD

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Pelé nas gravações do filme Fuga para Vitória

Talento imodesto


Aquela não foi a primeira vez em que Pelé atuou em um longa-metragem. A primeira participação dele na tela grande foi no filme O Rei Pelé, de 1962, com direção de Carlos Hugo Christensen (1914-1999).

O longa conta a trajetória de vida do menino nascido em Três Corações, passando por Bauru e Santos até conquistar o mundo como rei do futebol. Pelé foi dublado por um menino durante a infância e por um rapaz para ilustrar a adolescência do rei. Tarefa difícil pois ambos não só tinham que guardar semelhança física com o rei, mas também serem bons de bola.

Mas a tabelinha do garoto que cresceu assistindo aos filmes da dupla Oscarito (1906-1970) e Grande Otelo (1915-1993) com o cinema não parou aí. Em 1971, fez uma participação especial no filme O Barão Otelo no Barato dos Bilhões.

Logo, vieram outros, como Os Trombadinhas (1979), de Anselmo Duarte; Fuga para Vitória (1981), de John Huston, e Pedro Mico (1985), de Ipojuca Pontes.

Na ocasião, a primeira opção do cineasta para o personagem-título, um típico malandro dos morros cariocas, foi o americano Sidney Poitier (1927-2022).

Às voltas com sua candidatura para a Academia de Hollywood, o astro de Ao Mestre, Com Carinho (1967) declinou do convite.

Como precisava de um nome forte para projetar o filme internacionalmente, Pontes convidou Pelé depois de conversar com o veterano John Huston (1906-1987) em Nova Iorque.

"Pelé deu algum trabalho, porque nunca foi um ator profissional. Mas era sensível, sincero e malandro para se sair bem. Trabalhamos para que ele não 'interpretasse', mas, sim, agisse naturalmente em cena. Ele foi correto, e a coisa funcionou", avalia o diretor.

Além dos filmes, Pelé participou também de documentários, como Isto É Pelé (1974), de Eduardo Escorel e Luiz Carlos Barreto, Pelé Eterno (2004), de Aníbal Massaini Neto, e Cine Pelé (2011), de Evaldo Mocarzel.

"Dos filmes em que atuei, o que me deu mais prazer e reconhecimento foi, sem dúvida, Fuga para a Vitória", elegeu Pelé, em entrevista à BBC News Brasil em 2020.

"Na época, jogava no Cosmos de Nova York e tive a chance de contracenar com Sylvester Stallone e Michael Caine. Se tivesse que me dar uma nota como ator, bem, acho que daria dez."

Reza a lenda que, segundo o roteiro original, quem marcaria o gol de bicicleta na sequência final de Fuga para a Vitória seria Stallone. Mas, diante da dificuldade do astro de Rocky, Um Lutador (1976) de completar a jogada, ele teve que se contentar com o papel de goleiro.

Contatos imediatos

Além de se enveredar pela telona, Pelé aceitou um convite da novelista Ivani Ribeiro (1922-1995), autora de "remakes" de sucesso, como A Gata Comeu (1985), Mulheres de Areia (1993) e A Viagem (1994), da TV Globo, para protagonizar uma produção de sua autoria, Os Estranhos (1969), na extinta TV Excelsior.

Na trama, o jogador dá vida a Plínio Pompeu, um escritor de sucesso que mora numa ilha distante e, certo dia, conhece e faz amizade com seres extraterrestres do planeta Gama Y-12. Na ocasião, Pelé conciliava as gravações da novela com os jogos do Santos.

Para não fazer feio em frente às câmeras, a direção da novela escalou o ator Stênio Garcia para "bater o texto" com o jogador. No jargão artístico, ensaiar as cenas antes da gravação.

"Pelé era muito gentil e esforçado. Estava aprendendo, né?", recorda a atriz Rosamaria Murtinho, que interpretou uma das alienígenas da novela, Dioneia. "Mas, a novela não fez sucesso, não. Tanto que pedi para sair."

Stênio Garcia, Regina Duarte e Pelé nos bastidores da novela Os Estranhos, em 1969

CRÉDITO,ARQUIVO PRÓ-TV/MUSEU DA TV

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Stênio Garcia, Regina Duarte e Pelé nos bastidores da novela Os Estranhos, em 1969

De lá para cá, Pelé gravou outras participações: na sitcom Família Trapo (1967), da Record, onde aprendeu a jogar bola com Ronald Golias (1929-2005); no humorístico A Praça É Nossa (1991), do SBT, onde ouviu poucas e boas da fofoqueira Dona Vamércia, vivida por Maria Teresa Fróes (1936-1999); e na novela O Clone (2002), da TV Globo, onde visitou o bar da Dona Jura, interpretada por Solange Couto.

Na gravação, Pelé aproveitou a deixa para exercitar outra faceta artística: a de cantor. Ele soltou o vozeirão na música Em Busca do Penta, de sua própria autoria.

Pé quente, o jogador deu sorte à seleção comandada por Luís Felipe Scolari. Três meses depois, o Brasil venceu a Alemanha por 2 a 0 e conquistou a Copa do Mundo de 2002, na Coreia do Sul e no Japão.

Do gramado para o estúdio

Sim, além de aspirante a ator, Pelé também gostava de compor e cantar. Autor de mais de cem músicas, como Meu Mundo É Uma BolaCidade Grande e ABC do Bicho Papão, gravou um compacto ao lado de Elis Regina (1945-1982), participou de especial de Natal do Roberto Carlos e lançou um álbum produzido por Sérgio Mendes.

Um de seus álbuns, Peléginga (2006), gravado com coro, banda e orquestra, foi lançado apenas no mercado internacional. Com 12 músicas selecionadas entre as mais de cem que compôs, vendeu 100 mil cópias.

"Algumas de suas canções são boas. Outras nem tanto. Uma das minhas favoritas é Acredita no Véio. Ele compôs para o pai de santo que os jogadores consultavam antes dos jogos. Quando o time ganhava, estava tudo bem. Quando perdia, o pai de santo arranjava um monte de desculpa", diverte-se o maestro, produtor e arranjador Ruriá Duprat.

Pelé e Ruriá Duprat no estúdio de gravação do álbum Peléginga, em 2006

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Pelé e Ruriá Duprat no estúdio de gravação do álbum Peléginga, em 2006

No estúdio, Duprat conta que Pelé costumava dar trabalho, sim. Mas afirma que o jogador nunca se recusou a regravar uma música quantas vezes fossem necessárias: "Quando algo não está legal, sou franco, e ele procurava fazer melhor. Nessas horas, o Pelé não saía do estúdio enquanto não ficava satisfeito com o resultado", diz.

Em 2009, Pelé e Duprat cogitaram a hipótese de lançar um novo álbum. Na ocasião, o ex-jogador chegou a convidar Bono para dividir os vocais em uma das faixas, mas o vocalista do U2 não pôde participar do projeto por causa da turnê 360º.

"Nunca pensei que, um dia, pudesse viver da música ou do cinema. O dom que Deus me deu foi jogar bola. A música e o cinema simplesmente aconteceram. Entre cantar e atuar, acho que me saio melhor atuando", arriscou Pelé.

A Turma do Pelezinho

Foram muitos os convites que Pelé recebeu ao longo dos anos. Para fazer filmes, gravar novela, lançar discos. O mais inusitado de todos aconteceu a bordo de um avião, entre Roma e São Paulo. O convite partiu do desenhista Maurício de Sousa, o "pai" da Turma da Mônica, em 1976.

Pelé e Maurício de Sousa em 1977, no lançamento da revista Pelezinho

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Pelé e Maurício de Sousa em 1977, no lançamento da revista Pelezinho

Sua ideia era transformar o atleta do século em personagem de história em quadrinhos. Pelé topou na hora. Passado algum tempo, Maurício agendou uma reunião em Nova Iorque e levou uns esboços para Pelé aprovar.

Com os desenhos em mão, o jogador franziu a testa. "Não gostou?", perguntou Maurício. "O desenho está bonitinho, mas eu pensava que devia ser diferente", gaguejou o jogador. "Diferente como?", quis saber o desenhista. "Devia ser um atleta. Vitorioso, campeão...", tenta explicar. "Pelé, a ideia não é essa. Criança gosta de brincar com criança", argumentou. "Ah, não sei...", coçou a cabeça, em dúvida.

Diante da indecisão do jogador, Maurício propôs um trato: levar os esboços para casa, mostrá-los aos filhos, Kelly Cristina e Edinho, e perguntar o que eles acharam. "Eu sabia qual seria a resposta e não deu outra. Os filhos do Pelé adoraram a versão infantil do pai e, assim, nasceu o Pelezinho", orgulha-se Maurício que, para criar Cana Brava, Frangão e a turma do Pelezinho, colecionou histórias e mais histórias da infância de Pelé.

A revista do Pelezinho foi publicada de agosto de 1977 a dezembro de 1986. Desde então, só seria publicada em ocasiões especiais, como em 1990, por ocasião do aniversário de 50 anos do Pelé, e em 2012, às vésperas da Copa das Confederações do Brasil, em 2013.

  • André Bernardo
  • Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
  • BBC

Professor Edgar Bom Jardim - PE

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Governo Lula e militares: como será essa relação?




Lula

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Lula terá o desafio de lidar com as Forças Armadas no governo que começa em janeiro

Depois de mais de uma década de episódios de intromissão indevida na política, as Forças Armadas brasileiras devem ser devolvidas à atribuição constitucional de defesa do território nacional. Para que essa redesignação institucional seja eficaz, princípios como hierarquia e disciplina precisam ser enfatizados e fortalecidos. Mais difícil é prever como se comportarão as próprias Forças - Marinha, Aeronáutica e, sobretudo, Exército - diante desse rearranjo.

Esse é, com matizes e nuanças, o diagnóstico de sete pesquisadores e especialistas em defesa ouvidos pela BBC News Brasil a respeito da relação entre o futuro governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e as Forças Armadas. As diferenças entre os entrevistados residem menos na descrição do quadro atual e mais na interpretação do contexto político e histórico que permitiu a volta da expressão "crise militar" ao noticiário quase 30 anos após o restabelecimento da democracia no país.

Nos últimos quatro anos, o protagonismo verde-oliva no governo foi sublinhado inúmeras vezes, a começar pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, que cunhou a expressão "meu Exército". O maior símbolo desse vínculo foi o aumento do número de militares da ativa e da reserva em cargos e funções civis na burocracia federal desde a chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto. Em 2020, um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) identificou 6.157 servidores oriundos das três Forças nessa condição.

Para o presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed), Eduardo Svartman, a identificação entre Bolsonaro e militares não foi casual, mas tampouco resultou de uma trama conspiratória. "Em política, todo mundo conspira sempre. É preciso entender a ascensão de Bolsonaro e de outros líderes de extrema-direita depois de 2018 nos marcos de uma crise do sistema político", afirma o professor do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)



Para Svartman, os protestos de rua em junho de 2013, a reeleição por pequena margem da presidente Dilma Rousseff no ano seguinte, a contestação do resultado eleitoral pelo PSDB e a Operação Lava-Jato contribuíram para fragilizar as instituições políticas. "O fato é que os militares não estavam no centro da política antes do segundo governo Dilma", afirma.

O professor titular de Antropologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Piero Leirner identifica uma ação consciente de uma geração de altos oficiais para "tomada de parte do Estado por meio da utilização de Bolsonaro como um biombo". De acordo com o pesquisador, tiveram um papel importante nesse processo generais como Augusto Heleno, Eduardo Villas Boas e Sergio Etchegoyen. "Eles estruturaram e pavimentaram a candidatura Bolsonaro e depois estabeleceram uma central de controle", assegura.

De acordo com Leirner, "a ideia de que houve uma aliança voluntária e individual por parte de generais que volta e meia são caracterizados como 'bolsonaristas' foi uma dissimulação". Na realidade, opina, existiu uma "operação coletiva" executada "como uma cadeia de comando".



O jornalista e escritor Fabio Victor, autor de Poder camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro (Companhia das Letras, 2022), afirma que as distintas gerações de militares têm em comum uma formação profissional que define o golpe civil-militar de 1964 como "contra-revolução democrática". Essa mentalidade é mais arraigada entre os mais antigos e atenuada entre os mais modernos, na mesma proporção do entusiasmo por Bolsonaro. O anticomunismo e o antiesquerdismo continuam sendo, porém, um fator fundamental do ideário militar, dos altos escalões à tropa. "Mesmo os mais jovens, que esperavam por uma terceira via, optaram por Bolsonaro mais uma vez ao terem de escolher entre ele e Lula", resume.

Em abril de 2022, durante encontro com sindicalistas da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Lula disse que, uma vez eleito, pretendia "desmilitarizar" o governo. "Nós vamos ter que começar o governo sabendo que nós vamos ter que tirar quase 8 mil militares que estão em cargos, pessoas que não prestaram concursos", advertiu. O professor da Universidade Católica de Pernambuco e doutor em Ciência Política Antonio Henrique Lucena Silva afirma que a principal medida de afirmação de autoridade do futuro governo na área militar - a nomeação de novos comandantes - tende a transcorrer de forma tranquila e profissional.

Não se pode dizer o mesmo, adverte o pesquisador, da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e das Polícias Militares nos Estados. "Lula deve provavelmente fazer um grande acordo no sentido de que, se alguém vai ser responsabilizado, deve ser Bolsonaro e não as Forças Armadas. Pode-se utilizar a desculpa de que ele sempre se colocava como comandante-em-chefe, 'um manda e outro obedece'", prevê.

Senhora na rua levanta cartaz com foto de militares e pedido em inglês por 'Federal intervention'

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No Rio de Janeiro, apoiadora de Jair Bolsonaro mostra cartaz em inglês pedindo 'intervenção federal'

Para Ana Carolina Assis, doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a maior mudança sob Lula deve ficar por conta da redução do número de ministérios ocupados por militares. De acordo com a pesquisadora, o compromisso das Forças Armadas como um todo é com o Estado e não com governos específicos. "O novo governo não deverá isolar a instituição e comprometer-se a adotar diálogo, mesmo com a anunciada nomeação de um civil (José Múcio Monteiro) para o Ministério da Defesa", completa. A possibilidade de oficiais expressarem opinião política ou diferenças em relação ao governo existe, afirma Ana Carolina, mas é considerada "fora da conduta habitual da instituição".

Autora de A cruz haitiana: como a Igreja Católica usou o seu poder para esconder religiosos pedófilos no Haiti (Tagore, 2020), a jornalista Iara Lemos afirma que todos os altos oficiais com quem tem conversado preveem um período de mais disciplina e não o contrário. "Para eles, separar a política dos quartéis, como fizeram desde o fim da ditadura, é o que precisa ser feito", sintetiza. O futuro governo deve encontrar na Região Sul o ambiente mais hostil no interior das Forças Armadas, conforme a jornalista. "No Sul, nenhuma das Forças se mostra favorável às ações de Lula", explica.

O professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Juliano Cortinhas afirma que o principal desafio de Lula é reforçar o Ministério da Defesa como órgão de execução técnica de políticas de defesa, com carreira funcional específica, ao qual as três Forças devem ser subordinadas. Ele compara o caso brasileiro aos de Reino Unido - 150 mil militares e 58 mil civis lotados na Secretaria de Defesa, equivalente ao Ministério da Defesa brasileiro - e França - 200 mil militares e 60 mil civis no Ministério da Defesa. No Brasil, há 370 mil militares na ativa em 2022, enquanto o Ministério da Defesa abriga 1,5 mil servidores civis.

"Esses dois países (Reino Unido e França) têm economias semelhantes à nossa, poderio militar muito superior e praticamente metade do efetivo militar. No mundo inteiro, a curva de pessoal militar está caindo porque o número de equipamentos está aumentando", argumenta. Segundo Cortinhas, no Brasil, Forças Armadas menores e profissionais deixariam de ser uma ameaça à democracia. "Esse processo não vai se dar do dia para a noite, mas passa pelo fortalecimento do Ministério da Defesa", sugere.

Mais uma amostra de como as relações entre os militares e o futuro governo Lula deverão ser complexas ocorreu nesta semana.

A equipe de transição do petista articulou para que os novos chefes das três forças militares fossem trocados antes da posse de Lula, no dia 1º de Janeiro de 2023, como prevê a tradição quando há mudança no chefe do Executivo.

Entretanto, até agora, apenas a troca do comando do Exército foi oficializada. Saiu o general Marco Antonio Freire Gomes e foi nomeado o general Julio Cesar Arruda. Há expectativa de que o comando da Aeronáutica também seja trocado nos próximos dias.

Na Marinha, porém, não houve acordo e o almirante Marco Sampaio Olsen, indicado pela equipe de Lula para comandar a força, só assume o comando da Marinha após a posse do petista.

Nesse sentido, um dos sinais preocupantes emitidos pela Equipe de Transição, de acordo com o professor da UnB, foi a inexistência de um Grupo de Trabalho de Defesa. No Relatório da Transição divulgado na quinta-feira, o termo "Ministério da Defesa" é citado em último lugar entre os 12 ministérios, secretarias ou órgãos com status de ministério da configuração Defesa da Democracia e Reconstrução do Estado e Soberania. Do ponto de vista operacional, o documento atribui à pasta pouco mais do que um papel auxiliar do Ministério da Justiça no combate à proliferação de armas.

"A única agenda do governo eleito em matéria de Defesa, até o momento, é restabelecer a disciplina, baixar a temperatura. O ministro anunciado tem agido nesse sentido, apesar das manifestações em frente a quartéis e das declarações de militares da ativa, que são proibidas", sintetiza Svartman. Ele situa as decisões de nomear futuros comandantes das Forças com base no critério de antiguidade e de não criar Grupo de Trabalho de Defesa na equipe de transição como parte dessa lógica de distensionamento. "Dependendo de como for equacionado, esse é também um problema para o futuro. Como será a política de defesa do novo governo? Como serão as relações civis-militares? Seria importante que isso fosse debatido publicamente", argumenta.

  • Luiz Antonio Araujo
  • De Porto Alegre para a BBC News Brasil
  • BBC

Professor Edgar Bom Jardim - PE